Como somos distraídos... São tantos os detalhes que deixamos passar, tanta riqueza que deixamos escapar, dia após dia, de nossos olhos desatentos, pois estamos sempre ocupados, e sempre atrasados, e pensando sempre em outra coisa. Pode ser que, tocando a vida assim, continuamente para o futuro — para quando ela há, enfim, de começar de verdade —, transformemos todo o nosso presente num passado de aflição, perdido. Pode ser que, ao fim de uma semana, ou de um semestre, de um ano, pode ser que, ao fim de dez anos, olhemos para trás e perguntemos: “E eu, onde estive esse tempo todo?”.
Falei, recentemente, sobre o estado a que nos induzem, hoje em dia, o marketing e as redes sociais, essas ferramentas da incultura contemporânea que, adestrando os nossos impulsos animais, tornam-nos menos humanos, e mais parecidos com a pombinha da experiência behaviorista. Faltou falar sobre esse outro aspecto, igualmente fundamental — e que é igualmente lesado, corroído, roubado de nós por essa dinâmica mental —, que é a nossa atenção, a nossa presença diante de nós mesmos, nossa consciência inteiriça que precisa estar sempre presente.
Essa corrida desabalada pela próxima gratificação, pelo estímulo que aplaque a fissura do nosso cérebro, e também os cinco dias de trabalho que tentamos não ver passar, entorpecidos, para logo nos afogarmos na compensação de um fim de semana de prazeres, que num piscar já acabou! Tudo isso simplesmente rouba de nós o presente, nos mantém numa constante tensão em direção ao tempo futuro, roubando de nós, assim, toda a nossa vida, que não é senão presente — o único tempo que existe verdadeiramente, e a única vida que nos cabe viver. Que dizer então das fotos e dos stories que precisam registrar tudo — melhor dizendo, que precisam criar uma imagem artificial e pretensamente pública de nós, dos nossos eventos, para que então sintamos que eles realmente existiram, embora lá mesmo, ao vivo, não estivéssemos atentos — para que sosseguemos nessa falsa e contraditória paz? Essa ilusão rouba de nós a presença diante de nosso próprio ser que está por fazer, a biografia que poderíamos estar escrevendo com nossas ações, e nos dá em troca... uma timeline, a paródia virtual de uma vida; uma sucessão de alegrias digitais, de imagens, fúteis como um balão que estoura.
Quantos detalhes deixamos passar... Detalhes de verdade, pequenos gestos, palavras, pequenas memórias em comum com nossos familiares e amigos, que podiam conter em si, como um microcosmo, uma colossal riqueza invisível, toda a nossa felicidade! Quanto fruto de felicidade não poderiam dar todas as pequenezas da nossa vida doméstica, de trabalho, de nossa lida cotidiana, se estivéssemos ali, presentes, ao mesmo tempo servindo-nos deles como meios para nos doar, e espiritualizando-os, no fogo vivo da nossa atenção. Seria como fazer jorrar fontes secretas de pequenos buracos no chão... Gosto de lembrar, como alegoria dessas coisas, aquilo que aconteceu com Johann Sebastian Bach, o maior compositor de todos os tempos, cuja história está cravejada por uma lendária e curiosa anedota póstuma.
Embora fosse admirado e respeitado como o maior em seu tempo — não apenas como compositor, mas como instrumentista, cantor, professor, maestro e construtor de instrumentos —, após sua morte, em 1750, a obra de Bach caiu no completo esquecimento, e suas composições simplesmente deixaram de ser interpretadas. Até que, no século seguinte, um incidente inusitado teria acontecido, segundo se conta, com outro jovem compositor, Felix Mendelssohn (o autor da famosa Marcha nupcial).
