Você deixaria o seu filho comer um saco inteiro de açúcar? Colherada atrás de colherada goela abaixo, sem nem mesmo um copo d’água para ajudar a empurrar? E não digo uma vez só, mas todos os dias: um saco de açúcar por dia. Causa horror só de pensar nos efeitos que isso teria sobre o estado da criança, que ficaria extremamente aflita, agitada, ansiosa, irritada, sem falar, depois, na abstinência, a tristeza, a agonia — e ainda nem consideramos os efeitos de longo prazo. Mas repare agora se por acaso as crianças não experimentam efeitos semelhantes, ainda que não tão drásticos, e muitas vezes se mostram assim: impacientes, insaciáveis, frenéticas e, sobretudo, entediadas, esgotando qualquer coisa que poderia ser divertida em menos de um minuto. “Mãe, o que eu faço agora? Mãe, do que eu posso brincar? O que a gente pode fazer? Não tem nada pra fazer. É tudo chato!”. Esses sintomas, tão estranhos à natureza de uma criança, e que não parecem ter feito parte da nossa infância, são, porém, muito comuns hoje em dia, em quase todos os lares. Por que isso acontece? O que há com as crianças de hoje em dia?
Bem, assim como seria no caso do pacote de açúcar, esse quadro que nós de fato vivenciamos é consequência de uma outra ingestão indevida, que é, do mesmo modo, absurda, e do mesmo modo destrói a ordem interna da criança. Trata-se de uma gula da imaginação, que se dá no consumo do conteúdo frenético das telas: as telas da tv, dos celulares, tablets e computadores, as imagens e sons das redes sociais, aplicativos, vídeos e jogos.
Muitos são os motivos que podem nos levar a desejar que as crianças sejam expostas a essas telas: pode ser, simplesmente, que as queiramos distraídas por uns momentos, porque estamos ocupados, cansados, irritados ou com dor de cabeça, ou porque queremos um tempo para conversar com nosso marido ou esposa, ou para podermos fazer qualquer outra coisa sem a sua interferência, como cozinhar para elas próprias, talvez. Nesse caso, ter concebido o expediente das telas como uma alternativa possível, ainda que não ideal, será sempre uma tentação muito grande, e você certamente vai usá-lo. Mas pode ser, também, que todos os amigos e colegas dos nossos filhos tenham esses aparelhos, e portanto o hábito de utilizá-los, e não queiramos que eles fiquem isolados, sem assunto, sem participar daquilo que o grupo da sua idade faz. Pode ser, ainda, que ofereçamos essas telas a eles por um desejo de proporcionar-lhes a maior quantidade possível de estímulos, para que desenvolvam habilidades, aprendam coisas, aproveitem todos os “períodos críticos” do seu desenvolvimento e não desperdicem nada de todo o potencial da sua neuroplasticidade. Este último ponto eu gostaria de tocar com mais calma, e voltarei a ele numa próxima ocasião. O caso aqui é que, seja lá qual for o seu motivo, esse recurso, na minha opinião, não deveria nem sequer ser considerado uma possibilidade, e vou explicar por quê.
Repare como as crianças são naturalmente encantadas com o mundo que as rodeia. Diferentes de nós, para quem as coisas do mundo, em geral, já se tornaram algo normal, ao qual estamos acostumados, para as crianças tudo tem um frescor de novidade e está encoberto por um véu de mistério que atrai e deslumbra. Recém-chegadas ao mundo, ainda lhes falta desenvolver plenamente a capacidade de distinguir cada coisa entre a massa de impressões que lhes chegam, e de dimensionar cada um dos eventos que está, por assim dizer, ingressando em seu interior. Nós podemos compreender esse grande fascínio como resultado da imaturidade de uma das faculdades humanas, a razão, e também o seu progressivo desenvolvimento, apoiado no desenvolvimento do corpo e das capacidades corporais, como uma “escalada da razão”.
