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Samia Marsili

Samia Marsili

Virtudes

Silenciosa, invisível coragem

coragem
A verdadeira coragem pode estar em não compactuar com pequenas injustiças em ambientes como o do trabalho. (Foto: Imagem criada utilizando Whisk/Gazeta do Povo)

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Você se considera uma pessoa corajosa?

Desculpem-me por começar assim, à queima-roupa, lançando logo uma pergunta na cara. Não é muito delicado para uma coluna de jornal, sei disso, mas faço-o conscienciosamente; quero dizer, o gesto nos leva para o assunto sobre o qual pretendo refletir.

Sigamos por essa senda: Você respondeu imediatamente, sem titubear, que não? Então talvez você seja mais corajoso do que pensa. Você respondeu instantaneamente que sim? É bom sinal: o ímpeto, a disposição já acostumada a se colocar para a frente, são signos possíveis da fortaleza. Mas também pode significar apenas imprudência – coragem falsa, bravata, ou, em bom português contemporâneo, “só garganta”. Ou então, ao ser atingido pela pergunta, você parou para pensar? Voltou os olhos da atenção para dentro de si, e talvez lhe tenham vindo à mente algumas imagens e memórias, aquelas situações que o marcaram como sendo duvidosas, intrincadas – “Será que agi bem ou mal daquela vez?” – e, enfim, não conseguiu dar uma resposta simples à minha pergunta?

Quando lemos histórias de coragem, ou assistimos a filmes e séries que retratam gestos corajosos, fica mais fácil identificar essa virtude. Ao abrirmos, por exemplo, o Livro das virtudes para crianças, com as histórias e poesias selecionadas por William J. Bennett, podemos ler para nossos filhos as narrativas de coragem de heróis de armadura e espada, contra o dragão terrível que quer devorar a doce princesa. Se ele permitir que isso aconteça, é um covardão. Se enfrentar o monstro, mesmo que morra tentando, é corajoso. Assim fica mais simples. E de fato, como explica o filósofo Josef Pieper em As virtudes fundamentais,

A fortaleza implica vulnerabilidade; sem essa vulnerabilidade, não existe sequer a possibilidade de fortaleza. Um anjo não pode ser forte, porque não é vulnerável. Ser forte significa ter capacidade para receber um ferimento. O homem pode ser forte porque pode ser ferido. [...] O ferimento mais profundo e extremo é a morte. E mesmo os ferimentos não mortais são imagens da morte. [...] Por isso, toda a fortaleza se relaciona com a morte; toda a fortaleza tem diante de si a morte. No fundo, a fortaleza é uma disposição para morrer, ou melhor, uma disposição para cair, isto é: para morrer em combate.”

Onde ele diz “fortaleza”, podemos trocar por “coragem”, e compreender o mesmo sentido.

Fica realmente mais simples quando imaginamos as situações extremas, mais próximas da morte, não somente na ficção, mas conosco próprios. Por exemplo, pergunto: Você daria a vida por seus filhos? Numa situação de perigo, pularia na água ou no fogo para salvar sua esposa? Você, mulher, se poria em combate contra um homem muito mais forte do que você, para salvar sua filha? Você, homem, não saltaria diante de uma bala para salvar sua mulher? Ou sua irmã, ou sua sogra? Ou mesmo um grande amigo seu, às vezes até mesmo um desconhecido indefeso, e até um desafeto, quem sabe. Porque diante da morte tudo deve ganhar sua justa proporção. Quem tem o mínimo de coragem, ou de fortaleza, facilmente responde que sim – ao mesmo tempo em que espera nunca ter de chegar a esse ponto. Logo, a pergunta é mais fácil assim: Tem coragem de arriscar a vida por alguém que ama? Sim, tenho: sou corajoso.

Temos de ser corajosos, fortes, em vez de covardes e fujões, em situações menores e repetidas

Esses extremos, como eu disse, lançam sobre a questão uma luz diáfana, que a torna clara como o dia, preto no branco. Mais difíceis, porém, são as pequenas batalhas do dia a dia, em que tudo é pequeno, se comparado, em proporção, a São Jorge duelando contra o dragão. E em que tudo é mais complicado, pois há muitos elementos em jogo... há toda a nossa história, todas as nossas muitas emoções, dores e incômodos, as pressões que vêm simultaneamente de todos os níveis de responsabilidade: como esposas e maridos, como pais, como filhos, irmãos ou noras, e no trabalho, no cuidado doméstico, no cuidado com a própria saúde, com relação àqueles sentimentos de vocação e de sonho a que queremos corresponder, e assim por diante. O cavaleiro, quando sai em campanha em busca de tortos para endireitar, como diria Dom Quixote, é um figurão bem resolvido, bem... abstrato, que só tem um único problema para resolver. É uma lente de aumento sobre o problema da coragem, mas nossos conflitos, na realidade, não são exatamente assim.

