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Vidas paralelas
| Foto: Pixabay

Houve um filósofo, chamado Plutarco, que viveu entre o primeiro e o segundo séculos depois de Cristo. Ele era grego de origem, mas vivia no auge do Império Romano. Além de filósofo foi também um grande educador, mas seu nome ficou imortalizado na história por conta de uma terceira atividade: a de biógrafo. Depois de ter escrito as biografias de vários imperadores, Plutarco começou a trabalhar na que se tornou a sua obra mais famosa, as Vidas paralelas. Em cada volume da série, ele escolhia duas grandes personalidades, sempre um grego e um romano, que tinham sua ocupação em comum — dois médicos, dois oradores, ou dois grandes guerreiros, como Alexandre Magno e Júlio César. Mas, logo após uma introdução, em que descrevia essa semelhança de condição, o biógrafo passava logo a se ocupar de mostrar como cada uma era diferente, ao modo grego e ao modo romano.

Comecei lembrando desse filósofo, e aludindo a esses livros, para insinuar, bem aos poucos, uma ideia que, se dita logo de cara, à queima-roupa, talvez inspire em nós sentimentos desagradáveis, um misto de vergonha e medo que nos faria negá-la imediatamente, tão logo fosse enunciada com todas as letras. Não é mesmo uma ideia bonita. Mas acontece que ela opera em nós inconscientemente, originada tanto em tendências inatas do ser humano como em influências culturais das quais também não somos plenamente conscientes. É uma ideia ardilosa, que assume as feições de felicidade, mas que, como um vírus de computador escondido, mina a nossa busca pela felicidade e gera apenas mal-estar, frustração, sofrimento. E, para nos livrarmos dela, não resta outra opção senão olhá-la de frente, aceitar e assumir francamente que ela está em nós, que agimos em consonância com ela, e assim poderemos substitui-la por outra, mais salutar, e com a qual concordemos de fato.

Vamos a ela, enfim, com coragem. A ideia é a seguinte: O meu casamento e os meus filhos atrapalham a minha vida. Essas pessoas — minha esposa, meu marido, as crianças —, tudo o que elas demandam de mim, tanto emocionalmente como temporalmente, o esforço, as tarefas, tudo isso são obstáculos, são estorvos que apenas atrasam e atrapalham “a minha vida” — uma vida paralela que eu gostaria de viver além da que vivo com eles, apesar deles. Pode ser que nós nunca tenhamos dito essa frase nem nada parecido, e nem mesmo pensado assim por vontade própria. Mas, em nossas reações, no nosso sentir os eventos do dia-a-dia do nosso lar, pode ser que partamos desse pressuposto irrefletido, e que olhemos para o nosso marido ou esposa e para os nossos filhos assim, como grandes atrapalhadores da minha “vida pessoal”, como impedimentos para que eu tenha “um tempo para mim”, “um tempo a sós”, ou “um momento em que eu possa ser eu mesmo”. E, assim, vamos tentando viver duas vidas, escrever duas biografias, tão distantes uma da outra quanto a Grécia dista de Roma — e que têm o único inconveniente de serem biografias paralelas da mesma pessoa.

É uma ideia ardilosa, que assume as feições de felicidade, mas que, como um vírus de computador escondido, mina a nossa busca pela felicidade e gera apenas mal-estar, frustração, sofrimento

