Conforme esperado, o documentário Democracia em Vertigem, de Petra Costa, foi indicado ao Oscar em sua categoria. Digo esperado, posto que a Netflix, detentora de seus direitos, já havia apontado a obra como sua “indicação" à Academia, ciosa do papel politicamente correto que tem cumprido aqui nas plagas do terceiro mundo.
É, ainda assim, um caso insólito: o documentário de Petra não cumpriu sua função “documental" — tampouco artística — no retrato falsificado que construiu da realidade brasileira. A tese que defendeu, baseada num “acordo espúrio” das elites políticas contra um partido que, embora tenha cometido alguns excessos (coisa pouca, é da vida…), fez muito pelo Brasil, é conveniente, apenas, para a historiografia petista.
Seu filme não retrata as maiores manifestações políticas do mundo na última década. Volto a repetir: foram as maiores manifestações políticas no mundo, com milhões de brasileiros — voluntários! — ocupando as ruas de mais de duas centenas de cidades a cada convocação feita nas redes sociais.
Ignora, também, o impacto transformador das redes e a ascensão de novos atores políticos que subverteram não apenas a ordem estabelecida — petista — , mas também o jogo arcaico de poder dos supostos “idealizadores" da queda de Dilma Rousseff: Aécio Neves, Gilmar Mendes e o PMDB.
O documentário de Petra é perverso não apenas pelo aspecto fraudulento desta narrativa, mas também por trabalhar, conscientemente, a ideia fatalista de que o brasileiro é passageiro inerte e passivo no bonde da história.
Na obra, a opinião pública é tratada como vítima da manipulação rasteira de Aécio e seus colegas; Lula e Dilma — verdadeiros "legatários da luta democrática" — são os representantes caídos de um povo que desaprendeu a lutar.
A democracia de Petra, nesse sentido, é muito engraçada. Ela é válida para justificar o processo histórico que transformou o PT em força hegemônica; virtuosa quando se entrelaça com a história de sua família — corrupção da empreiteira à parte!; é atacada quando a lei se faz valer diante de seu grupo político; e embriagada, perplexa — em vertigem — quando expressa na força política vencedora de seus adversários ideológicos.
Não me parece coincidência que outra obra patrocinada pela Netflix, a séria O Mecanismo, sucumba dos mesmos males que o filme de Petra. Na peça de Padilha, é também Aécio e os peemedebistas que lideram o processo de queda da presidente; o povo, outrossim, é gado que não merece sequer uma citação.
Para o diretor, ao menos, há a desculpa de que toda sua obra política — basta ver Tropa de Elite 2 — baseia-se na ideia de que há um “sistema”, um “mecanismo”, que opera independentemente da democracia e se perpetua na base de acordos e esquemas.
Independentemente das razões, tanto O Mecanismo como Democracia em Vertigem advogam a mesma tese. O argumento reafirma a falsificação histórica construída pela academia petista, que pinta o processo de impeachment como golpe e a prisão de Lula como perseguição do judiciário.
É sintomático: tão logo o documentário de Petra foi indicado ao Oscar, o ex-presidente petista surge no twitter parabenizando-a. É seguido por companheiros de partido e linhas auxiliares como o PSOL —mobilizando a militância para comemorar a desforra. Tão espontâneo e natural quanto as manifestações vermelhas que defendiam a soltura de Lula.
Esta Gazeta do Povo, sob a pena de Paulo Pozonoff Jr., apresentou excelente análise comparativa entre Democracia em Vertigem e ‘Não vai ter Golpe!’ — documentário representando o lado contrário —, dirigido por Alexandre Santos e Fred Rauhl. O ponto mais significativo de seu artigo resume a diferença central de abordagem, tanto estética quanto política, entre as duas obras:
De um lado, tem-se as imagens límpidas de Petra Costa, com o tom choroso, mas muito profissional, e as imagens grandiosas que analisam o evento histórico com aquele tom professoral de quem enxerga o mundo de cima para baixo.
De outro, temos o cinema com cara de vídeo do YouTube de Alexandre Santos e Fred Rauh, com a câmera sempre agitada e ansiosa, mesmo quando estática, certa sem-cerimônia dos atores políticos, opiniões assertivas e graves dos entrevistados, um quê de humor que seria impensável numa peça de propaganda política e os planos baixos de quem não está dialogando com o espectador do alto de um pedestal.
Paulo é certeiro em seu argumento: a linguagem construída pela cineasta é, em resumo, a perspectiva de uma elite distante da realidade -- mas ainda em choque com a perda da hegemonia que considerava natural, como dado da realidade.
É a mesma elite que olha de cima para baixo, perplexa, procurando respostas e validação mútua para a realidade paralela que desvanesce a cada impeachment de Dilma, a cada eleição de Trump.
A elite de Petra, da Netflix, da Academia, julgando-se acima, parece ter medo da própria altura. A vertigem com que encaram a realidade — rebelada contra suas certezas e narrativas — não parece lhes fazer bem.
Aplaudir-se mutuamente, legitimando a própria farsa, não irá encerrar a tontura que lhes aflige; encarar a realidade, ainda que tarde, é a única solução para o mal-estar que não sabem — mesmo que tentem — explicar.
Moraes mandou prender executiva do X após busca pela pessoa errada e presunção de má-fé
Defesa de Constantino vai pedir suspeição de Moraes e fez reclamação ao CNJ contra auxiliares do ministro
O fechamento do X no Brasil e a comemoração no governo Lula; ouça o podcast
Impeachment de Alexandre de Moraes ganha força após novo vazamento de mensagens
Inteligência americana pode ter colaborado com governo brasileiro em casos de censura no Brasil
Lula encontra brecha na catástrofe gaúcha e mira nas eleições de 2026
Barroso adota “política do pensamento” e reclama de liberdade de expressão na internet
Paulo Pimenta: O Salvador Apolítico das Enchentes no RS
Deixe sua opinião