Temos de ser corajosos, fortes, em vez de covardes e fujões, em situações menores e repetidas, e que às vezes se apresentam com um aparente “sinal trocado”. Exemplo, as muitas vezes em que temos de engolir sapo, de suportar a má educação de um chefe ou de um colega, ou mesmo de alguém que presta serviço a nós, por um bem maior: pela permanência da ordem, pelo bom sucesso do projeto, pelo conforto dos nossos filhos. E nessa categoria abrangente estão todos os muitos sofrimentos, maiores e menores, que aceitamos suportar, calados, por um bem que almejamos.

Uma pessoa calada e submissa pode ter a aparência de um covarde, mas pode haver ali, o que por vezes ocorre, uma nobre e sólida coragem de permanecer. “Ser forte significa ter capacidade para receber um ferimento. O homem pode ser forte porque pode ser ferido”, dizia Pieper. E, se “mesmo os ferimentos não mortais são imagens da morte”, tudo o que fazemos como sacrifício por amor de nossos semelhantes, em primeiro lugar por amor de nossa família, é uma morte nossa de cada dia, mas uma morte com sentido, uma pequena entrega da vida por amor à vida do próximo. Nem preciso mencionar que a morte na Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo é o tipo e o modelo dessa dinâmica, e que sua gloriosa Ressurreição é a revelação da validade, da efetividade do seu sentido redentor.

Vale a pena lembrar, aqui, uma distinção interessante que nos dão os antigos. No início do cristianismo, como creio que todos saibam, foi grande a perseguição aos adeptos dessa nova “seita”, como era chamada, tanto por parte dos judeus como por parte dos pagãos, por motivos diferentes, mas que culminavam, enfim, na condenação à morte dos discípulos do Nazareno. Aquele que, mesmo ameaçado de morte – e não de qualquer morte, mas ameaçado a ser trucidado das maneiras mais cruéis possíveis, ameaçado de ser assado, frito no óleo, comido por leões ou mesmo crucificado como o Mestre –, digo, aquele que, mesmo ameaçado de uma morte terrível, não renegasse a sua fé, não deixasse de afirmar a verdade daqueles fatos ocorridos e o seu sentido (a saber, que Jesus era o Cristo esperado pelos judeus, que era Deus feito homem, nascido de uma virgem, que fora morto injustamente, apesar de ser inteiramente inocente, e que ressuscitara dos mortos para dar a vida ao mundo etc.), e aceitasse bravamente essa morte, era considerado um mártir.

E o martírio, vejam que interessante, não era, e não é, algo que o cristianismo compreenda como sendo fruto de uma força inerente à pessoa, algo que ela consiga fazer por sua própria força de vontade. Não, o martírio é uma graça recebida, é uma coragem ou uma força especial, sobrenatural, que o fiel recebe naquele instante decisivo, para entregar a vida por algo que ele não vê com os olhos da cara, mas pela fé, isto é, ainda “como em enigma e espelho” (1Cor 13, 12).

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Aconteceu, porém, que, terminados os primeiros séculos, especialmente após o Édito de Constantino, a perseguição contra os cristãos arrefeceu, na Europa e também no Oriente. A Igreja pôde, então, começar a organizar as suas práticas de culto e de piedade, a estabelecer seus parâmetros e normas com mais tranquilidade e segurança, sem a preocupação constante com a violência e a morte. Não demorou muito para que, naquele mesmo século 4.º, tivessem início os rudimentos do que se viria a chamar de “vida monástica”, que era também um estado de vida inteiramente entregue às verdades da fé, e que por isso renunciava a praticamente todas as regalias lícitas da vida no mundo. Os monges seguiam, para além dos mandamentos do Novo Testamento, os chamados “conselhos evangélicos”, numa entrega radical que os levava a viver a pobreza, a castidade e a obediência.

