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Samia Marsili

Samia Marsili

O exemplo de Teresinha

O caminho miúdo

Santa Teresinha do Menino Jesus
Santa Teresinha do Menino Jesus em foto de 1888, aos 15 anos. (Foto: Wikimedia Commons/Domínio público)

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Por esses dias, em 1.º de outubro, a Igreja Católica fez memória de Santa Teresinha do Menino Jesus e da Sagrada Face – ou apenas “Teresinha”, como falam dela seus amorosos devotos. Pelas redes sociais e pelo WhatsApp correm soltas as imagens, as fotos, as artes que relembram essa santinha tão querida, por quem muita gente tem carinho especial. Esse material é, em geral, muito singelo, adocicado – quando não resvala logo, podemos dizer, no brega! São muitas rosas, muita meiguice e delicadeza.

Acontece, porém, que Santa Teresa de Lisieux figura na lista dos que são chamados “Doutores da Igreja”, e “Doutor”, aqui, significa que este santo fez ao ensinamento perene da Igreja uma contribuição não apenas significativa e ultrarrelevante, mas também original, inovadora, única. Tenhamos em mente que, ao seu lado, no panteão, estão eminências como Santo Agostinho, São João Crisóstomo e São Jerônimo, São Boaventura e São Tomás de Aquino. Não são mais que 37 no total. Não é pouca coisa.

O que pode ter trazido assim de tão singular e profundo uma freirinha carmelita que não chegou a completar 25 anos, que amava as flores e que, segundo ela própria narra em seus escritos autobiográficos, fora uma criança mimada e chorona?

Teresinha teve o gênio de fundar um caminho novo, ainda que tão velho e tão comum. Ela soube revelar ao mundo a via dos fracos, dos pequenos, dos desajeitados – e não somos maioria? Com seu gênio, ela mostrou que o heroísmo do amor não precisa de holofotes nem de grandes bravatas, pois é capaz de penetrar, também, os gestos mais míseros, um simples cruzar de pernas, e que, invadidos por esse amor, qualquer ninharia vira ouro de santidade.

Santa Teresinha teve o gênio de fundar um caminho novo, ainda que tão velho e tão comum. Ela soube revelar ao mundo a via dos fracos, dos pequenos, dos desajeitados

Aos que não têm interesse por religião, nem muita tolerância ao que, à primeira vista, lhes pareça piegas (se acaso ainda estiverem aí, e tiverem perseverado até o quinto parágrafo), devo dizer que essa via miúda, desvendada por Teresinha, é de interesse geral, e aposto que o coração de muita gente pressinta o valor que esse caminho tem. Quem não sente um júbilo curioso quando ouve dizer que o coelho branco, da Alice de Lewis Carroll, entrou por um buraco miúdo, do outro lado do qual existe um país inteiro de maravilhas, antes invisível e desconhecido? Quem não se anima ao ler a primeira frase do livro de J. R. R. Tolkien “Numa toca no chão vivia um hobbit”, sabendo que essas criaturas pequenas e desimportantes serão as protagonistas do drama de salvação da Terra Média? Eu poderia multiplicar os exemplos.

É que Jesus já havia dito que “quem é fiel no pouco também será fiel no muito” (cf. Lc 16, 10), e quem tiver sido fiel no pouco lucrará poder sobre o muito (cf. Mt 25, 23). Ele mesmo passou 30 anos nivelando mesas, serrando pranchas, lixando ripas... Desde que o Verbo se fez carne e habitou entre nós, nenhuma vida comum pode ser considerada indiferente aos olhos de Deus. Cristo nasceu numa família, exerceu um ofício, trabalhou com as mãos, serviu em silêncio antes de entregar-se publicamente à sua missão. Essa sua humilde normalidade é um sinal, e também um modelo, para que a nossa vida ordinária se torne, em seu interior, extraordinária.

Deus, criador e sustentador do universo, que contempla o passado, o presente e o futuro, “só sabe contar até um”, como diz a velha expressão. Quer dizer, Ele olha para mim, para as minhas pequenas coisas, como se não houvesse mais ninguém no mundo. E se Ele se interessa até pelo que a mim parece banal, esses gestos, tarefas e acontecimentos que se repetem sem brilho podem modelar em mim a Sua própria imagem. Eis aí uma coisa muito interessante: converter “gente como a gente”, ordinary people, numa multidão de gente parecida com Deus. É o que Teresinha viveu, explorou com sucesso, e explicitou com sua palavra.

Mas, como em tudo o que é essencial, também aqui há falsificações. E como em todo caminho, por menor que seja, há também armadilhas e a oferta de atalhos enganosos. O perfeccionista, por exemplo, é um falsificador. Vive aprisionado nas minúcias, refazendo eternamente sua obra-prima sem jamais concluí-la, como Sísifo empurrando sua pedra montanha acima. Persegue uma perfeição desumana, que não busca a obra, mas a própria imagem idealizada de si mesmo. Foge dos riscos sob o pretexto de humildade, e no fundo não ama as pequenas coisas – só tem a alma pequena.

