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Samia Marsili

Samia Marsili

Diário da maternidade

O medo de ser mãe

(Foto: Antônio More/Gazeta do Povo/Arquivo)

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Por esses dias, acariciava minha barriga enquanto meditava, pensando, ainda uma vez, sobre a maravilha que é gerar uma vida... Já vivi isso tantas vezes, como é sabido de todo mundo. Mas é o lugar-comum mais verdadeiro de todos afirmar, francamente, que é como se fosse a primeira vez. É claro que muitas sensações não são novas, e o mesmo vale para muitos sentimentos. Vários receios já foram superados, porque várias dúvidas já foram sanadas.

A experiência traz conhecimento para quem a vive atentamente, isto é certo. Ocorre, porém, que não é apenas “como se fosse” a primeira vez, pois o é de fato. Somente porque, depois de todos os meus meninos, estou gerando, por vez primeira, uma menina? Não, não é isso. É sempre a primeira vez, pois cada filho é único, cada pessoa é irrepetível e insubstituível, e a sua geração é única. O meu relacionamento de mãe com cada um deles é único e incomutável, e assim o será por toda a vida, e para sempre. Cada dor que sinto, e cada mudança no meu corpo, agora, faz parte da história de uma única pessoa.

É muito curioso como o nosso corpo e a nossa mente podem se transformar e se adaptar, e isso fica muito claro numa gravidez. E tudo isso aos poucos, como a conta-gotas. Se um belo dia eu despertasse de manhã com uma barriga gigante, dores nas juntas e o diafragma apertado, com uma criatura viva se mexendo dentro de mim, eu certamente ficaria enlouquecida! Mas não é assim. Foram longos meses de paulatina transformação, alguns incômodos vão, aos poucos, ficando menos incômodos, ao passo que novos surgem, e a eles também vou me acostumando. E eu os vou carregando como se fosse, parafraseando Josemaria Escrivá, uma “cruz sem cruz”.

Entretanto, assim como tudo é único e, por isso, de certo modo, novo, são renovados e únicos também os medos que nos acometem. O amor e a alegria são inéditos, inovados, mas também a responsabilidade por uma nova pessoa, com toda a carga simbólica e existencial que há numa nova maternidade. Sempre temos — negar seria tolice — um medo de ser mãe. Porque um nascimento é sempre, para a mãe, uma morte — e um novo nascimento será uma nova morte. Mas uma morte, perdoem-me, mórbida? Morte terrível, tenebrosa, que dá medo e entristece? Não, não deve ser, e, se o permitirmos que seja, teremos perdido o grande tesouro espiritual da nossa vocação. Diz Jesus que “a mulher, quando dá à luz, está em sofrimento, porque chegou a sua hora, mas, depois que deu à luz um menino, já se não lembra da sua aflição, pelo gozo que sente de ter nascido um homem para o mundo” (Jo 16,21). Toda a nossa dor e todo o nosso medo — essa nossa morte simbólica — devem ser encarados como a dor, o medo e a morte do Cristo, que é entrega voluntária, exercício de amor e preparação para a ressurreição e a vida. Daremos vida nova ao mundo com nosso filho (ou filha!), e seremos novas mulheres juntamente com essa geração.

É claro que cada mãe é diferente: são tantas mães quantas são as mulheres que dão à luz, e tantas são as famílias, as histórias de vida. As rotinas são diferentes, as finanças são diferentes, os apoios são diferentes, os maridos são diferentes. Ademais, a maternidade raramente é linear. Não se trata de uma jornada imaculada em que se acerta desde o primeiro passo. Aprendemos a ser mães tropeçando — e, às vezes, tropeçando muito. Aprendemos fazendo, errando, chorando, tentando de novo. Mas é justamente por sabermos disso — por sabermos que é difícil — que não devemos temer além da conta, e sim nos entregarmos de corpo e alma.