Agora, a distinção interessante a que me referi no início: no começo do monasticismo, esse estado de vida ganhou o apelido de “martírio branco”. Isto é, tem o sentido e a coragem do martírio, mas é “branco”, não é manchado de sangue. Não é uma palavra final, um gesto impetuoso de bravura, como o do mártir, que é um herói da fé, mas um martírio cotidiano, que crucifica cada hora do dia e cada escolha e cada gesto em benefício da realidade sobrenatural, que abarca a natural; em suma, em testemunho da veracidade da fé.

Dezessete séculos mais tarde, essa expressão ainda não tem algo a nos ensinar? A mim parece que ela traga, sim, uma luz renovada, um alento para nós que, ao contrário dos monges, estamos no mundo, e aqui pelejamos. Porque, hoje em dia, casar-se e lutar pelo casamento, por sua permanência e sua saúde, e abrir-se para a vinda dos filhos, e ademais desejar criar bem esses filhos, para que tenham virtudes e caráter, para que tenham cultura sadia e inteligência, tudo isso já é, contra os muitos “estados de vida” egoístas e hedonistas a que somos todos incentivados, de um heroísmo sem par. É, por si, um novo martírio branco. E, como o primeiro, tem sua própria pobreza, sua própria castidade e sua especial obediência, que exigem de nós complexos e heroicos pequenos gestos de coragem no dia a dia, pelos quais não seremos imediatamente recompensados com a palma da vitória.

E aí está a prática, a nossa lida diária. De novo: Você se considera uma pessoa corajosa?

No Evangelho de São Mateus, lá pelo capítulo 12, Jesus diz uma palavra muito forte àqueles que o acusavam de – vê se pode! – expulsar um demônio, não por autoridade divina, mas por conchavo com o chefe dos demônios. Ele diz: “Quem não é comigo é contra mim, e quem não recolhe comigo, dispersa” (v. 30). Que quer isto dizer? Penso que, entre outras coisas, queira significar que, na defesa do bem e da verdade, não existe neutralidade. Não há como ficar isento num contexto de guerra, em que se debatem o bem e o mal.

Isso é uma crítica ao “isentão” político, que não escolhe de uma vez a direita ou a esquerda? Pode até soar assim, e não digo que não se aplique nunca a situações políticas, mas não é isso o que quero expressar aqui. Na verdade, reduzir a coisa a dois partidos, um dos quais se deve tomar, seria muito fácil, simplório. Seria desejar que o mundo fosse simples como São Jorge e o dragão. E não é.

Devemos ensinar a nossos filhos que não importam tanto assim a opinião dos outros, o que vão dizer, os respeitos humanos e a nossa posição social

São Tomás de Aquino diz que “o louvor da fortaleza depende de alguma maneira da justiça”. E completa Josef Piper, algumas páginas antes do que já lemos:

“Para a teologia clássica da Igreja, a prudência é a sabedoria com que o homem que age e decide possui o bonum hominis, o verdadeiro bem humano: o bonum rationis, o bem da razão, isto é: a verdade. A prudência é a mais alta de todas as virtudes cardeais. Com a sua visão concreta do ser objetivo, garante o realismo da ação; e, portanto, tanto no âmbito do natural como no do sobrenatural, o próprio bem intrínseco da ação. É pela prudência que o homem reconhece as leis eternas da realidade e as aceita como normativas.”

O que isso significa, na prática? Que realmente não é fácil saber o que é o certo e o que é o errado em cada situação. Esse discernimento não só tem um nome, prudência, como é considerado “a mais alta das virtudes”. Sem conseguir identificar o bem em cada situação, ou o “mal menor” em tantas outras, não adianta muito ter a disposição para agir. E, para identificar o bem em cada situação, é preciso, primeiro, estar disposto a isso. É preciso querer ouvir a voz da verdade, em vez de querer sobrepor a ela o próprio desejo. Ouçam agora o que vem adiante na fala de Jesus, logo após aquele verso que citei: “Todo pecado e blasfêmia será perdoado aos homens; a blasfêmia contra o Espírito San­to, porém, não será perdoada. Se alguém disser uma palavra contra o Filho do Homem, ser-lhe-á perdoada; mas se alguém a disser contra o Espírito Santo, não lhe será perdoada, nem neste século nem no futuro” (Mt 12, 31-32).

Não querer ouvir a voz da verdade, que sopra em nosso interior, que nos chega como voz da consciência, é uma interpretação possível de “blasfêmia contra o Espírito Santo”.