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Outro desvio do verdadeiro amor pelas pequenas coisas é o rigorismo. O homem rigorista não distingue o essencial do acessório. Briga por formas, protocolos, formalidades, mas descuida da justiça, da caridade, da verdade. Corrige os filhos nos modos à mesa, mas ignora os amigos com quem andam, os vídeos que veem, as ideias que absorvem, os sentimentos cultivam. Exige pontualidade absoluta, mas não pergunta à esposa a razão de sua tristeza. Filtra mosquitos, mas engole camelos. Não é esse o valor das minúcias ordinárias... Assim tornam-se como que fariseus contemporâneos, que cultivam tabus, aparências ou fórmulas religiosas barateadas.

Mas, fora essas caricaturas, que pervertem o sentido da coisa, devemos nos preocupar, sobretudo, com seus “inimigos internos”, com os obstáculos que se nos apresentam nessa via miúda, de aproveitamento interior do cotidiano. A meu ver, poderíamos dividir esses “desertores da pequena via” em três, e nomeá-los assim: rotina, desleixo, evasão. Cada um desses desvios ameaça minar a grandeza escondida do cotidiano.

Digo “rotina” querendo remeter àquele expediente em que, carregados do peso do cansaço e da repetição, perdemos de vista o sentido e a motivação da organização das nossas coisas e dos nossos dias. A perda de consciência dentro da rotina embota os gestos, esvazia as ações, logo compromete a sua finalidade. A vida, afinal, caminha por trilhos estreitos, repetitivos, em tarefas diárias que nos moldam e configuram as nossas responsabilidades. Quando bem vividas, instauram hábitos bons, repetições que sustentam a fidelidade. Mas há duas rotinas, por assim dizer, a do bem e a do mal, a da mesmice e da pequenez de alma, e aquela em que, invisível no nível da aparência, faz raízes profundas crescerem cada dia mais. A primeira é a sombra que nos arrasta a fazer as coisas como sempre, sem frescor, sem horizonte, apenas “empurrando com a barriga”; a segunda é a toca do coelho branco!

Nessas condições, a alma certamente adoece. Produz-se um tédio infinito, um deserto interior, um vazio que torna a vida insuportavelmente chapada. O trabalho se degrada em burocracia estéril, o matrimônio perde a chama da novidade e se afunda em queixas mesquinhas. A rotina dissolve até os sonhos mais nobres, e a pessoa, sem perceber, passa a viver como quem apenas come, dorme, trabalha – e morre. Mas a raiz dessa tragédia é, em contraste com o que tratamos aqui, supor que Deus – o Sentido, a Vida, a Alegria – está ausente das pequenas coisas do instante, por parecerem demasiado triviais.

Se Deus se interessa até pelo que a mim parece banal, esses gestos, tarefas e acontecimentos que se repetem sem brilho podem modelar em mim a Sua própria imagem

A rotina tem seu cúmplice no engodo, o segundo da lista: desleixo. Ele nasce da preguiça, desse coeficiente de inércia que nos arrasta a adiar, a fazer pela metade, a afrouxar as exigências por comodismo. Quem se acomoda, pouco a pouco, renuncia ao ideal, quase sem perceber. Quando se dá conta, já está longe do que queria ser. Como era mesmo? O profissional, antes generoso, transforma-se em mercenário “realista”; o pai de família, antes entusiasmado, descobre-se enfastiado e sem nada a oferecer aos filhos. Não há aqui grandes traições conscientes, mas a soma de pequenas desistências que silenciosamente desviam a rota. O desleixado é o homem do “quase”: quase conseguiu, quase terminou, quase fez. Mas o “quase” invalida o resto. Quem quase impediu a separação de um casal não impediu. Quem quase ajudou um parente a reconciliar-se com Deus antes da morte falhou. A fidelidade não se mede por ânimos fugazes, intenções, mas pelo detalhe final, a perseverança, pelo último tijolo colocado.

As formas mais comuns desse desleixo são três. Primeiro, as omissões: detalhes esquecidos, prazos descumpridos, promessas não cumpridas. Depois, as remissões: os adiamentos que anestesiam a consciência com desculpas piedosas – “amanhã eu faço”, “hoje não dá tempo”. Mas Deus, lembra Santo Agostinho (que por muito tempo foi um adiador), prometeu o perdão ao arrependido, não o amanhã aos que adiam. E, por último, a preguiça nua e crua, sem véus, que se revela em trabalhos feitos às pressas, tarefas mal acabadas, responsabilidades empurradas para os outros.

E não é raro que quem foge do esforço real se desgaste em agitação estéril. Trabalha muito, mas sem ordem; ocupa-se em mil coisas, mas sem eficácia. Não trabalha nem estuda, apenas se agita e sacode. À força de descuidar dos detalhes, pode-se ser ao mesmo tempo incansável e comodista.

