Opinião

Monsieur Decock segue firme

30/11/2021 10:02
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Enquanto a Segunda Guerra Mundial transcorria, o jovem francês Emile Paul Decock tocava seu restaurante em Le Havre, cidade na região do porto da Normandia. O bistrozinho, chamado Les Palmiers, ficava junto a um hotel. O negócio ia bem, apesar da situação causada pelo conflito. Com a destruição da cidade pelas tropas alemãs, ele se viu obrigado a deixá-la e foi trabalhar na plantação de linho com seus irmãos.
Mas como a nova atividade não deu certo, Emile decidiu tentar a vida no Brasil, aconselhado por diplomatas e homens de negócios brasileiros que frequentavam seu restaurante. “Lá não tem guerra”, lhe disseram. Com o dinheiro da indenização paga pelo governo alemão, Emile acatou o conselho e em 1947 embarcou para o novo mundo deixando na França a mulher, Janine Mauricette, e as duas filhas pequenas, Lionele e Roseline.
Passou pelo Recife e Rio de Janeiro antes de colocar os pés em Curitiba. Achou as duas primeiras muito quentes. Já a europeia capital paranaense lhe caiu nas graças. Durante um tempo tentou retomar o negócio com a plantação de linho, mas novamente não foi bem sucedido. Na virada de 1949 para 1950, escreveu uma carta à mulher recomendando que não viesse com as filhas porque planejava retornar à França. Em vão. Elas já estavam a caminho do Brasil.
Um ano depois da chegada da família, Emile decidiu abrir um bar, batizado como Normandie, na Rua Cruz Machado esquina com a Doutor Muricy numa recatada Curitiba, que logo atraiu a atenção dos mocinhos e mocinhas da cidade pelas comidas e bebidas diferentes que servia. O bar durou até 1953, quando, já familiarizado com a cidade, o casal deu um passo maior e abriu o Île de France, restaurante de cozinha francesa, numa casa alugada na Doutor Muricy entre a Pedro Ivo e a André de Barros. O lugar começou a funcionar no dia 13 de fevereiro daquele ano. O pomposo nome foi emprestado da região homônima onde madame Janine havia nascido. Monsieur Decock comandava a cozinha enquanto ela, mais comunicativa, cuidava do salão. No mesmo ano, dona Janine engravidou. No dia 18 de novembro nascia o enfant Jean Paul Louis Roland Decock na maternidade da Rua Ubaldino do Amaral com a XV de Novembro. Os Decock carimbavam definitivamente seu passaporte no Brasil.
O Île permaneceu no endereço até agosto de 1957, quando, já consolidado como restaurante da alta sociedade, se mudou para a Praça 19 de Dezembro, na Rua Riachuelo, vizinho ao Passeio Público, em um imóvel próprio construído pelo patriarca. Ali funcionou até o dia 2 de outubro de 2021, encerrando com ares de grand finale um longo capítulo da história da alta gastronomia curitibana.
Foram incontáveis e elegantes noites sob o tilintar de flûtes de champagne embalados pela voz amargurada de Edith Piaf cantando La vie en rose. E, claro, ao incomparável menu que fez fama além de Curitiba. Celebridades e personalidades como Burt Bacharach, Paulo Autran, Albert Sabin, Ray Conniff, Pelé, Roberto Carlos, Elis Regina, Julio Iglesias, Chico Buarque e Caetano Veloso e políticos de todas as tribos, como Carlos Lacerda, passaram por suas mesas. O astro Anthony Quinn virou habitué quando passou uma temporada na cidade gravando um filme nos anos noventa.