Diferentes de nós, para quem as coisas do mundo, em geral, já se tornaram algo normal, ao qual estamos acostumados, para as crianças tudo tem um frescor de novidade e está encoberto por um véu de mistério que atrai e deslumbra
O primeiro passo nessa escalada é entrever o contorno das coisas, é discerni-las do grande borrão que o mundo, a princípio, lhes parece ser. Lá por volta dos dois meses, os bebês distinguem o nosso rosto, e esboçam seus primeiros sorrisos de satisfação. Depois, por volta dos oito meses, o bebê passa a ser capaz de captar, nesses contornos, a essência das coisas, e pode ficar observando, por um longo e delicioso tempo, um mesmo cachorro, uma formiga levando uma folha, uma bolha de sabão. Ele começa, em seguida, a calcular as relações de causa e efeito, e poderá gastar horas mudando a água de um recipiente para o outro, a areia para dentro e para fora do balde, ou mesmo puxando uma toalha para ver tudo cair e derramar outra vez. Não, as crianças são estão, neste momento, nos desafiando, querendo nos irritar ou chamando a nossa atenção. Elas querem imprimir em si mesmas, de novo e de novo, aquela forma, para que sua razão incipiente opere sobre ela e capte tudo que ela tem a oferecer, a esgote em seus vários aspectos e a integre, absorva e confirme em sua memória, como quem imprime uma marca na cera, mas uma cera ainda um pouco mole, que exige muita repetição. Progressivamente, o mundo começa a parecer um lugar estável, com sua coleção de formas essenciais e suas relações, seus padrões de causa e efeito. A razão a instala na realidade, e aponta para a unidade do ser. Com o tempo, ela conseguirá alçar vôo desde as realidades materiais para vislumbrar as essências imateriais, e distinguir, nas variadas situações, a justiça, a lealdade, a nobreza, e saber apreciar, assim, os dramas humanos. O desenvolvimento da razão faz algumas coisas deixarem de ser novidade, como era, no início da vida, o simples vôo de uma borboleta ou uma lagartixa colada à parede, mas abrem o nosso horizonte para realidades cada vez mais insuspeitas. (E podemos aproveitar a ocasião, inclusive, para avaliar em que ponto nós, adultos, deixamos a escalada da nossa razão: se avançando na compreensão de realidades imateriais mais elevadas, ou estagnada numa maneira materialista e utilitária de ver as coisas e as pessoas.)
O nosso papel nesse processo de amadurecimento da razão é absolutamente fundamental. Nosso, digo, dos pais, ou de qualquer educador ou do principal cuidador da criança durante esse seu crescimento. Isso porque a quantidade de coisas encantadoras e deslumbrantes que rodeiam a criança é muito, muito maior do que ela pode abarcar — o mundo é grande —, e o que ela precisa ainda desenvolver é o critério, o senso de proporção e de relevância relativa de cada coisa no conjunto da vida. O adulto é, para o pequeno, a sua base de exploração: é aquele que modela para ele a realidade, que orienta o seu olhar encantado, mostra-lhe o valor moral dos acontecimentos e diz como se sentir e como se portar diante deles, e, assim, revela para ele as coisas que estavam ocultas.
A atenção é como um porteiro da memória. O papel do educador é treinar esse porteiro, ainda inexperiente, e instrui-lo nessa atividade de pesar a relevância de cada coisa, para saber o que barrar e o que reter, o que será descartado e o que será guardado nesse tesouro. Por isso é tão importante que esse educador seja, para a criança, uma figura de afetividade constante, previsível, cujos critérios de importância, de valor, de censura, em suma, de certo e errado, sejam invariáveis, ao mesmo tempo que devem ser personalizados, sensíveis às necessidades do momento e de cada criança em particular — justa, dando a cada um e a cada momento o que lhe é devido, e não equivocadamente “igualitária”.
Com o tempo, ela conseguirá alçar vôo desde as realidades materiais para vislumbrar as essências imateriais, e distinguir, nas variadas situações, a justiça, a lealdade, a nobreza, e saber apreciar, assim, os dramas humanos
Pois bem. É exatamente essa figura, de fundamental importância, que é suprimida no contato com o conteúdo multimídia das telas. A criança que vive à base de telas é privada dessa modulação, dessa mediação amorosa que deveria ensinar a temperança ao porteiro da sua alma. O conteúdo multimídia é uma enxurrada de informações desconexas, que invade, de uma só vez, a imaginação da criança, sem nenhum critério e sem nenhuma interface humana, e, assim como um saco de açúcar saturaria o paladar e empacharia o estômago, as imagens velozes e coloridas das telas saturam os seus sentidos mais intelectuais — a visão e a audição, as principais portas da imaginação —, e empacham a memória, que fica extasiada e, logo em seguida, anestesiada. Esse excesso de estímulos externos não pode ser digerido, isto é, articulado e absorvido pela inteligência com a ajuda da razão, e portanto não alimenta, apenas vicia. Ele supera em muito aquele encantamento natural, aquela fome de conhecer o mundo, e anula a capacidade que a criança tinha de motivar-se por si própria. E depois, como numa abstinência, angustiada e entediada, ela vai exigir de nós, quase pedindo socorro, uma nova dose cavalar daquilo para o seu cérebro.