Numa noite inteiramente comum, quando estava em sua cozinha preparando um jantar para seus amigos, Mendelssohn desembrulhou a carne que trouxera do açougue, e reparou que aqueles papéis que envolviam o pacote eram, na verdade, velhas partituras. Quatro anos mais tarde, aos 11 de março de 1829, ele regeria em Berlim o seu arranjo da Paixão segundo São Mateus, de Bach, com grande orquestra e mais de 150 cantores. Ao concerto compareceram o próprio rei, membros da corte, grandes compositores e músicos, intelectuais (como o filósofo Hegel), e até mesmo burgueses. Segundo um crítico da época, Adolf Bernhard Marx, aquela era “a maior obra do nosso maior compositor, a maior e mais sacra peça musical de todas as nações”. Foi a primeira execução pública de Bach em mais de um século, numa noite lendária, que deu início à recuperação da obra daquele que viria a ser chamado de “pai da música”, o maior nome da música barroca, e o maior compositor europeu de todos os tempos. Não fosse essa noite, talvez não tivéssemos acesso, hoje, à obra desse gigante da arte, cujos acordes, em ressonância com as colunas das igrejas, faziam-nas tremer.
Além de fazer com que Bach fosse novamente tocado na Alemanha e, depois, em toda a Europa, e hoje em todo o mundo, o jovem Mendelssohn, então com vinte anos de idade, teve seu próprio talento reconhecido, e partiu em viagens que definiriam toda sua carreira.
Vejam como tudo isso é curioso! Mendelssohn podia se dedicar o quanto quisesse à música, ter pensamentos grandiosos, sonhos e planos, pensar unicamente em sua arte e esforçar-se até o limite — e assim teria, certamente, um relativo sucesso. Mas, em vez de ter os olhos voltados tão somente para o futuro, o jovem alemão viu o que estava diante de seus olhos, o que estava em suas mãos num momento em si mesmo desprezível, banal, quando estava sujando os dedos de carne para servir um jantar. Como estivesse atento aos detalhes, ao presente que se desembrulhava à sua frente, foi capaz de ver o que havia de grandioso numa coisa vulgar — num pacote sanguinolento, cujo destino era o lixo.
É no instante, no perpétuo presente, que se encontram o tempo e o eterno; é no detalhe, quando visto pelos olhos da alma, que se dá o nosso encontro com o grandioso. Se botamos fora os pequenos detalhes de nossos dias, iludidos sempre com o futuro iminente, todos os tesouros que ali habitam irão embora, indiscriminadamente, amassados para o lixo. Essa é uma maneira de ser infeliz: não valorizar devidamente nada de concreto e atual que se apresenta, estar sempre à espera de uma vida que comece em seguida, pronta e perfeita; estar ansioso por uma abstração, uma ilusão, um sonho impossível, que nunca virá a ser. Nunca acessar o interior dos eventos, nunca saboreá-los, nunca cravar o dente da atenção no momento presente para extrair-lhe o sumo, que é ação, realidade, vida. Há, entretanto, uma segunda maneira de ser infeliz, que lhe é diametralmente oposta.
Um segundo modo de escorregar pela superfície da vida, sem vivê-la por dentro, é atentar-se unicamente aos detalhes, mas não como os segredos que são, não pelo espírito, mas pela “letra”, como se eles fossem literalmente algo de valor, em si e por si mesmos. Quer dizer, sem um ideal de grandeza, sem um coração que tenha fome de horizonte, sem o olhar da alma a mirar um céu, a enorme torrente de minúcias do dia a dia, assim idolatradas, pode nos cercar, envolver e confundir, e nos arrastar para uma vida pequena, para um comércio de ninharias, em que nos preocupamos, nos irritamos, nos afligimos e brigamos. Perdemos a paz por um sapato perdido, por um pote esquecido fora da geladeira, uma janela aberta, uma multa de trânsito! Ou então pelas pequenas grosserias, friezas e injustiças que nos vêm dos outros, e nossos pequenos atrasos, fracassos, nossas faltas involuntárias; as bagunças das crianças, suas birras, e os desencontros de casal... Muito breve temos em nós uma coleção de ressentimentos. Deixamo-nos levar por esses e outros detalhes cotidianos pois nos iludimos ao crer que, se estivessem todos perfeitos, estaria perfeita a nossa vida, enfim estaríamos saciados e felizes. Seja de um modo ou de outro, quero dizer, irritados pela insatisfação, ou satisfeitos com tão pouco, esta seria uma vida mesquinha, de horizonte fechado, uma existência apequenada.