Jean Paul cresceu vendo os pais trabalharem dia e noite. Quando dava, ajudava cuidando do caixa. Estudante de Engenharia Civil na Universidade Federal do Paraná, ele não tinha interesse em tocar o restaurante. Com a morte precoce da mulher, em maio de 1968, aos 45 anos, de câncer, seu Emile contratou um cozinheiro e foi para o salão. Permaneceu na função até 1975, quando Lionele, a filha mais velha, e o marido americano passaram a ajudá-lo no dia a dia. Em 1978 o casal voltou para os Estados Unidos e Jean os substituiu. Então com 24 anos, ele viu que seu Dia D havia chegado, antes que o pai pusesse em prática a ideia de fechar o Île. Nessa época já estava casado com a artista plástica carioca de origem chinesa Clara Chao Decock, cujos pais eram donos do Moinho Graciosa. Em dezembro daquele ano vestiu terno e gravata e assumiu o posto do pai no salão enquanto Clara, que tinha grandes dotes culinários, foi para a cozinha ajudada por seu Emile. Apesar de muito jovem, Jean desempenhou a função com a elegância e discrição dignas de um autêntico chevalier.
A ascensão definitiva dele se deu em 1981, com a morte do pai, aos 62 anos, vitimado por um câncer no pulmão. E assim a fama dos Decock como mestres da culinária chique da cidade prosperou, sempre atraindo a alta clientela e famosos que aportavam por aqui. Jantar no Île era para poucos e subir a escada que dava acesso ao salão, depois de ser recebido por manobristas vestidos com fraques e luvas brancas, era prenúncio de uma noitada de prazeres à mesa. Sempre à meia luz, os salões viviam lotados de comensais. Não é exagero dizer que o Île reinou absoluto nos últimos 40 anos, “com altos e baixos”, segundo o restaurateur. “Quando a vida noturna começou a cair, era difícil fazer três turnos”, diz.
Silvio José Dziedicz, garçom mais antigo da casa, trabalhava em hotéis e sempre indicava o restaurante para os hóspedes. Até que em 1989 foi contratado. Anos depois, virou o braço direito de Jean Paul e passou a desempenhar também outras funções, como barman, maître, responsável pelas compras e entregador. “Aos domingos costumávamos almoçar na casa de clientes que nos convidavam”, conta o fiel escudeiro.
Em 2019, o velho e bom Île começou a dar sinais de fadiga. A clientela já não era mais a mesma. Muitos clientes haviam morrido e os mais jovens não tinham o hábito de frequentá-lo. Jean e Clara pensaram em passá-lo adiante. Com três filhos – Paul, de 40 anos, portador de Síndrome de Down; Débora, 39, ex-comissária de bordo da Air France e residindo no exterior há anos; e Diana, 36, professora universitária –, o casal não encontrou um sucessor em casa.
Com a pandemia as coisas pioraram. Um antigo cliente e amigo da família sugeriu uma parceria com investidores interessados em se associar ao restaurante para não deixar que fechasse as portas. Foi quando entrou em cena Márcia Oliveira, dona da consultoria MMO Marketing e Gestão, idealizadora e uma das sócias do projeto de revitalização do Île de France, ao lado do marido, Bruno Miraglia.
Interrompida pela pandemia, só agora a mudança está se concretizando. “Desde que iniciamos as conversas para colocar esse plano em pé, o Jean Paul, sempre com a serenidade que lhe é peculiar, dizia que tudo era para dar continuidade à história da sua família”, diz ela, às voltas com as últimas providências para a inauguração da nova sede, agora no Batel, prevista para este mês.
O grupo de dez investidores, do qual faz parte o próprio Jean Paul, fechou questão numa coisa: que ele continuasse à frente do restaurante. Com 70 anos recém-completados, o filho de seu Emile e de dona Janine se mostra entusiasmado com o novo capítulo na história do empreendimento familiar. Ele diz que se não fosse este projeto, o Île duraria no máximo mais cinco anos. Antes de assinar o contrato, ligou para as duas filhas para perguntar pela última vez se uma delas queria assumir seu lugar. Diante da recusa de ambas, fechou o negócio com os novos parceiros. Com a atitude, o curitibano Jean Paul Louis Roland Decock deixou aliviada a legião de fãs do Île de France. Edith Piaf que prepare a garganta para continuar soltando seus rasgados trinados de amor.