Nós assumimos, como meta pessoal e propósito de Ano-Novo, que precisamos melhorar, cuidar de nossos defeitos e remoldar nossas atitudes para sermos um marido melhor, uma esposa melhor, um pai e uma mãe melhor; mas que peso, que enfado! Dentro de nós, uma voz continua dizendo: “Não fossem os atravancos da vida familiar — os compromissos com os filhos, as dificuldades que eles geram, ou as responsabilidades para com o casamento, todas as exigências desse relacionamento — eu poderia me encontrar muito mais com meus amigos, e ter mais momentos descontraídos e alegres, ou mesmo ter mais amigos; ou então trabalhar mais, de maneira mais focada, produtiva, enfim, me dedicar muito mais ao trabalho de modo a ser promovido, a ter mais sucesso profissional, uma grande carreira; eu teria mais saúde, porque dormiria mais, comeria melhor, nas horas certas, e poderia fazer academia mais vezes; eu teria, inclusive, mais dinheiro, porque dividir tudo com minha esposa ou meu marido acaba fazendo com que as coisas não sejam geridas do meu modo; eu, sozinho, pouparia mais...”. E, quando não estamos fazendo nada disso, algo nos puxa, algo nos faz querer, o mais rápido possível, fugir das nossas obrigações. Os homens saem o mais cedo que podem e voltam o mais tarde que conseguem, e tentam deslizar, ziguezaguear pelas tarefas domésticas. E as mulheres, às vezes impossibilitadas de fugir dessas ocupações, pelo laço com que a própria natureza as ligou aos filhos, se irritam, porque não podem fugir como eles, mas, no fundo, se pudessem, estariam fazendo a mesma coisa.

Em suma, alguma coisa nos fez pensar, nos fez crer que deveríamos nos casar e ter filhos, e nos levou a constituir essa família. Talvez uma idéia romântica da vida a dois, ou um medo de ficar só, ou um desejo um pouco egoísta de “ser pai” ou “mãe”, não importa... Agora, o que vejo é que tudo isso era uma grande furada, e que, não fossem essas responsabilidades, as amarras que me ligam a essas demandas, a essas pessoas diferentes e às vezes difíceis, enfim, não fosse essa pesada âncora amarrada ao meu corpo, eu certamente conseguiria ser mais feliz.

Bem, se comecei introduzindo a ideia aos poucos, com cautela para não assustar, agora já posso dizer de uma vez a verdade nua e crua: se é assim que você está sentindo com relação aos seus filhos e ao seu casamento, se é assim que, mesmo sem querer, você está enxergando sua família, é porque ainda não compreendeu do que se trata. Essas duas vidas paralelas vão continuar correndo assim, sem jamais se encontrarem, uma drenando a energia da outra, e nenhuma das duas vai chegar à felicidade. Como é impossível termos forças para sermos dois, acabamos, assim, não sendo nenhum — acabamos não sendo ninguém (e, como ouvi uma senhora infeliz dizer certa vez, apenas “alinhavei a minha vida”). Não só a nossa vida e a nossa biografia é uma só, como devemos, além disso, lutar contra as forças que a querem desmembrar, lutar por sua unidade, pela unidade da nossa personalidade. E a maternidade e a paternidade, logo após o próprio matrimônio, são caminhos excelentes para essa tarefa, e vivê-los de maneira cada vez mais integral, total e madura é o que nos fará realmente felizes.

Ora, é claro que a vida também é feita de amizades: também é preciso desempenhar esse papel e passarmos tempo com nossos amigos, tempo este que muitas vezes é, sim, descontraído e prazeroso. E é preciso, naturalmente, cuidar de si mesmo e do próprio corpo, de modo a ter saúde, a se exercitar, se alimentar, descansar, e também no sentido — especial para as mulheres — de cuidar dos cabelos, e das unhas, e ir ao salão. Também é verdade que devemos nos empenhar e nos dedicar ao trabalho e, dentro do contexto próprio a cada um, melhorar, crescer e progredir. É igualmente necessário termos um momento a sós; aliás, é altamente recomendável.

Como é impossível termos forças para sermos dois, acabamos, assim, não sendo nenhum — acabamos não sendo ninguém

Mas reparem na imensa, na abissal diferença que existe entre viver todos esses expedientes para si mesmo, pensando no próprio deleite, na própria riqueza e no próprio conforto, no gozo de si mesmo, e viver tudo isso com vistas a um projeto maior, em fazer tudo isso como que atravessado por um sentido que ultrapassa as coisas mesmas, que as transcende ao passar pelos outros. A aparência externa dessa vida — ou dessas duas vidas paralelas, se me permitirem de novo — será muito parecida, quase idêntica; mas a diferença na intenção fará delas duas biografias completamente distintas. Uma será voltada para o egoísmo, para um “si mesmo” que é pequeno, e que quer continuar sendo pequeno; a outra, voltada para os outros, como constante doação e serviço, será composta de momentos engrandecedores, que fazem com que nos transformemos, tornando-nos mais “nós mesmos” do que éramos então. Os momentos com os amigos serão uma troca, uma ajuda mútua e uma comunhão de valores; o cuidado com o corpo e com a beleza, uma disposição do corpo para servir e um carinho para com os que nos olham; o trabalho, todo pensado para os outros, como provisão, e como ocasião de exercitar as forças interiores; e nossos momentos a sós, um silêncio em que nos encomendamos a Deus, fazemos nossas preces e meditamos, e renovamos nossa gratidão e nossa fé.

