• Carregando...
O Padre vermelho e o estrangeiro ideológico
| Foto:

A solidariedade política é um sentimento de valor ambivalente. Por um lado, é natural que ele apareça. Cidades, nações, grupos políticos, estamentos, comunidades, partidos, unidades políticas (dos mais diversos tamanhos. A força destes vínculos é proporcional ao sentimento de unidade do grupo; nesta operação aglutinadora a natureza humana já se evidencia em toda a sua complexidade. Pois há um elemento problemático na solidariedade, que é a tensão fundamental contra quem, de fora da unidade, parece ameaçá-la por sua simples presença.

Essa posição desconfortável é a qualidade específica que recobre o estrangeiro, assim como é também a qualidade que ele evoca no grupo coeso. O estrangeiro é o estranho, o forasteiro, a presença incômoda. Por certos traços peculiares, ele é rechaçado.

No caso de uma sociedade liberal democrática como a nossa, pautada pela universalização da cidadania e pelo entendimento cosmopolita advindo do Iluminismo, há quase uma imposição social em absorver o étnica, racial ou geograficamente estrangeiro. Essa mesma expectativa, que às vezes se impõe até as raias da histeria (vide os excessos da militância multiculturalista) não subsiste, contudo, para outras formas análogas de estrangeirismo, entre as quais aquela captada na figura do estrangeiro ideológico.

Se esse preâmbulo algo sociológico parece estranho em um artigo jornalístico, ele tem, no entanto, uma serventia prática: enquadra a reação da esquerda brasileira ao episódio mais recente das polêmicas nacionais - a defesa coletiva do pe. Júlio Lancelotti. Tal qual um grego enfurecido diante de um meteco particularmente abusado em Atenas, a esquerda se pôs a rechaçar escandalosamente, apaixonadamente o estrangeiro da vez: o pré-candidato a prefeito pela cidade de São Paulo, Arthur do Val (PATRI).

A defesa do padre Lancellotti pode ser examinada na internet. Em seu nome saíram Sâmia Bonfim e Manuela D´Ávila; artistas e jornalistas de vários portais. Como em toda defesa irrazoável, sua tônica geral resvalou em caricatura. Transformado em uma espécie de Sr. Richfield mais bombado (o inesquecível patrão de Dino na Família Dinossauro, exemplo de capitalista voraz e desumano), as críticas a Arthur criavam um espantalho sobre o que ele não disse e atribuíam a ele o que ele não fez.

Era como se Arthur odiasse os pobres e a assistência social em si mesma. Olhando o dependente químico com ódio de classe, o único motivo para ele criticar o padre seria, supostamente, guardar resquícios de um higienismo antipobre.

É uma imagem totalmente falsa. As razões da crítica do Arthur são fáceis de compreender. Mas, como ser didático nunca é demais, vamos para o mérito da questão dividindo-a por partes:

1) O primeiro aspecto da crítica é a de que a assistência social tal como tem sido realizada não resolve o problema. Não se pode refutar essa crítica, já que a existência da cracolândia a olhos vistos, e o problema envolvendo dependentes de drogas, traficantes e poder público simplesmente está posto. A prova disso é empírica. Basta ir lá e ver.

Entretanto, pode-se objetar que a assistência social não tem a obrigação de resolver o problema, e sim de mitigá-lo. E que esse objetivo, o de reduzir o impacto do problema, é, bem ou mal, alcançado para os beneficiados do serviço. Neste caso, é preciso prestar atenção ao outro aspecto da crítica, que foi reafirmado em inúmeras entrevistas. Apesar disso, a esquerda simplesmente passa ao largo desse argumento e finge que ele não existe e esse aspecto é o seguinte:

2) Os aparatos sociais de assistência estão presentes no próprio local em que a dependência é reproduzida estruturalmente. Obviamente, isso não faz sentido. O resultado prático é uma assistência social que atua funciona, para ilustrarmos, como alguém que queira levar água com um pote furado. Os dependentes químicos tornam-se alvos preferenciais do tráfico, continuam reproduzindo o mesmo padrão e não conseguem efetivamente se reabilitar. A retórica de que a Cracolândia resiste (a quem? a que?) é a demonstração de um grave nonsense.

Diante disso, um argumento (muito melhor do que os que geralmente têm sido levantados pela própria esquerda) é que essa é uma situação factual que o trabalho de assistência não pode resolver, mas apenas o poder público. De fato, a crítica de Arthur não poupa o Estado. Ela evidencia a relação espúria entre o poder público que não resolve o problema e uma assistência social que tampouco o resolve. Aí chegamos à terceira dimensão da crítica

3) As ONGs que tratam da questão da cracolândia recebem dinheiro de doações privadas e, algumas delas, público. Como esse dinheiro está sendo efetivamente empregado? Qual a caixa preta da Cracolândia que ninguém tem coragem de abrir? Essas questões, cruciais no debate público, foram expostas por Arthur. Ele tocou na ferida das ONGs.

O que se percebe nessas críticas são duas coisas: primeiro, um compromisso de resolver o problema, afirmado e reafirmado. Caso Arthur seja eleito, seus críticos terão um excelente meio de averiguar se ele realmente é capaz de cumprir o que prometeu - o teste da realidade, afinal, é a demonstração última da eficiência. Ele diz que resolve. É legítimo o ceticismo. Será que resolve? Mas não podemos reduzir a crítica e a promessa eleitoral a algum higienismo antipobre ou ao rechaço puro e simples do assistencialismo. Claramente, não se trata disso.

Em condições normais, onde um grupo de assistência social reproduzisse o problema, a esquerda se apressaria em fazer longas análises sociológicas para mostrar o aspecto estrutural do problema e, efetivamente, desmascarar os agentes em questão. Essa, aliás, é uma recorrente crítica ao assistencialismo social evangélico, promovido por setores cristãos considerados conservadores. Por que não faz isso neste caso?

A razão é simples. Padre Lancellotti não é um sacerdote qualquer, mas alguém com relações próximas, profundas, com a esquerda brasileira. A sua atuação pública é política, e ela tem um viés determinado. Diante do questionamento do estrangeiro político, do indivíduo estranho ao grupo, a resposta a ele se torna estridente e histérica porque não se trata da defesa do assistencialismo na cracolândia.

Ela é a defesa de um grupo que promove um tipo específico de assistencialismo contra aquele que ameaça, por suas palavras e por sua promessa eleitoral, a manutenção de uma sistema social viciado, cuja reprodução indefinida é, de fato, o problema por excelência. Portanto, ao invés de criticarem Arthur, ele deveria ser, antes de tudo, ouvido com a devida isenção. E ouvi-lo é tudo aquilo que eles não querem de modo algum, embora balancem o totem fetichizado do “diálogo”

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]