Nessas coisas, é bom lembrar o antigo mito de Ícaro, que, para conseguir escapar do exílio na ilha de Creta, trajou o par de asas que seu pai, Dédalo, havia construído — e de quem deveria ter ouvido o conselho: “Nem tanto ao céu, nem tanto ao mar!”. Ou, para ser ainda mais exata, é bom que nos lembremos sempre do símbolo máximo entre todos: a Cruz. Em cada um de nossos instantes se cruzam o efêmero e o perene, e em cada circunstância que vivemos nós temos o poder de encarnar, nas corriqueiras puerilidades, um sentido e um valor eterno. Este é um poder que o ser humano tem, mas que é livre para exercer — ou para não exercer, cedendo às dificuldades.
Temos de ser capazes de enxergar, nas banalidades, o sonho; em cada miudeza, uma possibilidade de amar
Se pudermos amar no detalhe, entregando-nos por meio dele, morrendo, por assim dizer, nesta pequena cruz, ele dará frutos muito maiores do que sua aparência podia expressar. Se, porém, nos faltar o amor, ele será o inverso disso: será um ouro de tolo, um desperdício de esmero em algo deveras efêmero. E, ainda, se o amor pedir que sacrifiquemos os detalhes, se para amar naquela circunstância for preciso ignorar ou ter paciência com as imperfeições da vida prática, será esta uma boa troca, e será ignorando-as, isto é, será suportando a sua falta, que as faremos servir de algo e render algum valor. De um modo ou de outro, as coisas desta vida nunca valem por si mesmas, apontam sempre para outra coisa. É como dizia Mário Quintana sobre os poemas: “Nunca me perguntes o assunto de um poema: um poema sempre fala de outra coisa”, e de outra coisa fala sempre a prosa deste mundo que, sob o nosso olhar, e mergulhada em nosso coração que ama, então torna-se poesia, pode tornar-se romance de cavalaria e epopeia heroica. Está tudo no olhar, nos olhos que “são a lâmpada do corpo” (Mt 6, 22).
Adélia Prado diz também que “de vez em quando Deus me tira a poesia. Olho pedra, vejo pedra mesmo”. Pois assim como nós fazemos sempre, quiçá todos os dias, Mendelssohn foi preparar um jantar — mas foi fazê-lo com poesia. E agarrou, com suas mãos sujas de carne, uma mudança estrondosa na história da música, e com elas resgatou um universo inteiro de maravilhas possíveis da alma humana — que, se a carne fosse apenas carne mesmo, talvez tivesse ido para o perpétuo esquecimento. Do mesmo modo conosco, em cada um de nossos pequenos impasses cotidianos, em cada café passado, fralda trocada, camisa passada; em cada sapo engolido no trabalho, em cada encontro fortuito, em cada cumprimento pode sempre haver, em seu verso, uma rica experiência humana — se soubermos ver, e salvá-la, e resgatá-la: está ali, mas codificada, e só pode ser ouvida na clave do espírito.
E dizer que tudo está no olhar, pois que os olhos são a lâmpada do corpo, ou que “se o olho for são, todo o corpo terá luz, mas, se o olho for defeituoso, todo o corpo estará em trevas”, é o mesmo que dizer que tudo está na nossa intenção, na intenção do nosso interior. O olho representa, por similitude, o nosso coração, isto é, a visão interior. Esta é que deve estar sã, para penetrar o interior das aparências, e não defeituosa, deixando-se enganar por elas. Isto quer dizer que não importa tanto o que fizermos, mas sim a intenção com que o fazemos. É claro que existem ações intrinsecamente más; porém, por outro lado, não basta fazer obras intrinsecamente boas, exteriormente boas, sejam elas quais forem: é preciso fazê-las bem, ou seja, fazê-las com uma pura intenção — se não por amor, ao menos com o desejo de amar. Muitas ações boas em si mesmas acabam nos valendo pouco, sendo pouco meritórias espiritualmente, pois têm seu tesouro roubado pela vanglória, pelo interesse, pelo desejo de aparecer, ou de provocar, ou de vingar-se. O seu bem intrínseco é desperdiçado pela intenção torta. Pode ser que despendamos esforço e demos duro, mas, quando esperamos que isso nos traga, enfim, felicidade, nada encontramos, como se, lembrando o que disse a respeito o antigo profeta Ageu, tivéssemos metido nossas riquezas num saco furado: “Aplicai os vossos corações a considerar os vossos caminhos. Semeastes muito e recolhestes pouco; comestes e não ficastes fartos; bebestes e não matastes a sede; cobristes-vos e não ficastes quentes; e o que ajuntou muitos ganhos, meteu-os num saco roto” (Ag 1, 5–6).