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O terceiro inimigo das pequenas coisas é a evasão. Quero com essa expressão me referir àquela fuga da realidade, que desconfia da solidez do trabalho e prefere apostar – ainda que repetidas vezes, e após repetidas desilusões – no truque, a tacada de mestre, no arroubo de sucesso, em ganhar na loteria da vida. A grandeza se compõe de pequenos tijolos, mas um coração sonhador, no sentido de evasor, muitas vezes rejeita o tijolo e busca atalhos. Cansado da monotonia, refugia-se em mundos imaginários onde tudo é possível sem esforço. Alguns constroem sistemas intelectuais grandiosos, teorias políticas, filosóficas ou sociais que prometem a salvação do homem sem nuances. Outros fogem para romances sentimentais, heroísmos, melodramas idealizados. Há ainda os que mergulham na melancolia, repisando dores antigas, ampliando ofensas, vivendo da autopiedade como se o cinismo fosse um prazer refinado.

O denominador comum dessas evasões é o egocentrismo. O sonhador evasivo faz de si mesmo o centro do universo, exigindo que tudo gire em torno de sua própria expectativa. Despreza o cotidiano, que lhe parece mesquinho, e alimenta o delírio de que nasceu para algo maior, que a vida lhe deve mais. Mas o que move esse desencanto não é grandeza verdadeira: é medo do esforço. Porque viver o real, com seus pequenos sacrifícios, custa. E o sonhador foge para a cápsula protetora de seus devaneios, onde não há dor, mas também não há verdade.

E por acaso isso quer significar que não podemos sonhar, e que devemos nos entregar à mesquinhez da vida? Já deve estar claro que não. A pequena via – aliás, como toda a ortodoxia, segundo Chesterton – é abraçar o paradoxo, pois em sua tensão reside a verdade. O segredo está em sonhar, sim, mas aprendendo a colocar a alma inteira no gesto pequeno, transformando o cotidiano em reflexo da eternidade. Aquelas pessoas que parecem viver numa serenidade constante, sempre de bem com a vida, que não se abalam diante da dor, que irradiam generosidade, constância e paz – não são vidas alienadas nem refugiadas “no mundo da lua”. São vidas que aprenderam a encontrar novidade no habitual. Não se queixam do calor ou do trânsito, do arroz que empapou ou da comida que atrasou, porque descobriram, nessas fainas corriqueiras, sinais de Deus. É esse “sentido sobrenatural” que nos ensina a olhar cada gesto banal – um trabalho interrompido, um atraso no trânsito, uma conversa cotidiana – como parte de um plano divino. Não se trata de dourar a vida com consolos fáceis, mas de chamar as coisas pelo nome, sem paliativos. A fé, com objetividade firme, mostra-nos quando se trata de cansaço legítimo ou de preguiça disfarçada; quando uma rotina é fidelidade ou simples acomodação.

As almas grandes dão enorme valor às coisas pequenas, porque sabem que delas depende a renovação do mundo

Com essa visão elevada, as pequenas coisas se tornam parte articulada de uma história maior: não são fragmentos dispersos, mas pedras vivas de uma construção que é de Deus. É o que sustenta a fidelidade no dia a dia, sobretudo diante do dever e das contrariedades. O homem de fé não falta ao encontro marcado com o dever – agradável ou ingrato, público ou invisível – porque sabe que, dentro dele, está oculto o maná que alegrará seus dias.

E se a nossa fé é fraca, e em poucos dias se esvai? Tentamos nos esforçar, fazemos propósitos, e logo os abandonamos? Ah, aí estão tentativas de fazer grandes gestos, caminhos grandes! Somos pequeninos e fracos, não disse Santa Teresinha? Se nossa fé ainda não resiste além de umas poucas práticas intermitentes, resta-nos fortalecê-la. Como? Com as mesmas pequenas coisas de cada dia. Faça pequenos propósitos, marque minúsculos encontros consigo próprio e com Deus; ponha-se por poucos instantes que seja diante do sentido maior que pode revitalizar seu trabalho e seus cansaços. Cinco minutos antes do trabalho, um minuto ao menos antes de repousar ao meio-dia, quinze minutos à noite – disso seremos capazes, e assim perseveraremos.

As práticas simples serão como janelas abertas em nossa rotina para que por elas entre o sopro do Espírito, a nos devolver o olhar sobrenatural sobre o humano, o único capaz de enfrentar a monotonia, a dor, as decepções. É nesses gestos pequenos e repetidos que a alma se torna objetiva e forte, serena e capaz. Só assim a vida inteira se abre como um campo fértil, onde cada detalhe, por mais humilde, se torna ocasião de encontro com o Eterno.

As almas grandes dão enorme valor às coisas pequenas, porque sabem que delas depende a renovação do mundo. São discretas, quase sempre anônimas: pais e mães que defendem a dignidade da família, profissionais que não se vendem à corrupção, intelectuais que preferem a verdade à fama, jovens que ousam manter ideais nobres, políticos que resistem à conveniência quando ele degrada o humano. Vão contra a maré dos tempos, mas é precisamente dessa contramaré que dependem os tempos novos. Está aí o exemplo, para quem quiser ver, de Teresinha, da meiga freirinha de 25 anos que, quando passou desta vida para a eternidade, foi digna de sentar-se entre os Doutores.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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