A verdade é que a família, e nossa doação em seu seio, é um grande mistério, capaz de integrar as muitas vidas que estejamos vivendo e dar sentido a tudo o mais que fazemos, dentro e fora de casa. E aquela idéia ladina e traiçoeira, de que a família atrapalha a nossa vida e nos impede de sermos nós mesmos, entra em nós por essas duas portas, do que seja “vida” e do que seja “nós mesmos”, incutindo em nós um medo, um ressentimento prévio a nos doarmos e entregarmos — em suma, um “medo de morrer”, pois entregar-se é, de fato, um simbólico morrer para si mesmo, e aí reside o fundo de verdade de tantas piadas sobre o casamento, em que se deseja pêsames aos noivos: trata-se, de fato, da morte do egoísmo. E corremos aflitos, em busca de uma certa emancipação, de uma tal liberdade, e de um emprego, uma carreira, de dinheiro.

Pode ter se tornado inconcebível na imaginação de muitas mulheres, por exemplo, ficar em casa, e deixar que o marido tome conta do provimento dos bens e das finanças. E pode estar enraizado na imaginação do próprio homem, igualmente, um receio de oferecer isso à sua esposa, por pensar que o melhor para ela é mesmo ser livre dele, ou por ter medo de assumir essa responsabilidade sozinho. E os dois, que pretendiam se unir, acabam vivendo — outra vez — duas vidas paralelas, às vezes até com as coisas e as contas divididas: são apenas dois membros do mercado de trabalho que dividem, razoavelmente, algum espaço, e que entregam o filho para que seja formado na escola, tão-somente, mais um novo membro desse mesmo mercado.

Ora, o nosso trabalho, por melhor que seja, terá sempre um valor relativo, e a família, diferente do trabalho, terá sempre um valor em si mesma. Pois as pessoas, e portanto os bebês e as crianças, são um valor absoluto, maior do que o de qualquer emprego, e dizia mais o Nelson Rodrigues: qualquer indivíduo é mais importante do que toda a Via Láctea. E por isso o trabalho da mãe educadora, como brincava Chesterton, é o emprego verdadeiramente integral, pois é superior a qualquer outro trabalho que se possa imaginar, assim como o trabalho do homem, orientado ao bem da família, ganha um encanto divino.

Por isso a família é, como um ambiente de doação incondicional de si, de união e de ajuda mútua, um caminho para a verdadeira felicidade. O matrimônio, visto como um selamento das vidas, um sacramento, e a família, vista como uma vocação, tornam-se o ambiente em que seremos cada vez mais “nós mesmos”, pelo misterioso processo de sermos menos “nós mesmos”. É que esse “si mesmo”, egoísta e estagnado, vai mesmo morrer, mas como o grão de trigo da parábola, para que nasça um “si mesmo” mais profundo e mais verdadeiro. Não será uma vida somente para si, como a do Narciso do mito que, ao voltar-se para si mesmo, se afoga e se perde; será uma vida para o outro, que, se perdendo, renasce, cheia de luz.

Em vez de corrermos os dias frustrados, acabrunhados com a impossibilidade de sustentar duas vidas paralelas, uma que fosse só para mim, serena e aprazível, e uma outra, que atrapalha a primeira, que me contraria e que me suga as energias, aproveitemos a divina oportunidade de uni-las, de fazê-las concorrer e se cruzar, e de atravessarmos, no centro dessa cruz, uma morte que conduz à vida.

Conteúdo editado por:Jônatas Dias Lima
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