Só que discernir o certo e o errado, nas situações, quase nunca será uma operação mental, no sentido de cerebral, raciocinada. A prudência ilumina a inteligência, e isso se reflete na razão, é claro – quero dizer, é evidente que é possível explicar e argumentar em favor de um posicionamento correto, e por isso é possível (e salutar) pedir conselho e aconselhar. O problema é que muita gente, por covardia, se apega e se esconde atrás da pesada teoria da teologia moral, como quem se escondesse atrás dos grossos tomos da Teologia Moral de Santo Afonso de Ligório. Destrincham qualquer situação com a simplicidade de um computador, de uma inteligência artificial, para a qual é muito fácil jogar a premissa e um par de dados concretos na fórmula, e tirar o resultado. E assim, em vez de cuidarem de sua própria orientação moral, julgam os outros. Arrogam-se mestres, e dão mau conselho aos desavisados. Nada disso é prudência, mas sim covardia disfarçada.

“Quando vós vedes levantar-se uma nuvem no poente, logo dizeis: ‘Aí vem chuva’, e assim sucede. Quando sentis soprar o vento do sul, dizeis: ‘Vai fazer calor’, e assim sucede. Hipócritas! Sabeis distinguir os aspectos da terra e do céu; como, pois, não sabeis reconhecer o tempo presente? E por que não discernis por vós mesmos o que é justo?” (Lc 12, 54-57). São memoráveis essas palavras de Jesus, em que nos chama de hipócritas. Sabemos olhar para o céu e prever que vai chover, sabemos ler tantos sinais da realidade e nos posicionar nas situações, mas fingimos não saber o que é certo em muitos casos, e nos apegamos a alguma outra regra moral, ao “equilíbrio”, a que não devemos ser “radicais”, à “prudência” – disfarces para a covardia.

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Pois, sim, a realidade é complexa, multifacetada; as pessoas têm, dentro de si, não uma batalha, mas guerras inteiras. A história de cada um é longa e pode ser dolorida. A consciência de cada um sobre seus próprios erros pode ter muitos níveis diferentes. E, sobretudo, o peso relativo que uma coisa tem, na vida concreta, concretíssima, real de uma pessoa humana, só pode ser julgado no contexto dessa mesma vida. No fim das contas, esse problema indica o bem ou o mal de uma pessoa real, que vai verdadeiramente para o Céu ou para o Inferno. Não é uma brincadeira. Diante disso, às favas a teologia moral – a falsa, não a verdadeira. A verdadeira teologia moral é uma ciência, e a direção espiritual é uma arte. São necessários anos de estudo, de prática e de discernimento, e é necessária uma luz especial de Deus para o sucesso dessa faina. Não à toa há homens que dedicam suas vidas tão somente a isso. Portanto, não é assunto de moleques, e muito menos assunto de crianças.

Devemos ensinar nossos filhos a terem o sentido aguçado da justiça, o amor pela verdade, o respeito pela própria consciência, a perseguir a verdadeira prudência e, enfim, a coragem de agir em conformidade com tudo isso. Devemos ensinar-lhes que não importam tanto assim a opinião dos outros, o que vão dizer, os respeitos humanos e a nossa posição social. Importa agir como São Jorge, sim, mas numa situação tão complicada aos olhos exteriores, passível de ser avaliada por tantos valores diversos, que talvez só nós saibamos de verdade o que estamos fazendo – nós, e Deus.

Nós enfrentamos, e também nossos filhos enfrentarão, desde logo, situações em que simplesmente ficar calado diante de uma mentira leve – mentira ou “interpretação pessoal”?... –, para se manter popular, ou para manter o emprego, vai parecer inofensivo. Talvez pareça até coragem: “Devo engolir essa injustiça, que afinal não é comigo, e nem sou eu o seu autor, pelo bem da minha família, pois preciso deste emprego”. Em seguida, será preciso, mais que ficar calado, ser um pouco conivente com uma difamação. Depois, sorrir. No outro dia, acenar com a cabeça que sim. Em pouco tempo, o sujeito está mentindo junto, está pactuado com o clubinho dos ímpios e nem sabe como foi parar ali. Foi covarde. Não se posicionou, tentou ser neutro, tentou se isentar. Mas “quem não recolhe dispersa”.

Não confiamos na palma da vitória que será entregue pelo martírio branco. Não confiamos ainda que essa silenciosa, invisível coragem, de sermos fiéis aos nossos valores em cada coisa, nos será recompensada. Mas será.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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