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Roberto Motta

Roberto Motta

Crônica

O rosto que soletrava “fome”

(Foto: Imagem criada utilizando Chatgpt/Gazeta do Povo)

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Aconteceu há quinze anos, por volta de dez horas da noite de um feriado. Chovia e fazia frio. Havia a expectativa de que eu preparasse o jantar. Mas me enrolei com o trabalho e de repente ficou tarde. Então decidimos ir ao mercado, meu filho e eu, trazer um frango, uma salada, qualquer coisa simples para saciar a fome.

Enquanto procurava vaga para parar o carro notei um vulto de pé na calçada. Ele segurava algo com uma mão e com a outra fazia aqueles sinais que os flanelinhas fazem e que, de alguma forma, acham que ajudam o motorista a estacionar.

Parei o carro e descemos, João e eu.

O homem devia ter uns quarenta e poucos anos. Usava um boné. Segurava uma embalagem de ovos – daquelas onde cabem duas dúzias – e tinha no rosto uma expressão terrível. Parecia desespero.

O que temos e o que somos não é apenas mérito nosso. Dependemos também de sorte, do acaso e de bençãos

Ele murmurou alguma coisa. Não me recordo das palavras. Lembro que ele não pediu dinheiro. Pediu comida.

Apresentou os ovos que trazia na mão como evidência de sua necessidade. No rosto queimado de sol, com um início de barba e molhado pela chuva, estava escrita a palavra FOME.

Sei coisas demais sobre crime e por isso tenho cautela excessiva na rua. Principalmente à noite. Principalmente em locais desertos. Mas agi contra meu instinto e fiz o que recomendo aos outros que jamais façam: abri a carteira, retirei uma nota e entreguei ao homem.

Entramos no mercado, João e eu, procurando um jantar nas prateleiras. Mas em todas as prateleiras eu via o rosto do homem.

O rosto que soletrava F-O-M-E.

Me arrependi do que fizera. O homem pedira comida para matar sua fome e não dinheiro. Era comida que eu deveria ter dado. Eu estava cercado de comida.

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“Filho”, eu disse ao João, “vamos na seção de padaria. Vou comprar uns pães para aquele rapaz”.

Olhei para fora, procurando pelo vulto, mas as luzes do mercado me cegavam. Lá fora só havia escuridão e chuva. O que temos e o que somos não é apenas mérito nosso. Dependemos também de sorte, do acaso e de bençãos.

Qualquer um de nós poderia ser aquele homem, desesperado pela fome, segurando uma caixa de ovos na chuva.

Qualquer um de nós.

Era isso que eu pensava enquanto escolhia o jantar da minha família.

Paguei as compras e voltei à rua com meu filho levando um saco de pães quentes. Onde moraria aquele homem? Em que favela ou bairro distante vivia sua família? Como ele sobrevivera durante os longos meses do “fique em casa”, sem emprego, sem trabalho, a cada dia com menos comida? Como ele conseguira controlar o desespero que eu vira no seu rosto naquela noite fria?

Essas são respostas que eu jamais terei. Quando cheguei no meu carro a rua estava vazia.

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