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Semana passada. Já tinha encerrado meus afazeres quando vi que Trump tratou Zelensky como se ele fosse apenas um reles humorista, e não o presidente da Ucrânia invadida pela Rússia de Putin. Assisti àquilo uma, duas, dez vezes e só consegui pensar que nunca tinha visto nada parecido. Nunca. Nada*.
Não que eu tenha ficado indignado ou coisa parecida. Não é pra tanto. Fiquei mais é surpreso com o, digamos, hiper-naturalismo da cena. É que cresci pensando nas relações diplomáticas como algo cordial, por mais que houvesse discordâncias. Algo mais para o barroco. Mas este mundo definitivamente não é o mesmo mundo em que cresci. E leva um tempo para me adaptar.
Blasé
Na hora, comentei com um amigo e ele disse que eu só estava assim impressionado porque (1) sou impressionável. E talvez seja mesmo. É que, para mim, o contrário de ser impressionável é ser blasé. Não sei se já disse aqui, mas odeio gente blasé, dessas que não se deixam afetar pelos acontecimentos. Pelo menos é o que elas dizem. Sei.
E porque (2) eu não tinha visto os primeiros minutos do encontro entre Trump e Zelensky, no qual Zelensky teria provocado o presidente e o vice-presidente norte-americano. Tinha razão, o amigo. Fui lá ver e: fiquei ainda mais impressionado. Desta vez não com o nível belicoso (sem trocadilho? com trocadilho?) do diálogo, e sim com a minha ignorância.
1984
Não entendo nada de geopolítica. Já disse. E desconfio que, tirando o Leonardo Coutinho, ninguém entende. Tanto que, logo depois do embate, vi surgirem as teorias da conspiração mais loucas. A minha preferida diz que EUA/Trump, Rússia/Putin e China/Xi Jinping estão dividindo o mundo entre Oceania, Eurásia e Lestásia. Sim, exatamente como no livro “1984” – que essa gente lê como se fosse uma profecia**.
Tentando tirar algo de bom do ocorrido, concluí que aquela era uma boa hora de ouvir e observar. O que ouvi e vi, porém, foi mais assustador do que um alinhamento EUA-Rússia. Ou do que o cogumelo atômico que dará início à Terceira Guerra Mundial. O que ouvi e vi foi um monte de gente confusa, esperando ansiosamente pelo veredito de influenciadores*** e políticos.
Combo
Esse é o fenômeno que deveria tirar o seu sono: a necessidade absurda que as pessoas**** têm de se encaixar em alguma ortodoxia ideológica. De comprar o combo inteiro. O pacote fechado. A direita assim. A esquerda assado. E aquele que se desviar do caminho estreito da ortodoxia, já sabe: na melhor das hipóteses é um isentão covarde e burro. Na pior não sei nem quero saber.
No final das contas, o tempo passou e, quanto à guerra da Ucrânia, não se chegou a nenhum desfecho grandioso. Ou, se chegou, perdi. Não fiquei sabendo. Acontece que, com o início da festa mundaníssima, ignorei a geopolítica para me ater a um conflito de outra natureza: aquele que já dura uma eternidade dentro do terreno minado do nosso coração.
Asteriscos (parte 1)
* Não seja tão literal, leitor. Por favor. Talvez já tenha, sim, ocorrido algo parecido envolvendo dois chefes de Estado. E talvez eu tenha visto. Mas não me lembro. Daí o “nunca” e o “nada”.
** Pensando bem, não deveria ter escrito “dessa gente”. Parece que estou desprezando. Que estou sendo... blasé. Não estou. Juro. Mas já escrevi uma vez e escrevo quantas forem necessárias: esqueçam “1984”. Não que o livro não seja bom. Até é. Mas é também uma fábrica de malucos que se acham capazes de entender todos os movimentos dos titereiros da geopolítica.
Asteriscos (parte 2)
*** Aliás, vi influenciadores perguntando o que seu (deles) público tinha achado do encontro entre Trump e Zelensky. Para só então se posicionarem. Pode uma coisa dessas? Não é um movimento tão incomum, mas se deparar com ele assim, de uma forma tão explícita, sei lá. Me deu nojinho. Afinal, querendo ou não os influenciadores são os intelectuais públicos do nosso tempo. E se eles não se expressam com base em convicções...
**** Quando digo “as pessoas” estou me referindo também a você e a mim. Simplesmente porque é bastante confortável, fácil e gostoso, vai, fazer parte de um clubinho que nos poupe de pensar e de assumir posições arriscadas sozinhos. Mas eu luto contra isso. Espero que você também.




