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Samia Marsili

Samia Marsili

A vida é serviço

A Páscoa e a nossa “realização pessoal”

Páscoa realização pessoal
Ressurreição de Cristo, em afresco de Giotto. (Foto: Wikimedia Commons/Domínio público)

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Estamos em pleno Domingo de Páscoa, o domingo dourado em que, jubilosos, os cristãos alardeamos “Ressuscitou! Está vivo, e não entre os mortos, aquele que padeceu na sexta-feira”. É a maior de todas as nossas festas, é a festa que dá sentido e coesão a todas as outras, é o centro do mistério cristão. Como diz São Paulo na Escritura, “se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa fé” (1Cor 15, 14), quer dizer, a ressurreição de Jesus é a verdadeira vitória, a prova e a consumação de sua obra de salvação da humanidade, e o penhor da veracidade de seus ensinamentos. Nós seguimos o Cristo porque o amor – que é a marca da sua doutrina e o sinal do seu seguimento – verdadeiramente venceu, venceu o pecado, e a sua consequência, a morte.

Não existe obra, não existe realização maior e mais perfeita do que essa operada por Jesus Cristo, a qual nós recordamos e celebramos – em todas as semanas e todos os domingos do ano, sim, mas muito especialmente na Semana Santa. Então quem, mais do que Jesus, pode dizer que se realizou, que fez o tinha de fazer, que cumpriu sua missão? Duvido que alguém tenha resposta para isso. E entretanto... se lermos o Evangelho, de ponta a ponta, quase que não ouviremos Jesus dizer, nas entrelinhas, outra coisa que não seja “Eu faço o que o Pai mandou”. Ele o repete toda hora: Eu vim do Pai, voltarei para o Pai, as obras que faço dão testemunho do Pai, eu digo o que Pai me mandou dizer, cumpro a missão para a qual o Pai me enviou... Não é por si ou para si mesmo que ele faz o que faz? Não, é por um Outro. E qual foi o caminho dessa realização, aliás? Foi o silêncio, o anonimato, o trabalho árduo de carpintaria numa cidadezinha do interior da Galileia por três décadas, e ao fim, a humilhação, o desprezo, a violência, a dor, o sofrimento — a longa subida do Calvário, e a morte de cruz, contado entre os ladrões. Essa foi a sua realização, o que lhe mandou fazer o Pai, e que enfim, com sua ressurreição, granjeou a salvação para os homens. Que tal esse exemplo para nós?

Ah, vivemos em tempos de promessas rasas. As frases feitas circulam como mantras modernos: “Realize-se na sua profissão”, “Seja plena no casamento”, “Encontre-se na maternidade”. Anseia-se, com um discreto desespero, por uma tal “realização pessoal”, esse estado quase mítico em que o coração se aquieta e o nosso ser parece enfim completo. Mas será que sabemos, de fato, o que estamos buscando? Será que entendemos o que significa realizar-se como pessoa? Estaria a nossa verdadeira felicidade acaso numa sublimação egoísta?

Em nossa cultura, confundem-se com frequência dois conceitos que, embora parecidos à primeira vista, guardam distinções profundas: realização pessoal e autorrealização. A primeira está ligada à vocação mais íntima do ser humano, ao cumprimento do projeto que nos constitui desde sempre. A segunda, muitas vezes, escorrega para o egoísmo – um desejo de autoafirmação que mira o reconhecimento, o sucesso ou a satisfação própria como fins últimos. É por isso que tantas pessoas, depois de alcançarem aquilo que julgavam ser o auge – o casamento ideal, a carreira dos sonhos, o filho tão esperado –, sentem-se, ainda assim, incompletas. Porque a realização pessoal não é uma conquista externa, mas o florescimento de algo interno: tornar-se quem se é. Isso exige um processo lento e silencioso de maturação, que passa por escolhas, relações e sacrifícios.

Será que entendemos o que significa realizar-se como pessoa? Estaria a nossa verdadeira felicidade acaso numa sublimação egoísta?

Realizar, etimologicamente, é tornar real o que antes era apenas intenção. Na vida pessoal, é cumprir o propósito para o qual fomos criados. Esse propósito não é uma fórmula genérica, mas um caminho único, inscrito na alma de cada um. Cumpri-lo é o que nos torna plenos.