É assim que a criança fica incapaz de brincar sozinha, e de se entreter com as coisas simples, de viver aquele ócio salutar, aquele maravilhoso silêncio, que é na verdade um trabalho muito profundo — do menino que fala baixinho, inventando histórias com seus bonecos, ou que arrasta o carrinho por cima dos móveis; ou da menina que cozinha para suas bonecas, ou que forma na areia um bolo, ou um castelo... Ou das crianças que, juntas, não precisam de mais do que uma faísca de inspiração: “Agora a gente era...”. A brincadeira é a atividade infantil por excelência, pois é aí que elas aprendem a narrar suas experiências, com começo, meio e fim, e a pôr à prova as relações de causa e efeito, as situações, os sentimentos, enfim, é brincando que a criança processa e integra aquelas maravilhas que absorveu do mundo, e começa a construir, nos rudimentos, a sua identidade biográfica, a sua personalidade.
Nesse contexto fica mais fácil compreender a diferença entre a exposição ao conteúdo das telas e aquilo que pode proporcionar a leitura de um livro. O conteúdo multimídia, ao dar tudo, tudo em excesso, e abarrotar a memória, atrofia a faculdade da imaginação. Essa gula provoca na mente da criança também uma preguiça, e ela fica acostumada a que tudo esteja dado, a não precisar buscar, na realidade, a experiência a que a linguagem se refere, e nem a recrutar, dentro de si, o que seria necessário para se colocar no lugar do outro e ter empatia por ele. A linguagem do livro, por sua vez, é aberta, e exige, para que se desfrute de verdade da leitura, que a imaginação vá buscar, no arsenal de experiências vividas e de sentimentos, algo que preencha de sentido aquilo que diz o autor; ou, se não houver experiência correspondente, deixa na alma umas lacunas, que serão alegremente preenchidas por uma vivência posterior ou por analogias, mas buscadas sempre na realidade.
Essa gula provoca na mente da criança também uma preguiça, e ela fica acostumada a que tudo esteja dado, a não precisar buscar, na realidade, a experiência a que a linguagem se refere, e nem a recrutar, dentro de si, o que seria necessário para se colocar no lugar do outro e ter empatia por ele
Eu tenho certeza de que você não deixaria os seus filhos cometerem o absurdo de botar para dentro da barriga um quilo de açúcar, todos os dias. E também estou certa de que não deseja que eles sejam crianças apáticas e entediadas, tristes, para quem o mundo não tem a menor graça. E pior: pessoas limitadas à realidade material, incapazes, em sua busca por saturar novamente os sentidos, de galgar realidades mais elevadas; de enxergar, através das simples realidades visíveis, as invisíveis. Então, por mais que pareça penoso mudar de hábitos, eu sugiro que deixemos de considerar a hipnose das telas como uma alternativa, como um escape plausível ou como uma possibilidade dentro da rotina que construímos com as crianças. Não pense em quantas horas eles “podem”, segundo os médicos e os cientistas, ficar diante das telas; pense em tudo o que eles estão perdendo — na construção de sua personalidade, no florescimento de suas virtudes, no crescimento no amor — enquanto estão ali, distraídas, ingerindo tanta coisa sem importância. Não dê ao seu filho um saco de açúcar imaginário, só porque os outros pais estão dando, ou porque isso vai permitir que você termine de fazer alguma coisa. Nenhuma outra coisa é mais importante, em nossa missão de educar, do que conduzir para o alto o olhar maravilhado das crianças e, junto com o olhar, o seu pequeno coração.
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