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Samia Marsili

Samia Marsili

Virtudes

Passar despercebido

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Mentalidade atual diz que nada tem valor se não for exibido e reconhecido. (Foto: Marcio Antonio Campos com Midjourney)

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O que que há, hoje em dia, que não vá parar nas redes sociais? Qual imagem, ou cena, vista por nossos olhos, que não ganhe rapidamente uma roupagem melhorada, um filtro? Parece que, já há alguns anos corridos, sentimos uma verdadeira necessidade de validar a nossa experiência por meio da exposição de nossa vida, fotografando ou filmando nossos expedientes na academia, ou em momentos de lazer, ou no estudo e na leitura, os feriados que passamos com nossa família, as belas paisagens que porventura virmos, e também nossos pratos de comida, cafés, e qualquer coisa... Até momentos de oração e piedade vão hoje parar no Instagram. Isso é sintomático, sim, mas tem relação com outro aspecto cultural contemporâneo, que também me chama a atenção: a ostentação da vitória, a exposição da bondade, como se, do mesmo modo, a divulgação dos sucessos e a propaganda da caridade fossem confirmá-la no ser, fossem servir de exemplo para a sua multiplicação. Algo disso é verdadeiro, em parte, pois é verdade que “não se acende uma lucerna para ser posta embaixo da cama”, mas se a pendura no candelabro, “para iluminar a casa inteira” (cf. Mt 5,15 ou Lc 8, 16). Mas há ainda outro lado, muito relevante, e ignorado hoje em dia.

A leitura da passada Quarta-Feira de Cinzas, dia que abre o período cristão da Grande Quaresma, em que ora estamos – os dias de preparação que precedem a Semana Santa e a Páscoa, em que somos convidados a ir, espiritualmente, para o “deserto”, e despojarmo-nos do que é vão – me fez pensar outras coisas. Cito-o aqui, para quem acaso tiver perdido:

“Guardai-vos de fazer vossas boas obras diante dos homens, para serdes vistos por eles. Do contrário, não tereis recompensa junto de vosso Pai que está no Céu. Quando, pois, dás esmola, não toques a trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem louvados pelos homens. Em verdade eu vos digo: já receberam sua recompensa. Quando deres esmola, que tua mão esquerda não saiba o que fez a direita. Assim, a tua esmola se fará em segredo e teu Pai, que vê no segredo, te recompensará. Quando jejuardes, não façais como os hipócritas, que gostam de rezar de pé nas sinagogas e nas esquinas das ruas, para serem vistos pelos homens. Em verdade eu vos digo: eles já receberam sua recompensa. Quando orares, entra no teu quarto, fecha a porta e ora ao teu Pai em segredo; e teu Pai, que vê num lugar oculto, te recompensará. Quando jejuardes, não tomeis um ar triste como os hipócritas, que mostram um semblante abatido para manifestar aos homens que jejuam. Em verdade eu vos digo: já receberam sua recompensa. Quando jejuares, perfuma a tua cabeça e lava o teu rosto. Assim, não parecerá aos homens que jejuas, mas somente a teu Pai que vê em segredo; e teu Pai, que vê em segredo, te recompensará.” (Mt 6, 1-6.16-18)

Falar sobre a virtude de passar despercebido soa hoje quase como uma afronta. O amor-próprio logo se ergue em protesto: como assim ocultar-me, desaparecer? Como assim fazer coisas sem que ninguém veja? Isso nos parece uma injustiça, especialmente quando pensamos no cuidado da casa, na criação dos filhos ou no casamento. A ideia de agir sem reconhecimento nos evoca um incômodo ancestral – o receio de sermos reduzidas a uma figura submissa, que trabalha nos bastidores enquanto os outros vivem sob os holofotes. É essa inquietação que a “era da exposição” reforça: Nossos feitos não parecem completos até que sejam compartilhados, comentados, validados, e tudo se transforma em narrativa pública: a mesa bem-posta, a arrumação do quarto das crianças, o tempo de qualidade com a família. O que não é visto quase não existe. No entanto, se a nossa vida se resumisse ao que é postado e celebrado, ela não teria substância real. Analisemos a questão.