Raramente vemos um homem se torturando emocionalmente porque o filho tirou uma nota ruim na escola; ou porque o bebê não está mamando; ou porque a filha fez birra no shopping; ou porque a outra filha tem feito bullying com os colegas; ou porque não foi possível ter um parto normal. Mas nós, mulheres, sentimos. Sentimos de forma quase visceral, mesmo quando ninguém apontou o dedo. Ninguém precisa dizer: “A casa está bagunçada”; basta o caos ao redor e sentimos que falhamos. O vínculo que temos com a vida concreta, com o ambiente, com o desenvolvimento emocional e físico dos nossos filhos é profundo. Eles passaram a existir dentro de nós, afinal. Isso não é uma imposição cultural: é um traço do nosso ser. A mulher olha o mundo com olhos de quem deseja que o humano floresça. Olhamos para a bagunça da casa e não vemos só desordem: vemos ausência de acolhimento. Ouvimos uma notícia de violência e não conseguimos apenas seguir em frente — somos tomadas por empatia, imaginamos as pessoas envolvidas, perguntamos a nós mesmas o que poderíamos ter feito para evitar. — E a maternidade é essa sensibilidade multiplicada por um milhão.

E talvez por isso, quando ouvimos certas frases, ainda que venham com um verniz de empatia, algo nos incomoda. Quando nos dizem que não devemos nos sentirmos culpadas, que cada uma sabe de si, que tudo bem dar mamadeira, que a cesariana também é uma escolha válida, que qualquer escola serve... sentimos, por dentro, uma pontada. A dúvida se insinua: “E se eu pudesse ter feito diferente? E se não for o melhor para o meu filho?”. Não conseguimos simplesmente não nos importar. Porque esse laço, esse tipo de ligação íntima com os filhos, é um traço próprio da nossa identidade feminina. Não que os homens não se importem, mas é que o modo de se importar é outro: menos visceral, menos constante. Eles conseguem, mais facilmente, separar os compartimentos da vida. Delegam tarefas sem culpa. Contratam ajuda sem remorso. Já nós, levamos tudo isso no peito. E isso não nos foi imposto, nem é opressão... Isso é maternidade, é o peso que tem o amor pela vida.

E é por isso que, quando vemos uma mãe que não se importa com o filho — que o abandona, que o maltrata, que o ignora — algo dentro de nós se quebra. E não por um julgamento moral ou desejo de superioridade, mas porque aquilo fere a nossa percepção mais profunda do que significa ser mãe. A Escritura diz: “Ainda que uma mãe se esqueça do seu filho, Eu não me esquecerei de ti”, como se a maternidade fosse o grau máximo da fidelidade humana. A figura materna é, ali, a medida do que há de mais constante, mais confiável, mais fiel.

Porém, justamente para vivermos bem esse amor, uma coisa é de fundamental importância: precisamos distinguir a culpa saudável — esse medo por nossos filhos, que é senso de responsabilidade — do remorso paralisante. Há coisas que não estão sob nosso controle. Há crianças que se machucam mesmo sob vigilância. Há filhos que farão escolhas diferentes das que gostaríamos, mesmo com todo o nosso zelo e cuidado. Eles são livres, e essa liberdade, ainda que dolorosa, é necessária para que cresçam. Há uma culpa criada por um desejo desordenado de controle. Quando tentamos evitar qualquer dor, qualquer frustração, qualquer escorregão, acabamos sufocando os filhos e adoecendo a nós mesmas. Não somos deusas, não temos e não devemos ter o controle absoluto. E essa pretensão, além de inútil, é profundamente desgastante.

O caminho da maturidade materna é o de abraçar nossa responsabilidade sem perder de vista nossa limitação. A maternidade não é um campo de perfeição, mas de aperfeiçoamento. Quer dizer, não temos de ser perfeitas: temos de estar imperfeitamente em busca da perfeição. Esse aperfeiçoamento implica aceitar que vamos errar, que vamos nos arrepender e que, apesar de tudo, continuamos — porque amamos.