Essa plenitude, no entanto, não se conquista em isolamento. Somos, por natureza, seres relacionais. Nascemos da união de dois outros seres humanos; sobrevivemos, nos primeiros anos de vida, apenas graças ao cuidado alheio. Dependemos do outro para viver, para crescer, para nos tornar humanos. Desde o ventre, a nossa existência é sustentada por uma cadeia de generosidades, e permanece assim ao longo de toda a vida. É por isso que a solidão prolongada – com exceção para os casos em que consiste numa vocação muito particular – entristece e deforma. Não fomos feitos para o isolamento. Nossa humanidade se realiza no encontro: com o outro, com o mundo, com Deus. O sentido de ser pessoa está ligado ao dom de si, à entrega, à comunhão. A família, a amizade, o trabalho, todos esses são ambientes em que nos construímos e nos ofertamos.

Mas a nossa vocação também não se esgota na natureza. Há também uma finalidade sobrenatural, uma meta que ultrapassa o tempo e se projeta na eternidade. Se somos feitos de corpo e alma, nossa realização última não pode estar apenas neste mundo. Ela aponta para o alto, para um Céu onde o amor não conhecerá mais rupturas nem limites. E é aqui, entre as tarefas diárias e os encontros comuns, que fazemos as escolhas que nos aproximam ou nos afastam desse fim.

Carregamos, desde o nascimento, uma dignidade original. Somos pessoas desde que existimos: seres dotados de liberdade, inteligência e vontade. Essa dignidade não é algo que conquistamos; é dom. Recebemo-la como um presente inaugural, simplesmente por sermos humanos. No entanto, há uma segunda dignidade, que não recebemos, mas construímos: aquela que resulta do bom uso da liberdade. É aqui que começa a nossa responsabilidade. Porque ser livre é, antes de tudo, um chamado a escolher o bem. Quando exercemos essa liberdade em consonância com nossa consciência – essa voz interior que nos alerta quando erramos e nos chama de volta ao eixo –, tornamo-nos cada vez mais aquilo que somos chamados a ser. Mas, se ignoramos os alertas da consciência e insistimos em caminhos tortuosos, vamos nos tornando menos lúcidos, menos livres – menos humanos. Nossa inteligência se embota, nossa vontade se fragiliza, nossos afetos se desordenam. É como se nos afastássemos de nós mesmos, deixando de ser autores da própria história para nos tornarmos marionetes das circunstâncias.

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Em contrapartida, a liberdade bem exercida nos aproxima do nosso centro. Fazemos o bem, não por automatismo, mas por escolha; amamos, não por impulso, mas por decisão; construímos, não por obrigação, mas por vocação. O ser humano se realiza quando se torna sujeito da própria existência, sem se fechar em si mesmo, mas ofertando-se aos outros, em um movimento contínuo de saída de si. Essa construção não é solitária. O outro – o amigo, o cônjuge, o filho, o mestre – nos ajuda a ver aquilo que não enxergamos em nós mesmos. Somos como esculturas inacabadas que vão sendo lapidadas no atrito amoroso com as realidades da vida. Michelangelo dizia que, ao esculpir o Davi, apenas retirou do mármore tudo o que não era Davi. Educar-se é isso: livrar-se do que não somos para revelar o que somos.

Somos, enfim, uma tarefa para nós mesmos. Não nascemos prontos, mas com a vocação de nos tornar inteiros. E esse trabalho de nos realizarmos como pessoas passa, necessariamente, pela relação com o mundo criado, com os outros e com Deus. Ao usarmos bem nossa liberdade, vamos nos tornando mais humanos, mais autênticos, mais santos. A velha frase de Agostinho – “Fizeste-nos, Senhor, para Ti, e o nosso coração anda inquieto enquanto não descansa em Ti” – tem, nesse contexto, um sabor muito especial. A realização pessoal não está no brilho de um sucesso passageiro nem na ilusão de uma vida sem esforço. Está na fidelidade silenciosa ao próprio chamado, no exercício constante de escolhas boas, na construção diária de um coração capaz de amar. A verdadeira plenitude está em responder, com a vida inteira, à pergunta silenciosa: “Quem eu sou chamado a ser?”

