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“Em verdade, não entendo o que faço: não faço o bem que quero, mas faço o mal que não quero” – diz o apóstolo Paulo, em sua epístola aos cristãos de Roma. Esta frase muitas vezes também cabe na minha boca, pois comigo acontece exatamente o mesmo. Eu acharia muito estranho se também não acontecesse com todos vocês. E por que seria assim? Não sabemos o que é o certo, já não aprendemos o que é o bem? Não estão ali, por exemplo, os dez mandamentos, que aprendemos desde pequenininhos? Mas, se sabemos o que é o bem, e se queremos fazer o bem (pois está claro que, se conhecemos o bem, nós o desejamos!), por que não o fazemos? O que nos impede? O que separa os firmes propósitos que fazemos pela manhã, e o exame de consciência que fazemos à noite?
Há um mar revolto que separa esses dois polos de nossa vida, assim como há um mar revolto entre o nosso nascimento e a nossa morte. Faz parte da condição humana. Os anjos, espíritos puros, têm a inteligência e a vontade, isto é, o conhecimento da verdade e a sua ação, num contínuo imediato. É como se tivessem apenas a bola e o gol. E nós, homens e mulheres – para aproveitar desta metáfora que certamente agradaria aos meus filhos –, temos de resolver todo o meio de campo. E o que temos nesse meio de campo? O que se revolve nesse reino intermediário da alma, entre nossa inteligência e nosso comportamento? Respondo: o vasto mar dos sentimentos.
Nossa relação com o mundo é sempre afetiva. Nunca estamos completamente neutros diante da realidade: há sempre um estado de espírito, uma disposição emocional, um sabor que tinge nossa percepção das coisas. Vivemos numa encruzilhada permanente de ideias, desejos e afetos, em que tudo influi sobre tudo e nada permanece alheio. É um labirinto de causas e efeitos entrelaçados, e não são raras as vezes em que a pessoa se vê paralisada em becos sem saída que, à primeira vista, pareciam uma linha reta.
Desde a origem até as consequências das nossas ações, os sentimentos estão presentes, moldando os contornos da nossa vontade e definindo a tonalidade de nossa alma. Nascem como desejo, esperança, medo ou ilusão; acompanham-nos sob a forma de prazer, aborrecimento, entusiasmo ou repulsa; e nos visitam novamente depois, sob a forma de arrependimento, tristeza ou alegria. Os sentimentos são como uma segunda pele – densa, invisível, determinante – que nos envolve sem pedir licença. Mesmo que não saibamos nomeá-los com precisão, mesmo que desconheçamos sua causa profunda, eles continuam ali, exercendo seu papel de intérpretes da nossa condição.
A educação afetiva, hoje, é quase um ofício esquecido. Não se fala dela na escola, nem em casa
Toda circunstância vital, mesmo as mais rotineiras, estão ligadas a um estado emocional. Este funciona como uma espécie de resumo de nossa percepção subjetiva diante do mundo e de nós mesmos – uma espécie de termômetro ou de balança afetiva que, a cada instante, é novamente reequilibrada, pois novos dados, novas frustrações e novas alegrias ingressam constantemente no cenário. E nós padecemos vivamente da instabilidade dessa balança: em questão de minutos, ou mesmo de segundos, podemos saltar da serenidade à ira, da euforia ao desânimo, do medo ao consolo. E então? Isso quer dizer que nossa circunstância concreta realmente mudou nessa mesma medida?
Há quem flutue com o vento de qualquer emoção passageira, como há também quem se mantenha relativamente estável mesmo em meio à tempestade. Mas não é apenas uma questão de temperamento. Como no corpo, onde uma simples dor de dente pode transformar o dia inteiro, um pequeno fator emocional – muitas vezes desprezado – pode abalar o edifício interior. É preciso desenvolver, treinar, constituir em si um domínio sobre essa seara – e, mais ainda, é preciso ensinar isso aos nossos filhos. A educação dos sentimentos é uma necessidade vital, é uma etapa incontornável para uma vida verdadeiramente feliz. E não se trata de anestesiar as emoções, mas sim de ordená-las, para que cooperem com a liberdade, e não com nossa escravidão ou confusão.
Desde as origens da filosofia, os homens se debatem com esse tema da afetividade. Os antigos gregos, e depois os estoicos romanos, concediam-lhe um valor duvidoso. Temiam a multiplicação dos desejos, por entenderem que os afetos desordenados nos escravizam; por isso, exaltavam como um ideal a apatheia ou a ataraxia – a ausência de perturbações da alma. Já os orientais, como Lao-Tzu, afirmavam que “não há culpa maior do que ser indulgente com os desejos”. Nosso tempo, ao contrário, parece caminhar no sentido inverso. A cultura do consumo, do marketing e do imediatismo tecnológico exalta o desejo a ponto de torná-lo critério último da ação. Deseja-se tudo, sempre, e agora – e, se não se deseja, não se deve fazer. Então, se os antigos temiam demais o desejo, nós talvez o veneremos em excesso. O resultado é uma geração cronicamente ansiosa e emocionalmente frágil, que perdeu a capacidade de adiar a recompensa – sei que não digo aqui nenhuma novidade, infelizmente.
