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Há 37 anos persigo aquele Natal simples e ao mesmo tempo absolutamente mágico de 1984.
Há 37 anos persigo aquele Natal simples e ao mesmo tempo absolutamente mágico de 1984.| Foto: Bigstock

Se bem me lembro da época em que era viciado em psicanálise, o sono que sinto neste momento nada tem a ver com meu cansaço. É um sono diferente. Mais pesado. O sono de quem, sem sair do lugar, passou os últimos dias revisitando vales e reentrâncias da memória, abrindo baús que se julgava permanentemente trancados e conversando com mortos. Mas agora sou obrigado a uma coisa.

(Pronto. Abri este parágrafo aqui só para meu amigo poder marcar na sua cartela do “Bingo dos Textos do Polzonoff” mais esse maneirismo que tenho. E também aproveitei para dar uma cochiladinha).

Dizia eu que estava com sono porque andei revisitando umas ruínas que já considerava demolidas. Nessas ruínas, entre frágeis paredes e sob um telhado de estrelas, visitei vários mortos que para sempre habitarão o Natal de 1984. Aquele ao qual, tendo mencionado tantas vezes tantos natais, jamais fiz qualquer tipo de referência. É o Natal fundamental da minha formação natalina. Um Natal que, em grande medida, me apresentou a um ideal de família e de homem.

Tem alguma coisa estranha com seu filho

Há todo um preâmbulo para esta noite realmente feliz, apesar dos percalços que só fui conseguir entender depois de adulto. No dia anterior, por exemplo, tio Luiz, um dos fantasmas dessa história, cometeu o Maior Equívoco do Mundo dos Cunhados e tirou um inocente cochilo no sofá da sala da vó Olívia – outro fantasma. Resultado: tio Luiz acordou com as unhas pintadas de vermelho e saiu xingando todo mundo para, cinco minutos mais tarde, continuar com as conversas, o cigarro e a cervejinha.

Teve ainda o chuveiro-que-dava-choque. E a conversa entre uma tia e minha mãe a respeito da estranheza de se ver uma criança, eu, que gostava de comer alho cru. Teve, não posso deixar de mencionar, o lanchinho de Nescau com sanduichinhos de bolacha-maisena (isto é, duas bolachas recheadas com muita margarina). E teve brincadeiras e uma coisa que faltava ao menino da cidade grande: crianças soltas até tarde da noite, nas ruas tranquilas e ultra-arborizadas de Maringá.

Aí, na tarde do dia 23 de dezembro, choveu. E o tio João, o mais saudoso dos meus fantasmas, teve a brilhante ideia ébria de transformar a calçada em torno da casa da vó numa divertida, escorregadia e perigosa pista de corrida. As risadas eram proporcionais aos tombos espetaculares de crianças e adultos. Até que uma prima resolveu ser a diferentona e, em vez de cair de bunda na calçada, decidiu testar o sistema de amortecimento do queixo. Levou três pontos.

Na noite da véspera da véspera a casa estava cheia. A família completa. Os homens bebiam e fumavam e conversavam. As mulheres bebiam, fumavam, conversavam e cozinhavam. De vez em quando eu ia até a cozinha, pegava um dente de alho e jogava na boca. Mascava igual chiclete. Para o desespero da tia que insistia: tem alguma coisa estranha com seu filho, Marlene.

O mítico relógio-de-bolso

O dia 24 para mim não teve manhã ou começo da tarde. É como se o sol tivesse nascido lá pelas 17h, só para dar um “oi” e ceder lugar à noite. Até hoje todo lusco-fusco me lembra aquele lusco-fusco. Proust talvez associasse àquela luz especial algum cheiro igualmente extraordinário. Para mim, contudo, a semiluz está mais associada ao deslumbre de ter uma casa cheia de pessoas. E à segurança de me perceber parte de uma família. Mesmo que fosse uma família prestes a se dividir por uma questão mesquinha daquelas que nem vale a pena mencionar.

Desde então, luto contra essa impressão de que as pessoas estão sempre predispostas a trocar noites como aquele remoto Natal de 1984 por coisas estúpidas, como “estar com a razão”. Mas me adianto. Lá fora, o Sol se põe na encalorada Maringá. Alguém sugere levar a árvore de Natal precariamente armada e decorada para a varanda. Tem início uma discussão pateticamente acalorada sobre a melhor hora de se distribuir os presentes para as crianças ansiosas. E, neste momento, se você está aí preenchendo o “Bingo dos Textos do Polzonoff”, corre para marcar mais essa interrupção metalinguística.

Porque eu, criança que morava longe dos primos, tinha ganhado naquele ano uma BMX Monark – e, antes que você pergunte, a Caloi era bem mais cara. Na impossibilidade de transportar disfarçadamente uma bicicleta, meus pais optaram por me presentear antes da viagem. E nem se incomodaram em inventar alguma desculpa para o comportamento estranho do Papai Noel. Afinal, eu já não acreditava nele. Uma vez feito o melancólico desvio, e antes que a Catota suma daqui com a meada na boca, convém voltar ao fio narrativo.