Ao passo que, se tudo fizermos de pura intenção, se levarmos nossa simples vida cotidiana, em seus mais mínimos pormenores, sempre como uma oportunidade de fazer o melhor possível e de amar mais, ganharemos a nossa recompensa mesmo que a obra em si mesma fracasse — mesmo que os detalhes todos se percam. Quem age por amor não se perturba com o fracasso, pois está sempre bem-sucedido em seu coração. Santo Afonso de Ligório chegou a dizer que “a pureza de intenção é chamada a ‘alquimia celeste’, que transforma o ferro em ouro, pois as ações mais comuns, como o trabalho, as refeições, o recreio, o repouso, feitas por amor a Deus, convertem-se em ouro de santo amor”. Ora, quem vive assim, tem a verdadeira liberdade: pouco importa se lhe vêm funções honrosas aos olhos dos homens, ou uma vida obscura e humilde. O que importa é lucrar o amor de toda e qualquer coisa, e assim haveremos de ouvir: “Servo bom e fiel, como foste fiel no pouco, sobre muito te colocarei” (Mt 25, 23).
“Este hábito de encontrar a Deus em tudo o que vai sucedendo a cada momento, em nós e ao redor de nós, é a verdadeira ciência das coisas; é uma revelação contínua da verdade; é uma comunicação com Deus, renovada incessantemente. (...) Quando Deus se dá assim, as coisas mais comuns tornam-se extraordinárias, apesar de não o parecerem. É que este caminho é já, por si mesmo, extraordinário; e por conseguinte não precisa ser adornado de maravilhas que lhe não são próprias. É um milagre, uma revelação, um gozo continuado, com pequenas interrupções; mas em si mesmo, o seu caráter é não ter nada de insensível nem de maravilhoso, mas tornar maravilhosas todas as coisas comuns e sensíveis”, deixou-nos escrito Jean Pierre de Caussade.
É claro que é fácil se perder. Por isso é preciso sempre rever a rotina e ajustar a rota, examinar-se e meditar. Nós precisamos ter, nas palavras do filósofo Louis Lavelle, umas como que “regras da vida cotidiana”, às quais possamos nos agarrar. No livrinho que leva esse nome (e que reúne suas próprias anotações pessoais), lemos: “Não se dedicar jamais senão às grandes coisas, ou às pequenas em função das grandes, e não por si mesmas. E as grandes são as que interessam à minha vida por inteiro e contribuem para determinar o sentido do meu destino”. E também: “Tentar sempre permanecer instalado no ápice de si mesmo, ali onde estão nossos pensamentos mais altos e nossas intenções mais puras”. Assim transformamos a nossa rotina, a nossa regra de vida, numa regra de amor, numa regra de felicidade, e transformamos a nossa vida numa perpétua espreita, num atento e disfarçado ir e vir, sempre a espiar o verso dos embrulhos.
Pode ser que nunca encontremos algo assim tão grandioso aos olhos do mundo, algo que seja tão vistoso como a redescoberta da obra de Bach. Mas certamente encontraremos, envolvendo os víveres dos nossos dias, a notação de uma música inaudível, de uma música apreciada talvez só pelos anjos... Nós a encontremos e, dentro de nós, se acumulará uma insuspeita riqueza, que é o sumo das alegrias da alma, uma provisão de minúsculos diamantes espirituais. Veremos que toda a nossa vida cotidiana, que é carne, está recoberta por uma secreta partitura.
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