G. K. Chesterton, com sua aguda lucidez, descrevia o coração humano como uma floresta densa, povoada de lembranças, paixões, caprichos, loucuras, manias e esperanças obscuras. E afirmava que o homem educado é aquele que aprende a discernir, entre tantas vozes interiores, quais são as que têm autoridade. Já dissemos: não basta saber. É preciso amar aquilo que é bom – e deixar de amar aquilo que nos arrasta ao erro. E educar, nesse sentido, não é outra coisa a não ser ensinar alguém a gostar de fazer o bem.
Nesta cultura vigente, em que se dá grande prestígio à razão técnica e pouca atenção ao coração, supõe-se que, diante de um problema, que basta fornecer a informação correta para que tudo se resolva. Mas a vida humana não é um software: “fazemos o mal que não queremos”... A informação, por mais útil que seja, e mesmo necessária, não diminui o abismo de alguém que busca refúgio em vícios ou ninharias, porque suas feridas afetivas são profundas. Onde há abandono, culpa, insegurança ou desprezo, não é um panfleto informativo o que vai aplacar o coração!
Há muitos adultos brilhantes que, sob uma aparência respeitável, escondem um analfabetismo sentimental acentuado. A educação afetiva, hoje, é quase um ofício esquecido. Não se fala dela na escola, nem em casa; e, quando se fala, muitas vezes é apenas para tentar impedir que alguém fique triste, ou irritado, ou frustrado – como se o problema fosse o sentimento em si, e não a falta de significado ou de amparo que o originou.
O autoconhecimento é a primeira tarefa. Conhecer-se, com sinceridade e coragem, é condição para qualquer maturidade emocional. Fugir de si mesmo é muito fácil: basta culpar o outro, ou o ambiente, ou o acaso. Mas crescer é aceitar a própria parcela de responsabilidade. Quando não compreendemos nossos sentimentos, ficamos à mercê deles: podemos estar irritados por horas sem nem sequer saber por quê, e nos ofendemos se alguém ousa sugerir a razão de nossa amargura. Grande parte da vida emocional é “subterrânea”. Há sentimentos que nem sequer chegam à consciência. Ao reconhecê-los, porém, alargamos o território da alma. Passamos a ter escolha: podemos alimentá-los ou abandoná-los, dar-lhes nome, iluminá-los com a inteligência, integrá-los com a vontade. E esta, bem entendidos os termos, é a tarefa mais humana que há: tomar posse de si mesmo.
A própria busca das virtudes – sinal de quem se preocupa com o próprio crescimento, com a melhoria e a construção de sua personalidade, e penhor da educação das crianças – é inequivocamente marcada pelo trato com os sentimentos. Cada sentimento desordenado ou descontrolado favorece ou dificulta certas ações. A inveja, a impaciência, o egoísmo, a própria apatia – todas essas inclinações que dificultam o exercício do bem – são também fruto de uma má educação emocional. Não existe educação completa sem educação dos afetos. Ensinar matemática ou inglês é importante, mas que dizer do menino que, por não saber lidar com a frustração, abandona os estudos? Ou da moça que, por ansiedade, desiste dos próprios sonhos? A afetividade de cada um se forma no cruzamento entre natureza, cultura e liberdade. Se não for moldada por um esforço contínuo, será moldada pelo acaso – ou pela propaganda, ou pelo trauma, ou pelo ressentimento.
O lar é a primeira escola da afetividade – e, não raro, a mais negligenciada
A lista de dificuldades geradas por sentimentos “deseducados” é longa e dolorosa: impulsividade, perfeccionismo rígido, isolamento, ciúme, intransigência, dependência afetiva, orgulho, agressividade, tristeza crônica, descontrole emocional... Cada um desses aspectos revela carências de sentido, de paciência, de perdão e, sobretudo, de um olhar compreensivo que ajude a pessoa a tornar-se autora de sua história. E esse olhar compreensivo, é lógico, começa na família. O lar é a primeira escola da afetividade – e, não raro, a mais negligenciada. Há pais que ignoram os sentimentos dos filhos ou os consideram irrelevantes. Outros, bem-intencionados, querem que a criança “pare de chorar”, ou “pare de sentir raiva”, mas sem investigar a causa dessas emoções. Usam prêmios ou castigos, sem escutar o que está de fato acontecendo no coração da criança. Pior ainda são os pais imprevisíveis: ora indulgentes, ora severos, conforme o humor do dia. A criança, diante disso, perde o eixo. Não sabe o que é certo nem o que é errado, pois tudo depende do estado – adivinhem – emocional do adulto, que se move como a água. A aprovação e a reprovação vêm como relâmpagos, sem critério. E o resultado é a impotência emocional.