Enquanto primos e tios recebiam presentes, fui conversar com Seu Roque, o vodrasto e mais um fantasma deste texto. Ele era um pipoqueiro muito magro e corcunda, de fala rara e mansa, e por algum motivo visto com maus olhos pela maioria da família. Não por mim. Gostava de escutar os ensinamentos de Seu Roque. E via com algum encanto como ele tirava o relógio-de-bolso do... bolso e observava demoradamente as horas.

Não me lembro de nenhum ensinamento de Seu Roque. Nenhum. Mas me lembro claramente de ver o corpo dele baixando à terra e de meu desespero ao entender que jamais o veria tirando o relógio-de-bolso... do bolso, me dando lições seriíssimas e importantíssimas das quais insisto em me esquecer.

Jesus entrando pela janela

Uma vez distribuídos os presentes, intensificou-se a preparação da ceia. E o consumo de cerveja. Volta e meia ecoava uma risada daquelas bem italianas mesmo. Alguém disse que ia faltar isso. Outro avisou que ia até o bar da esquina comprar cigarro e imediatamente foi incumbido de pegar o carro e ir ao supermercado comprar algo que tinha inexplicavelmente acabado. Alho, por exemplo.

Na ceia, se não me trai a memória malandrinha, não havia peru, porque peru era caro. Talvez houvesse Chester, mas o mais provável era que fosse frango mesmo. Havia saladas, por certo, mas que criança dá atenção a saladas? Havia frutas. Ou melhor, uva. Havia alho (não posso esquecer).E havia uma nega-maluca com velas em cima. Imaginei Jesus entrando pela janela para, à meia-noite em ponto, soprar as velinhas. E essa imaginação, olha que coisa!, nunca me abandonou.

Onze e meia. Por aí. Começou a operação de guerra para reunir todos para a ceia. As tias gritavam chamando os primos. Minha mãe também gritava, mas eu estava ali pertinho dela, mascando mais um delicioso dente de alho. Cantamos os parabéns. Rezamos o Pai Nosso. Foi quando tio João, bêbado como se não houvesse amanhã, pediu a palavra e desandou a falar. E a chorar. E a falar, agradecendo cada um dos presentes – os adultos, claro. Explicando por que os amava e por que aquele ano tinha sido bom e maravilhoso.

O choro se espalhou pela cozinha enorme. Eu me lembro de chorar e, no meio do choro, olhar com admiração para aquele tio bêbado que falava coisas tão bonitas. E que disseminava o choro e o riso. A realidade, mais tarde vim a saber, era que tio João, nos outros dias do ano, causava choro na família sem falar coisas bonitas. Mas esse é o problema com a realidade: às vezes ela não se encaixa na imagem ideal que fazemos de algumas pessoas, mesmo depois que deixamos de ser criança e depois que essa pessoa deixa de ser de carne e osso. Pior para a realidade, claro.

Em busca do Natal perdido

No ano seguinte, não sei se já mencionei (move o cursor para cima, tenta procurar o trecho, não acha, clica na lupa de “localizar”, digita “mesquinha”, descobre aliviado que já mencionou, mas decide repetir mesmo assim), no ano seguinte a família se separou para nunca mais se reunir daquele jeito. Nunca mais.

Seu Roque nunca mais tirou o relógio-de-bolso do... bolso para me dar lições importantíssimas para eu esquecer. Tio Luiz nunca mais teve as unhas do pé pintadas à sua revelia. Tio João nunca mais fez seus discursos chumbados, com os quais ninguém mais chorou. E, ao que consta, eu parei com aquela mania esquisita de comer alho cru.

Desde então, busco de alguma forma repetir o Natal de 1984. Tento, nem sempre com sucesso, me cercar por pessoas alegres e ruidosas, dessas que quase morrem de tanto gargalhar ao ver o cunhado com as unhas pintadas de vermelho; por pessoas sensíveis que, ébrias ou não, dizem coisas bonitas e provocam choro, riso e reflexão; e por sábios de relógio-de-bolso dando conselhos que sou incapaz de reproduzir aqui, mas que ainda moram em alguma parte de mim e, de certa forma, também me guiam no melhor caminho.

E há 37 anos, quando dá meia-noite (e eu ainda estou acordado), olho assim meio de soslaio para a janela, na esperança de ver Jesus entrar e soprar as velinhas de um bolo imaginário. Um cínico diria que ele nunca entra, mas eu não sou cínico. Se nesse tempo todo houve alguns natais em que não percebi a presença Dele não foi porque Ele não esteve presente, e sim porque fui incapaz de perceber. Hoje sei que, embora não O veja com os olhos de enxergar, vejo-O de outra forma. Assim como vejo meus fantasmas que, perdoados, O acampanham neste dia que também é o de celebrar os sonhos eternos da infância.

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