A verdadeira grandeza, a que terá recompensa perene, não está em ser visto, mas em agir. Isso vale para todas as áreas da vida

O problema não está no desejo de reconhecimento, que é legítimo, mas na crença de que só aquilo que recebe aplausos tem valor. A verdadeira grandeza não se constrói no palco, mas nos bastidores. Se tudo o que fazemos precisa ser reconhecido para que tenha sentido, nossa felicidade fica à mercê do olhar dos outros. Para muitas mulheres, essa proposta remete a uma imagem que parece saída dos contos de fada: uma espécie de Cinderela moderna, sacrificando-se silenciosamente, fazendo tudo pelos outros sem receber nada em troca. No entanto, a noção de passar despercebido não tem a ver com submissão ou apagamento. Trata-se, antes, de compreender que há um valor profundo naquilo que se faz longe da vista dos homens, sem necessidade de validação externa. Passar despercebido não significa se anular. Pelo contrário: significa agir com grandeza sem a necessidade de alarde. O rei é o primeiro a entrar na batalha, e não o último. Quem ama de verdade se coloca na linha de frente, sem esperar garantias de que será lembrado por isso. Mas há uma condição: só pode se ocultar aquele que já se fez presente. Não se trata de desaparecer sem antes ter deixado sua marca; trata-se de não se admirar excessivamente pelo que fez.

Muitas vezes, o que desgasta as relações dentro de casa não é a carga de trabalho, mas justamente a expectativa de reconhecimento. Quantas brigas surgem porque sentimos que os outros não percebem nosso esforço? Queremos ser notados, queremos que nossos gestos sejam retribuídos. E, quando não são, nos revoltamos, cobramos, nos ressentimos. Queremos que nossos esforços sejam notados, que as renúncias que fazemos sejam valorizadas. E, quando isso não acontece, cresce em nós um ressentimento silencioso. Começamos a nos tornar aquelas pessoas que, a todo momento, enumeram o que fizeram: “Acordei mais cedo para preparar o café, lavei a roupa, organizei a casa, cuidei das crianças”. A lista nunca termina, e o desejo de que os outros reconheçam esse esforço nos torna amargas, a ponto de se ouvir dizer, após uns anos, “tudo que eu fiz por essa família... e ninguém reconheceu”. Isso acontece porque, no fundo, encaramos nossas obrigações como um fardo injusto, em vez de vê-las como parte de um projeto maior. Essa amargura nasce de uma visão distorcida do serviço, como se todo esforço precisasse de um pagamento imediato em forma de gratidão.

Talvez o problema não esteja na indiferença dos outros, e sim no excesso de importância que damos a nós mesmos. A virtude de passar despercebido não nos pede que façamos menos, mas que nos preocupemos menos com o crédito. Como o artista que se apaga diante da beleza de sua obra, nossa meta não é ser celebrados, mas deixar algo de valor. Isso nos exige humildade, mas nos liberta do peso de precisar ser sempre reconhecidos. Pois essa é a armadilha do orgulho: nosso amor-próprio quer ser alimentado pelo olhar alheio. Queremos fazer bem, mas também queremos que vejam que estamos fazendo bem. E é aqui que está o problema: quando fazemos as coisas esperando a recompensa do reconhecimento, tornamo-nos escravos desse retorno. E, se ele não vem na medida que desejamos, nos frustramos, nos ressentimos, nos sentimos desvalorizados.

