
A questão não é de hoje e, mesmo assim, ainda alimenta discussão. Principalmente por parte daqueles que, simplesmente, não leram ou não leram a coisa direito. Ou não passaram da orelha do livro, no caso, Raízes do Brasil.
Por conta de um bate-papo no Bar VIP da Vila Piroquinha, onde, aliás, esteve ocasionalmente, en passant, Natureza Morta viu-se obrigado a entrar na dança.
– Estavam descendo a lenha no brasileiro cordial, do Sérgio Buarque de Holanda.
– É, volta e meia, e agora parece que estamos em mais uma delas, ressurge a polêmica. Polêmica que não procede. Mas há ainda quem insista em ver e interpretar o brasileiro cordial como um tipo bonzinho – acrescentou professor Afronsius.
Uma questão de palavra
Como mata a cobra e faz questão de mostrar a setra (“é, comigo é na pedrada”), Natureza recorreu ao próprio Sérgio Buarque de Holanda. Em carta ao poeta Cassiano Ricardo, explica que “não me agarro com unhas e dentes à expressão cordial, que mereceu suas objeções”.
Ressaltando que “não me convenceram seus argumentos em contrário, quando opõe bondade a cordialidade”, diz que “não precisei recorrer ao dicionário para lembrar que essa palavra – cordial -, em seu verdadeiro sentido, e não apenas no sentido etimológico, como v. quer presumir, se relaciona a coração e exprime justamente o que pretendi dizer”.
A sede dos sentimentos
Prosseguindo, escreve o mestre: “Como, além disso se acreditou, mal ou bem, que o coração é a sede dos sentimentos, e não apenas dos bons sentimentos, minha nova explicação, ao lembrar que a inimizade “bem por ser tão cordial como a amizade, nisto que uma e outra nascem do coração, seria, se v. quiser, uma ampliação, não seria uma retratação”.
“Não, meu caro Cassiano Ricardo, o significado que dei à palavra cordial não o fui buscar, Deus me livre disso, na noite dos tempos. Os seus dois sentidos a que aludi coexistiram sempre, ao que eu saiba. E não apenas no Brasil. Mesmo como fecho de cartas eles não deixam de surgir em outras terras e outras línguas (cordialement, herzlich, heartily…), sem prejuízo notório para seu significado real”.
Brasileiro nem melhor nem pior
Mais adiante, confessa: “Cabe-me dizer ainda que também não creio muito na tal bondade fundamental dos brasileiros. Não pretendo que sejam melhores, ou piores, do que outros povos. (…) Por fim quero frisar, ainda uma vez, que a própria cordialidade não me parece virtude definitiva e cabal que tenha de prevalecer independentemente das circunstâncias mutáveis de nossa existência. Acredito que, ao menos na segunda edição de meu livro, tenha deixado este ponto bastante claro. Associo-o antes a condições particulares de nossa vida rural e colonial, que vamos rapidamente superando. Com a progressiva urbanização (…) , o homem cordial se acha fadado provavelmente a desaparecer, onde ainda não desapareceu de todo. E às vezes receio sinceramente que já tenha gasto muita cera com esse pobre defunto.
Cordialmente. Sérgio Buarque de Holanda”.
A carta saiu publicada na revista Colégio, número 3, São Paulo, setembro de 1948, e incorporada à terceira edição de Raízes do Brasil, revista pelo autor, José Olympio Editora, Rio, 1956. A primeira edição é de 1936.
ENQUANTO ISSO…