Esse medo que sentimos, se bem compreendido, é uma espécie de bússola. Aponta que estamos despertas, conscientes, que não somos indiferentes, que desejamos o bem. O que precisamos é saber convertê-lo em força, não em paralisia. Ele precisa nos lembrar, dia após dia, do imenso dom que nos foi confiado e da coragem que, mesmo sem saber, sempre tivemos para acolhê-lo.

Muitas mães, em algum momento, já se perguntaram: “Onde foi que eu errei?”. Essa pergunta, tantas vezes dita em voz baixa, pode nascer de uma culpa verdadeira — fruto da consciência de que falhamos onde poderíamos ter acertado. Mas, noutras vezes, nasce apenas da dor do imponderável: a liberdade do filho que escolheu, com toda a sua autonomia, um caminho diferente daquele que sonhamos para ele. Porque é assim — educamos pessoas, não programamos robôs. Essa diferença é essencial. Filhos não são cópias de nossos desejos, nem clones do que um dia fomos. Eles são pessoas em construção e, como toda construção viva, carregam dentro de si o mistério da liberdade. Podemos formar, orientar, indicar o norte, mas não podemos impedir a escolha. O bom educador — e a boa mãe — é aquele que sabe dar as ferramentas certas, mas que entende que cada filho é quem decide o uso que fará delas.

A maternidade não exige heroísmo perfeito, mas uma fidelidade imperfeita e constante. Um recomeçar paciente, mesmo nas noites mal dormidas, mesmo nas birras, mesmo na solidão. Um gesto de amor que se repete. Uma luta silenciosa que, um dia, gera frutos que não cabem em nenhuma equação. Porque é isso que distingue a mãe que educa da mãe que apenas reage: a disposição interior de fazer o melhor possível. De assumir os próprios limites, sim — mas também de não fazer deles uma justificativa eterna. Uma mãe que chega em casa depois de um dia de trabalho e se irrita porque o filho não dorme cedo talvez não precise corrigir o filho, mas a si mesma: talvez tenha se distraído demais durante o expediente, talvez tenha procrastinado. A virtude que faltou não foi à criança. Foi à mãe. E o incômodo que vem depois — essa culpa que dói — é uma bússola, não uma punição.

É preciso parar de ter medo da dor do reconhecimento. Saber que agimos mal, que priorizamos o conforto ao cuidado, que nos omitimos quando devíamos intervir — tudo isso dói. Mas é dor de crescimento. Como a do exercício que fortalece o músculo, como a do parto que traz a vida. Não é dor de morte: é dor de renascimento.

Por isso, admitir que erramos — e que poderíamos ter feito diferente — não nos torna frágeis: nos torna conscientes. E a consciência madura não é perfeccionista, ela é honesta. Ela não busca desculpas, mas propósitos. Não quer proteger uma autoimagem, mas formar uma pessoa melhor. E essa pessoa melhor começa dentro de nós, antes de qualquer plano educativo. Porque nenhuma mudança exterior será duradoura se não for precedida por uma mudança interior. Não adianta traçar um plano perfeito de rotinas e hábitos se continuamos nos enganando sobre nossas escolhas. O primeiro passo para educar um filho com retidão é educar a si mesma na sinceridade. Não se trata de sermos duras demais conosco. Trata-se de reconhecer a nossa humanidade — e a nossa liberdade. De dizer: “Sim, eu sou responsável”. E, por isso mesmo, eu posso mudar. Posso fazer melhor amanhã. Posso transformar pequenas escolhas em grandes resultados. Posso, enfim, viver essa maternidade como um chamado, e não como uma sucessão de reações cansadas.

A paz verdadeira não nasce da negação da culpa. Nasce do enfrentamento corajoso dela. E do compromisso sereno de fazer o bem — um pequeno bem — no dia de hoje. Vivemos numa época em que o volume do mundo é alto demais... Há ruído em toda parte: notificações, compromissos, barulhos internos e externos — tudo conspirando para que não escutemos o som mais importante de todos: a voz da nossa consciência. Essa voz que não grita, mas sussurra. Que não acusa, mas adverte. Que não condena, mas propõe uma correção silenciosa, urgente e amorosa.