Educar um ser humano é muito mais do que moldar comportamentos ou corrigir desvios. É, sobretudo, um ato de fidelidade à essência da pessoa. Quem educa de verdade não impõe um molde, mas revela um desenho que já estava ali. No entanto, numa época marcada por olhares reducionistas, é comum que profissionais – especialmente da psicologia – analisem o ser humano apenas a partir do que se pode ver: ações, reações, padrões. Como se o homem fosse apenas a soma de seus gestos, e não o portador de um chamado profundo, de uma vocação a ser cumprida. O equívoco é sutil e perigoso: julgar a essência pela aparência. Mas há muitos que usam mal a própria liberdade, e, por isso, a análise meramente comportamental não basta. É preciso retornar à fonte, ao projeto original. E esse projeto se deixa entrever quando alimentamos nossa consciência com o bem, quando fazemos silêncio interior e ouvimos a voz que nos sussurra, desde dentro: “Foi para mais do que isso que você foi criado”.

A religião, nesse ponto, não é inimiga da liberdade, mas seu farol. Ela não impõe grilhões, mas acende luzes sobre o caminho. Sua proposta é simples e audaciosa: lembrar ao ser humano que sua realização não é obra da imaginação, mas descoberta da verdade. A felicidade não se inventa – encontra-se. Não somos chamados a construir um sentido arbitrário, mas a reconhecer e abraçar o sentido que já nos precede. A realização pessoal está ligada, portanto, a um projeto que nos transcende. É resposta. Como eu disse antes, é o florescimento de algo interno, é tornar-se quem se é, e isso envolve, curiosamente, negar aquilo que achamos que somos, mas não somos. Por isso o ensinamento de Jesus: negar-se a si mesmo e, nessa caminhada de sofrimento, cumprir uma missão de entrega pelos outros. Nesse processo, morremos, mas ressuscitamos como alguém de verdade, e verdadeiramente feliz. Por isso dizia Ele: negar-se a si mesmo, tomar sua cruz, e segui-Lo.

A verdadeira realização não se encontra em “sentir-se pleno”, mas em viver plenamente aquilo que se é chamado a viver

Já a autorrealização é um eco de si para si mesmo. É o eu fazendo de si mesmo um ídolo, no alto de um altar interior.

Na vida prática, essa confusão cobra seu preço. O casamento, por exemplo, deixa de ser espaço de doação e se transforma em palco de frustração. A maternidade vira peso quando deveria ser dom. O marido, os filhos, os amigos, todos passam a ser lidos como obstáculos ao suposto “projeto de plenitude pessoal”. O trabalho, então, aparece como alternativa tentadora: ali, o reconhecimento é mais rápido, as metas são palpáveis, o retorno é mais visível. É possível brilhar, mesmo que esse brilho seja, às vezes, uma luz fria e solitária. A autorrealização inverte tudo. Para quem se coloca no centro do próprio mundo, toda exigência externa é vista como ameaça. As pessoas ao redor tornam-se rivais da própria paz. A convivência vira um campo de disputas silenciosas. Esse narcisismo moderno, disfarçado de autenticidade e autocuidado, é uma doença que se alastra. Todos parecem acusar os outros de egoísmo, sem perceber o espelho que carregam diante do rosto.

A verdadeira realização não se encontra em “sentir-se pleno”, mas em viver plenamente aquilo que se é chamado a viver. A vocação é o caminho mais curto entre o que sou e o que posso ser, e não há caminho mais curto para a felicidade do que a fidelidade. É por isso que, quando vemos alguém realizando bem o seu papel – como pai, como mãe, como professor, como amigo –, dizemos: “Essa pessoa tem vocação”. Mas a verdade é que a vocação está ao alcance de todos. A vocação é aquilo para que aponta a pessoa, e portanto não há quem não tenha uma vocação! Se tenho filhos, minha vocação está na maternidade. Se tenho um cônjuge, ela está no casamento. Se tenho amigos, está na amizade. A plenitude não está no que escolhi, mas no modo como me dou.

