

Banda que toca todos os domingos na feira da Praça Kantuta, no bairro do Pari, em São Paulo: bolivianos legítimos. (foto gentilmente cedida pelo repórter fotográfico Paulo Fehlauer do site Garapa – www.garapa.org)
Nada tenho contra músicos de rua. Mas peguei uma certa ojeriza àqueles bolivianos que tocam na XV. Quando comecei a trabalhar como jornalista, ainda como estudante e atuando como revisor, passava todos os dias pelo calçadão. E naquele horário, justamente na-que-le horário, eles sempre tocavam Guantanamera – alguém aí pode me explicar por que todo boliviano que se apresenta ao ar livre no Brasil toca essa música, que na verdade é cubana?
Parecia uma coisa programada. Bastava ver aquele gordinho com o jornal embaixo do braço caminhando a passos largos pra não chegar atrasado ao trabalho pra começar a fanfarronice: Yo soy un hombre sincero/ De donde crece la palma/ Yo soy un hombre sinceeeeeeeeeeerooooooooo…
Assim foi por dois anos. Até hoje tenho minhas dúvidas se aquela flautinha de bambu não foi usada para fazer lavagem cerebral em mim. Pois bastava eu pegar o primeiro texto do dia para revisar e lá vinha o refrão na minha cabeça justamente no momento que eu mais precisava de concentração: Guantamera, guajira guantanamera, guantameeeeeeeeera, guajira guantanameeeeeeera.
E foi com esse trauma que topei o convite da amiga Ana Carolina Moreno de visitar a feira dos imigrantes bolivianos na Praça Kantuta, no bairro do Pari, na minha esticada a São Paulo para o casamento de um amigo há duas semanas atrás (esse mundo está mesmo perdido: o Jones casou!).
Capitaneados pela Carol, paulistana daquelas, ô, meu! – com o agravante de ser são-paulina doente -, eu, Ewandro Schenkel e Felipe Lessa formamos um power trio de peso (em todos os aspectos) na tour. O projeto inicial naquele domingo ensolarado era ir ao Masp. Como acordamos tarde – sabe como é, a festinha do casamento estava animada, o uísque era bom… -, demos com a cara na porta. Mas, também, não sei por que fechar tão cedo a bilheteria. Pô, 17 horas é madrugada…
Ainda com os olhos grudados de remela (como é difícil acordar cedo…), decidimos ligar pra Carol pra ver se ela tinha um plano B pra aquele resto de domingão. Não queríamos voltar ao apartamento onde estávamos (obrigado Gina, obrigado Teco!) e pegar a xepa do Faustão. Topamos na hora a proposta da Kantuta.
Da estação Armênia de metrô à Praça Kantuta, víamos um ou outro sujeito com aquele trejeito latino-americano típico. Em bom português, com cara de índio mesmo. Chegando lá, a coisa se inverteu. Nós éramos os estranhos no ninho.
Eu, com essa pinta de Jaime Palilo, até me safei de parecer gringo. Já o Ewandro, que se for pros EUA vai preso por ser cover da moçada do Al Qaeda, e o Lessa, que só não é hooligan porque é “pé-vermeio” de Londrina e mais tranqüilo do que baiano com sono, não eram propriamente o perfil de quem toma chá de coca e cria lhamas no quintal de casa. Mas nada que levasse a rapaziada parceira do Evo Morales a nos molestar. Pelo contrário.
Já de cara senti o climão soy loco por ti América. A pedido da Carol, experimentei o tal do zumo de maní – suco de amendoim, ou “amennnduínnn”, como a Carol largou em bom paulistanês. A barraca parecia a do Chaves no episódio em que ele vende refrescos na vila. Até o panelão onde estava o suco e a concha para encher os copos eram iguais.
O Ewandro e o Lessa gostaram tanto da iguaria, que pelas caras pareciam estar levando uma facada nas entranhas quando provaram. Já eu não quis ser descortês. Para retribuir o preço camarada que a turminha de La Paz nos faz no gás natural, mandei ver dois goles bem generosos, daqueles de só molhar o beiço. Quando ia para o terceiro, estranhamente tropecei no ar e todo o conteúdo do deliciosíssimo (reparem que não pus o adjetivo superlativo entre aspas) zumo de maní foi para o bueiro. Coisa desse malandrinho intepestivo chamado Sobrenatural de Almeida – copyright ao finado Nelson Rodrigues.
Pois muito bem. Passeamos pela feira. O Lessinha adquiriu algumas camisas de clubes bolivianos totalmente originais – ao menos naqueles quarteirões do Pari, onde são produzidas por bolivianos em confecções de coreanos. Eu comi uma empanada. A Carol provou ser corajosa ao degustar um creme de leite com frutas cuja procedência era no mínimo duvidosa – se vocês vissem a bacia de plástico onde o doce era feito ao ar livre entenderiam do que estou falando. O Ewandrinos ficou vendo uns malucos assistirem a um discurso do Evito em um DVD que só não era pirata porque não tinha perna-de-pau e nem tapa-olho. E todos nós rimos de um folder que anunciava apresentação das gloriosas bandas Amar Azul, Internacional Carro Show e Khiswara en el gimnásio de la Portuguesa. A precios populares, ressalta-se.
E o mais bacana de tudo é que em nenhum momento a banda que estava lá – com muitos instrumentos de sopro e tambores – tocou Guantanamera. Só músicas legitimamente andinas. Afinal, mesmo morando no Brasil os caras da Kantuta sabem muito bem quem são: bolivianos da gema. Não cubanos de araque.



