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Carlos abriu a porta com dificuldade, como se tivesse que ajeitar nos ombros o mundo que carregava sobre si. Jogou as chaves na mesa. Acariciou distraidamente o cachorro. Puxou uma cadeira e se sentou, soltando todo o ar dos pulmões num suspiro que era puro medo. Carlos havia sido demitido.
Alheia à má notícia, sua mulher entrou na sala toda alegre com a chegada do marido, que a muito custo ergueu a cabeça para dar de cara com a barrigona inchada. Ela abriu o sorriso mais lindo do mundo. Um sorriso que murchou ao encontrar a carranca preocupada de Carlos. Naquele instante, ela soube.
Ela o abraçou e o gesto de carinho foi como um gongo anunciando o início do Ritual da Queixa. Carlos falou. Disse que era injusto. Cogitou procurar a prima advogada, pedir indenização e tal. Procurou nos pecados alheios uma explicação. Ora era a inveja de um colega, ora era a soberba de um chefe. E falou. Disse que essas empresas hoje em dia são tudo assim mesmo: suga o homem e depois descarta feito lixo. Maldito capitalismo desalmado!
Falou mais, o Carlos. Disse que o chefe nunca foi com a cara dele – o que, cá entre nós, era uma verdade, mas não tinha como Carlos ter certeza disso. E falou. Exaltou suas proezas, estufou o peito para se orgulhar da coragem necessária para trabalhar na fábrica de explosivos. Depois, já negociando consigo mesmo, reclamou da falta de perspectiva e, como não poderia deixar de ser, do salário e dos benefícios. “...uma porcaria”, disse ele. E o casal caiu num silêncio de catástrofes imaginárias.
A esposa se levantou para pegar um copo d´água. Carlos foi atrás. Recomeçava a ladainha, mas agora com contornos blasfemos. De que valia a oração antes do turno? Ela não queria ouvir, mas Carlos precisava dizer que todo mundo na fábrica, todo mundo, tá me ouvindo?, sem exceção, é hipócrita. De súbito, o Pai Nosso que antecedia o expediente perdeu seu valor. Não se sabe se porque Deus lhes tinha negado o pão nosso de cada dia ou porque Deus tinha feito Sua vontade – algo que Carlos, naquele momento, não era capaz de aceitar.
Até aquela hora, não havia menção sobre o que fazer dali para frente. O seguro-desemprego os ajudaria por um tempo. Também tinha a família. Sempre tem. Eles sabiam que não ficariam totalmente desamparados. Pela cabeça de Carlos passou a possibilidade de trabalhar como motorista de aplicativo. Por que não? Ou finalmente aceitar o convite do cunhado chato. E ainda por cima petista! Mas... fazer o quê?
Jantaram. À mesa, a mulher tentou desanuviar o ambiente tempestuoso com veja-bens e não-é-bem-assins. Aqui e ali ela riu, riu com gosto. Carlos, que não estava prestando atenção, se assustou, para logo em seguida encontrar algum consolo naquela exposição franca dos dentes e na melodia insólita da gargalhada. Aos poucos, e sem perceber, Carlos se embriagava de resignação.
Foram dormir cedo, sem ligar a televisão, como de costume. Ainda bem! Senão, Carlos teria ficado ainda mais irritado e com medo do porvir com aqueles comentaristas todos falando em venezuelização. Sem falar na imagem repugnante e onipresente do ditador, pelo qual Carlos nutria um ódio imponente e instintivo. No silêncio triste que os unia, a mulher pegou a mão do marido e a pousou em sua barriga. Maria chutou, ele riu, Maria chutou, ele pensou no preço da fralda descartável, Maria chutou e o coração dele se encheu de um amor inexplicável (e um tiquinho piegas, vai).
O sono demorou a chegar. Carlos se virava para a direita e começava a pensar que era azarado. Virava-se para a esquerda e começava a pensar que era um desgraçado. De barriga para cima, ressentia-se das escolhas que tinha feito na vida, e ainda mais das que a vida tinha feito por ele. De bruços, incomodava-o o tuntuntum do coração, num lembrete perpétuo de que sim, ele estava vivo. Sim, tinha contas a pagar, problemas, frustrações. E sim, este é um vale de lágrimas. Até que a enxurrada de raiva e cansaço o arrastou para os domínios do sono.
Carlos dormiu. Ao raiar do novo dia, porém, a explosão. Um estrondo grave que não era tiro nem escapamento de moto. Carlos se levantou como um personagem de desenho animado e, imóvel e de olhos arregalados, era como se aguardasse o impacto de um avião contra o solo. Naquele instante, porém, ele não pensou na demissão, nem no chefe, nem na política que tanto o angustiava. Carlos pensou apenas que estava vivo, que um novo dia, cheio de possibilidades, estava nascendo, e que em breve estaria reclamando alegremente do chorinho da Maria.
Texto fictício e inspirado nesta notícia: https://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2025/08/14/ex-funcionario-demitido-explosao-fabrica-grande-curitiba.ghtml