A realização pessoal não é um evento isolado nem um lampejo ocasional. Ela acontece na continuidade da vida, nas tramas silenciosas do cotidiano, nas relações que mais nos desafiam. Não é coerente ser admirável no trabalho e, ao mesmo tempo, negligente em casa. Um homem que se apresenta como honesto e dedicado no escritório, mas que despreza o coração da esposa ou abandona o papel de pai, está vivendo uma cisão interior. Há uma hipocrisia não apenas moral, mas existencial. Pois é no seio da família – esse laboratório da alma – que revelamos quem realmente somos, despidos de máscaras, enfrentando espelhos que não mentem. A convivência familiar é exigente porque é constante. Somos lapidados, ali, pelo atrito da proximidade. Os afetos mais profundos, os hábitos mais enraizados, os traços mais ocultos – tudo vem à tona sob o olhar daqueles que nos conhecem desde sempre. Por isso, é necessário lembrar que ninguém está “pronto”. Pais e filhos, todos estamos a caminho. Por vezes, exercemos bem nossa liberdade. Em outras, tropeçamos. Mas é dentro da família que encontramos a esperança: ali, somos perdoados com facilidade e celebrados com entusiasmo. Quando uma criança experimenta essa confiança, ela aprende que pode recomeçar, que vale a pena tentar de novo, que o bem não é uma utopia.

A realização pessoal acontece quando compreendemos que nossas circunstâncias não são obstáculos, mas trampolins

A realização pessoal não é um prêmio, mas uma construção. E, como toda construção, exige constância. Não há linha de chegada fixa, nem um diploma de “ser humano completo”. Quando achamos que já basta, que “está bom assim”, começamos a decair. Infelizmente, muitos abandonam esse esforço. Perdem a exigência consigo mesmos, deixam-se vencer pela apatia, acomodam-se em hábitos repetitivos. E, com o tempo, o brilho da vida se apaga. As relações tornam-se insossas, as atividades perdem o sabor, a existência parece insuportavelmente leve. Surge o tédio. A monotonia pode vir da ociosidade, do excesso de telas, do automatismo das rotinas ou, ainda, do egocentrismo. Pessoas que pensam apenas em si perdem o sentido da vida – porque a vida, por definição, exige saída de si. Não raro, ouvimos adolescentes e adultos lamentando-se de suas famílias, como se o lar fosse um entrave à liberdade. Mas a verdade é que só se realiza quem cumpre, com alegria, as responsabilidades que tem. No casamento, a realização vem do cuidado mútuo, da doação cotidiana, da alegria compartilhada. Na maternidade e paternidade, ela surge do sacrifício alegre, da presença atenta, da disposição para formar, corrigir, amar.

A autorrealização, essa busca egoísta e tacanhamente obstinada por atender aos próprios desejos, às vagas imagens de sonho que temos em nossa imaginação, enquanto negligenciamos o outro – enquanto negligenciamos todos os outros, as pessoas distantes, mas também nossa própria família –, é uma grande armadilha. Vejamos Judas, que tinha ao seu lado seus irmãos apóstolos, que tinha à sua frente o Mestre dos mestres, oferecendo em refeição sua própria carne. Que fez ele? Autorrealizou-se, fez o que achou que devia fazer, não se importando com nada nem ninguém... e hoje não existe, infelizmente, nenhuma “Basílica de São Judas Iscariores”, em nenhum lugar do mundo. O que restou foi a tristeza constrangedora do Haceldama.

A realização pessoal acontece quando compreendemos que nossas circunstâncias não são obstáculos, mas trampolins. Quando entendemos que ser esposa, marido, mãe, pai, filho, amigo – tudo isso são oportunidades concretas, as únicas oportunidades reais, de crescimento interior. Realizar-se é usar bem a liberdade que nos foi dada, para sermos o que fomos chamados a ser. E isso só se dá, verdadeiramente, quando deixamos de buscar a vida como prazer e passamos a vivê-la como missão. Foi disso que nos deu exemplo o Cristo Senhor, que não viveu ao Seu gosto, servido, bajulado. Lavou os pés dos seus discípulos; calou sob a humilhação, recebeu cada golpe e cada varada que lhe deram, e carregou monte acima (nem sempre sozinho, mas até mesmo aceitando ajuda) aquela pesada cruz – que era nossa, e não d’Ele! Fez o que tinha de fazer, não por si, mas pelos outros, e fê-lo com amor, e por amor. E foi assim que, ao terceiro dia, ressuscitou dos mortos. Que a luz do ressuscitado brilhe sobre nós como esperança de salvação, sem dúvida; mas, também, como guia de exemplo e seguimento. Feliz Páscoa!

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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