Disse certa vez Romano Guardini: “Educar é, antes de tudo, ser. Em segundo lugar, é fazer. E, só por fim, é dizer”. Muitos pais e professores apostam tudo no terceiro elemento – no que dizem – sem se darem conta de que seu exemplo e sua presença falam mais alto, sempre. O modo como os pais reagem aos sentimentos dos filhos é determinante. Alguns os ignoram, como se fossem irrelevantes, perdendo ótimas oportunidades de educar. Outros os tratam como incômodos a serem extintos a qualquer custo – mesmo que à base da mentira ou da punição física. Devemos nos inserir no número daqueles que sabem intervir com inteligência e paciência, ajudando a criança a compreender o que sente e a dar nome ao próprio coração.
Há ainda os pais autoritários, impacientes, que elevam a voz diante da menor contrariedade. Não raro, dirigem aos filhos frases curtas e cortantes: “Não me responda!” – mesmo quando a criança só tenta se explicar. A desqualificação gratuita mina a confiança, que é o terreno fértil da educação afetiva. Sem ela, a criança se fecha como o ouriço: espinhos por fora, tremores por dentro.
Nada disso é novo, mas talvez nunca tenha sido tão urgente como agora. Vivemos uma época emocionalmente sobrecarregada. Os estímulos se multiplicam, a velocidade das mudanças nos atordoa, e os laços duradouros parecem cada vez mais frágeis. Por isso, talvez seja tempo de lembrar que o coração humano é como um campo fértil: nele florescem os sentimentos que forem cultivados – e murcham os que forem deixados à própria sorte.
Educar o coração é mais do que corrigir comportamentos: é estar ali, presente, atento, interessado. Devemos reconhecer, nas emoções dos nossos filhos, não um incômodo, mas uma oportunidade rara de aproximação e formação. A confiança não se impõe; conquista-se. E esse vínculo, tão delicado, cresce sobretudo quando a criança percebe que pode falar e será ouvida sem julgamento. Dizer o que se sente é uma forma de organizar o próprio caos interior, de nomear o que até então era apenas um torvelinho. A simples possibilidade de se abrir com alguém que escuta com interesse pode, por si só, operar verdadeiras curas emocionais.
Devemos ser pais que compreendem. Pais que escutam; que descem do pedestal e falam com os filhos de igual para igual, para que eles se sintam compreendidos. Devemos ajudá-los a dar nome às suas emoções e, assim, a dar-lhes o devido “posicionamento” em nosso mundo interior, que é sob o controle de nossas escolhas. Escutar é, talvez, o primeiro gesto do amor educativo. É assim que se abre um canal de confiança, por onde os sentimentos podem ser nomeados e cuidados. Falar com alguém que realmente ouve é uma terapia que não custa nada – e, no entanto, cura muito.
A arte de educar a própria afetividade, e de educar os sentimentos dos nossos filhos, não é senão a arte de decifrar o coração humano. Alguns sentimentos têm causas óbvias; outros, nem tanto. Às vezes acordamos tristes, irritados ou vazios, sem uma razão clara. Outras vezes, sentimentos acumulados ganham corpo e se manifestam como raiva, desânimo ou apatia. Enfim, o estado emocional é o resultado consciente de causas das quais nem sempre estamos conscientes. Em outras palavras: o que sentimos é uma linguagem cifrada, que precisa ser interpretada com paciência e escuta interior.
Devemos ser pais que compreendem. Pais que escutam; que descem do pedestal e falam com os filhos de igual para igual, para que eles se sintam compreendidos
Essa escuta é o que nos permite tornar-nos autores de nossa própria história. Viver é como escrever um romance: cada frase deitada no papel determina o conjunto e prepara as seguintes, muito embora haja sempre liberdade para compor o próximo capítulo. Por isso o nosso temperamento, nossa infância, os traumas, o meio... tudo isso condiciona, mas não determina. Tudo isso, bem como todos os nossos sentimentos e as emoções que se debatem no nosso interior, nada pode ser ignorado, escondido ou jogado fora: tudo é material para ser trabalhado por nós, para compor aquela obra, que é quem escolhemos ser.
A juventude raramente o percebe, e as crianças não têm ainda como compreendê-lo. Por isso é nosso encargo ajudar os pequeninos a domar seus próprios sentimentos: ouvindo-os, validando seus sentimentos, compreendendo sua situação, mostrando-nos empáticos com suas lutas; ajudando-os a nomear suas emoções, orientando-os sobre o que devem fazer com elas; em suma, tomando-os pela mão e trazendo-os para o andar superior da razão. Nós devemos vestir a camisa do time deles e, com essa confiança, ajudá-los a emplacar suas vitórias. E nós próprios? Não somos anjos, e o meio de campo está entre nós e o gol – e este meio de campo é um longo mar revolto, onde há grandes inimigos, monstros dominadores. E muitas vezes, neste trajeto, “não faremos o bem que queremos, e faremos o mal que não queremos”; não adianta querer ser perfeito num piscar. Mas resta-nos lutar e lutar, com discernimento, até o fim da jornada.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos