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Ora, a verdadeira grandeza, a que terá recompensa perene, não está em ser visto, mas em agir. Isso vale para todas as áreas da vida. Um estudante que deseja passar no vestibular não estuda esperando elogios diários por seu esforço; ele simplesmente estuda, porque sabe que esse é o caminho para alcançar seu objetivo. Da mesma forma, construir um casamento sólido, formar bem os filhos e criar um ambiente familiar acolhedor exige incontáveis atos silenciosos, pequenas renúncias diárias que muitas vezes ninguém vê. E, se ficamos esperando ser aplaudidos por cada um desses atos, acabamos desperdiçando a energia que deveríamos dedicar à própria obra.

A pessoa que está imersa no medo de não ser reconhecido, que se amargura, ressentida, enumerando seus esforços, acaba, sem notar, transformando o trabalho num instrumento de barganha. E a questão central é: qual foi a motivação para esse trabalho? Quando fazemos algo esperando sempre um retorno, corremos o risco de nos frustrar. Se fizermos as coisas por amor, encontraremos alegria mesmo quando ninguém perceber. E o mais curioso é que, quando aprendemos a agir sem necessidade de aplausos, nosso esforço se torna ainda mais valioso inclusive aos olhos dos outros.

O desafio, portanto, é não nos darmos importância excessiva. Isso não significa abrir mão de quem somos, mas deixar de admirar a nós mesmos enquanto fazemos algo. Como na fábula do cachorro que, ao tentar agarrar o osso refletido na água, solta o que tem na boca e fica sem nenhum, quem tenta ser espectador e ator ao mesmo tempo acaba fracassando. Passar despercebido, nesse sentido, não é ser fraco ou apagado, ao contrário: é agir com grandeza, sabendo que o valor de nossas ações não depende de quantas pessoas estão assistindo.

Quando nos admiramos demais pelo que fazemos, passamos a cobrar dos outros uma dívida invisível, esse ciclo de cobrança e frustração pode transformar o ambiente familiar, mas sobretudo o casamento – visto que são os pais os dois fundadores da família, que se unem num projeto comum – num campo de disputas: quem se sacrifica mais? Quem faz mais pelos outros? Quem é mais injustiçado? A esposa que cuida da casa sente que suas tarefas são mais difíceis que as do marido, que trabalha fora. Ele, por sua vez, sente que carrega um peso maior por sustentar a família. Cada um olha apenas para o próprio esforço e desvaloriza o do outro. Com o tempo, essa comparação gera ressentimento e separa aqueles que deveriam estar unidos num mesmo projeto. Ora, o pai que trabalha fora de casa e uma mãe que administra o lar não estão em competição sobre quem se esforça mais. Ambos são fundamentais dentro de um mesmo projeto. Mas, se cada um olhar apenas para suas próprias dificuldades, imaginando que a grama do vizinho é sempre mais verde, perderá a chance de valorizar o que o outro faz.

Ensinar um filho a perceber o esforço dos outros é educá-lo para a gratidão. Um filho que nunca precisou colocar a mesa do café não saberá o trabalho que isso exige

A educação dos filhos vai exigir esse mesmo olhar, e carecer de uma espécie de “exemplo sem ostentação”, de quem cumpre o dever por amor sem murmurar. Não podemos exigir dos filhos aquilo que nós mesmas não vivemos. Se a mãe reclama o tempo todo do que faz, se passa os dias se lamentando pelo esforço não reconhecido, como esperar que os filhos aprendam a servir com alegria? A educação não acontece apenas pelo que se diz, mas pelo exemplo dado.

Ensinar um filho a perceber o esforço dos outros é educá-lo para a gratidão. Um filho que nunca precisou colocar a mesa do café não saberá o trabalho que isso exige. Se nunca arrumou a própria cama, não perceberá o tempo que a mãe ou a funcionária dedicam a essa tarefa. Se nunca recolheu o próprio prato, nunca pensará em quem faz isso por ele. Mas ensinar a perceber o esforço dos outros não acontece automaticamente quando se dá a eles tarefas dentro de casa: é preciso ensinar-lhe a sensibilidade para notar quando alguém precisa de ajuda, para agir sem que seja solicitado, para oferecer algo sem esperar retorno imediato.