Quando essa voz nos diz: “Você poderia ter feito diferente”, temos duas opções. A primeira é o caminho fácil: tentar silenciá-la. Jogamos a culpa no marido, na sociedade, no excesso de trabalho, na falta de apoio. Dizemos a nós mesmas que a maternidade é mesmo impossível, que estamos sobrecarregadas, que ninguém compreende o que passamos. Buscamos distração, ocupação, justificativas. E, no fundo, desejamos que o tempo se encarregue de apagar a mancha do erro, sem termos que encará-lo.

A segunda opção é a mais difícil, mas é também a mais libertadora: escutar essa voz. Admitir que erramos. Olhar para o espelho sem desculpas. Reconhecer que, sim, a responsabilidade era nossa — e que ainda é. Nesse momento, não nos cabe desespero, mas coragem. A coragem de quem sabe que a educação dos filhos não se improvisa, e tampouco se delega. Ela exige um plano, um olhar atento, um exame constante. E, acima de tudo, uma disposição profunda de fazer o bem — não com perfeccionismo paralisante, mas com retidão humilde.

Essa retidão começa com perguntas simples, feitas no silêncio do fim do dia: onde deixei de fazer o que podia? Onde fui omissa? Que palavras foram desnecessárias? Onde me faltou paciência? E então, com serenidade, traçar um pequeno propósito. Nada grandioso: apenas um gesto — um milímetro, um passo, com a mesma lentidão com que crescia o bebê em nosso ventre. Nossa barriga leva meses para crescer, pouquinho por pouquinho, e, do mesmo modo, a mãe dessa criança leva tempo, gesto por gesto, luta por luta, para se formar e aperfeiçoar. Esse milímetro diário é tudo. Um sorriso mais paciente, um agradecimento mais atento, um tempo de boa qualidade com o filho, um gesto de afeto inesperado. Essas pequenas correções não são egocentrismo. Não são autoflagelo. São o reconhecimento de que ainda estamos em construção — e que nossos filhos, nesse canteiro de obras, merecem que sejamos mães em contínua lapidação.

Não se trata de focar no erro, mas de afogar o mal em abundância de bem. Educar-se para educar. Retificar-se para guiar. Amar-se na verdade para amar melhor quem nos foi confiado. Por isso, ao olhar para trás, para os primeiros anos de maternidade, não devemos nos condenar. Devemos nos compadecer daquela mulher exausta, cheia de olheiras, que optou por renunciar a confortos e sonhos para se dedicar ao filho. A ela devemos dizer, bem como às que agora estão grávidas, na expectativa, na agonia de que fala o Evangelho, com medo de serem mães ou de não serem boas mães: vale a pena. Vale cada noite mal dormida, cada fralda trocada, cada história contada, cada renúncia pequena, cada gesto de paciência.

E, sim, erramos. Muitas vezes. Mas também retificamos. E esse esforço constante, às vezes invisível aos olhos do mundo, é o que transforma meninos em homens íntegros e mães em mulheres verdadeiramente grandes. Aquelas que, tendo enfrentado o medo e a culpa, descobriram que a maternidade não é uma sequência de perfeições, mas uma trajetória de amor exigente e generoso.

Não é o medo de errar o que deve nos definir, e nem as culpas por termos errado. O que nos define é o zelo em que transformamos o nosso medo, é o esforço que fazemos para corrigir o que nossa consciência culpada apontou para nós. E é isso que nossos filhos merecem: uma mãe que erra, mas que nunca desiste; que chora, mas recomeça; que falha, mas aprende; que se doa, mesmo quando não é compreendida. E, sobretudo: que reza e age com coragem, mesmo quando não tem certeza sobre o que deve fazer. Porque, no fundo, a verdadeira maternidade é esta: a que traz sofrimento, quando chegou a sua hora, mas que, depois, quando um homem vem à luz para o mundo, nos faz esquecer da aflição, dada a alegria que sentiremos na eternidade.

Foi o que pensei, enquanto acariciava minha barriga e meditava, ainda uma vez, sobre a maravilha que é gerar uma vida...

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