Quando um filho aprende a servir com generosidade, ele se torna capaz de perceber o que os outros fazem por ele. A solução não está em longas explicações sobre responsabilidade, mas em envolvê-los num ambiente de entrega. Quando eles participam da vida familiar, aprendem que suas ações têm um impacto real e que seu trabalho faz diferença. Mais do que cumprir obrigações, eles passam a enxergar as necessidades dos outros e a agir espontaneamente para supri-las.

Passar despercebido não significa ser uma vítima do ambiente familiar, mas criar um espaço onde todos se sintam parte ativa da vida em comum. Quando cada um percebe o valor do que o outro faz, o peso do serviço diminui e a convivência se torna mais leve. Quando cada um aprende a enxergar o que o outro faz, a dinâmica familiar muda. Não há mais cobranças veladas, nem disputas sobre quem se sacrifica mais. No lugar disso, surge uma atmosfera de generosidade, onde cada um busca fazer pelo outro antes mesmo de ser solicitado. A virtude do serviço invisível cria um ambiente em que todos têm sua dignidade reconhecida, não pelo que exigem, mas pelo que oferecem. Quem aprende a passar despercebido em seus esforços não se torna uma figura apagada, mas um fermento que faz a massa crescer sem se destacar.

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E há algo mais profundo nisso tudo. Esse medo de “ser uma Cinderela”, de viver em função dos outros sem reconhecimento, nasce, muitas vezes, de uma incapacidade de perceber o que os outros já fazem por nós. Quem só vê o próprio esforço e não percebe o serviço alheio sente-se injustiçado e sobrecarregado. Mas quem desenvolve a delicadeza de alma para notar os pequenos gestos de dedicação que recebe diariamente descobre que o amor verdadeiro não precisa de plateia. Talvez esqueçamos que, ao fim do conto, Cinderela tem uma recompensa bem melhor, perene e luminosa.

Qual recompensa queremos? A que se destinam nossas ações? Estas são as perguntas-chave. Se queremos viver para alimentar o grande “Instagram” de nossa autoimagem, devemos fazer tudo perfeito por fora, para que a aparência do bem seja apreciada, elogiada, admirada – nisso teremos nossa recompensa, como ensinava Jesus. Mas, se queremos que nossas ações sejam confirmadas no ser, devemos fazê-las no segredo dos homens, mas que veja o Pai, isto é, Deus, que é o Ser e o Ato puro – o qual, aliás, age o tempo todo, mas ninguém vê. “Guardai-vos de fazer vossas boas obras diante dos homens, para serdes vistos por eles”, e assim entesouraremos uma recompensa bem melhor... “Assim, não parecerá aos homens que jejuas” – ou que acordas cedo, ou que trocas teus filhos, ou cozinhas, ou limpas, ou lavas, ou trabalhas, e te fadigas, e engoles sapos no trabalho, ou economizas dinheiro por teus filhos, ou... –, “mas somente a teu Pai que vê em segredo; e teu Pai, que vê em segredo, te recompensará”.

Tudo isso bem compreendido, vemos que, no fundo, não se trata exatamente de fazer as coisas em segredo ou às claras para esperar reconhecimento; trata-se de compreender que o valor de uma ação não depende do número de testemunhas que a observam, mas tem valor em si mesma, no seu ser. A verdadeira nobreza está na capacidade de agir com grandeza mesmo quando ninguém está olhando. O verdadeiro espetáculo do amor acontece longe dos holofotes. Ele se desenrola nas pequenas ações diárias, na paciência silenciosa, no esforço escondido, na alegria de fazer sem esperar retorno. E a recompensa, embora discreta agora, é profunda: um lar onde todos se sentem amados não pelo que cobram, mas pelo que dão, e que antecipa, como imagem, a bem-aventurança do Céu.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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