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Samia Marsili

Samia Marsili

Maternidade

Vocação de mãe

(Foto: Hollie Santos/Unsplash )

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Quando vemos uma pessoa que faz seu trabalho de um modo diferente, como se tivesse um talento especial; ou que se dedica sobremaneira, que supera suas dificuldades — tanto as comuns como as excepcionais — sem se queixar; que fala apaixonadamente de suas ocupações, cujos olhos brilham quando alguém toca no assunto, dessa pessoa nós dizemos, sem dúvida, que “tem vocação”. Em outros contextos, quando alguém vai escolher o seu estado de vida, quer dizer, se vai casar-se ou manter-se solteiro, ou se vai consagrar sua vida em algum outro modo de serviço, dizemos que essa pessoa está discernindo a sua vocação. Ainda mais amplamente, no ambiente religioso, dizemos que todo ser humano tem uma vocação: é a vocação universal à santidade (que, trocando em miúdos, é a vocação de todo mundo a ser verdadeiramente feliz). Que quer isto dizer?

“O que você quer ser quando crescer?” — é uma pergunta que os adultos gostam bastante de fazer às crianças, talvez para permitir que elas lhes revelem, em poucas palavras, o modo como veem o mundo daí, desde sua pequena estatura. Ou talvez seja apenas como gracejo, pensando em como as coisas mudam quando a gente cresce... Mas é curioso. É uma das poucas perguntas dos mais velhos que as crianças entendem desde logo, e para a qual costumam ter uma resposta bem pronta. Além do próprio pai e da própria mãe, há muitos personagens na família e nos arredores, na TV e nos livros, que a criança observa e absorve como modelos possíveis, para imitar quando ela for grande. É um papel a desempenhar, um “o que se pode ser”. Seria isto uma vocação?

A palavra vocação tem origem na língua latina, na palavra vocatio. Significa o ato de chamar, um convite ou um chamamento. Deriva do verbo vocare, “chamar”. Trata-se, portanto, de algo que se ouve, a que se deve dar atenção; algo que é dito por um outro, para que nós nos dirijamos a um outro “lugar”, onde ainda não estamos. E, sem dúvida, há um chamado para o estado de vida que devemos assumir, e pode haver vocação também para o trabalho ou para o papel social que vamos desempenhar. Mas essas vocações “grandes” são feitas de outras, “pequenas”. A verdade é que cada mínimo instante da vida nos exige uma resposta: em cada um deles está um chamamento de Deus, uma pequena vocação. Sim, há na vida os chamados decisivos e de longo alcance, mas os de curto prazo não devem ser desprezados, pois são as etapas do percurso que nos leva ao termo.

Num extremo, temos a vocação universal de todos os seres humanos à felicidade; no outro, a vocação de cada instante, os invisíveis atos de amor e esperança que nos mantêm na escuta do chamado. E, entre eles, dois ou três momentos cruciais de nossa vida? Acaso são, então, mais ou menos os mesmos para todos nós? Mas quem é capaz de dizer, a rigor, quais momentos são estes? É algo do qual teremos certeza, sentiremos esse chamado e esse momento como tal? Acredito que muita gente já tenha feito a si mesmo essas perguntas. E nós, mulheres, temos vocações diferentes das dos homens? Isso está inscrito em nossa natureza? Onde, em que ponto, de que modo se dá essa diferença? A que somos chamadas, nós, mulheres? Estas perguntas, talvez mais que as anteriores, exigem de nós um mergulho profundo: um olhar honesto, íntimo e maduro sobre aquilo que fomos feitas para ser. Ao contrário do que nos dizem as vozes do mundo, essa resposta não está nas expectativas desse mesmo mundo, nem tampouco nos padrões impostos pelas redes sociais, mas repousa no silêncio da alma que reflete, no íntimo da consciência que escuta.

Quando medito sobre esses temas, costumo me perguntar o que meu marido e meus filhos esperam de mim, e o que a sociedade espera de mim. Como posso ser a mulher que o Criador pensou que eu poderia ser? Essas indagações não me chegam como pressões, mas como convites a viver com sentido. Pensar na vocação feminina é permitir-se habitar o feminino com mais profundidade e responsabilidade. E, nesse chamado, é impossível não tocar na maternidade — não apenas como um estado biológico, mas como uma postura existencial.

Se nossa consciência não estiver abafada por discursos capciosos, leituras distorcidas ou hábitos malformados, perceberemos que a mulher possui uma força silenciosa diante da dor. Uma coragem discreta, mas inegável. O parto é, por si, um ícone dessa verdade. Ainda que nos assuste, nós o enfrentamos com uma determinação quase instintiva, porque vislumbramos, por trás da dor, um bem maior. Não fugimos do sofrimento quando ele tem sentido: é a dor de uma morte, para o nascimento de um filho.

E é esse mesmo olhar que nos acompanha ao longo de toda a maternidade. Olhar que nutre, protege, antecipa, intui. A relação da mulher com o filho que ela gerou é única. Ainda que o processo biológico da gestação se desenvolva, em grande parte, de maneira passiva — o bebê cresce por si só —, é uma passividade ativa, profundamente engajada. A gestação transforma a mulher, não apenas fisicamente, mas existencialmente. Ela passa a moldar seus hábitos, sua alimentação, sua rotina, seus pensamentos... tudo em função daquele ser pequeno e silencioso que carrega dentro de si — e esse movimento de doação, que começa no corpo, prolonga-se na vida. Da amamentação às noites em claro, da educação cotidiana às preocupações adultas que um filho desperta, a mulher se doa inteira. Mantém o filho na existência. Porque é isso que uma mãe faz: sustenta uma vida com a própria vida.

A maternidade, assim, torna-se não apenas o berço da criança, mas o cadinho da civilização. Sem o olhar materno, sem o cuidado que nutre e edifica, a humanidade se desfaz. É por isso que a ausência da mãe — ausência de tipo emocional, afetivo ou físico — pesa com uma gravidade ímpar, incomparável com qualquer outra. É por isso que a presença da mãe forma não apenas filhos, mas também pais. Um homem aprende a ser pai a partir da presença materna, que lhe apresenta aquele ser pequeno e frágil, que exige cuidado e entrega.

Sendo assim, gerar a vida é apenas o começo: a verdadeira missão da mulher está em manter essa vida no mundo — e isso significa proteger, educar, guiar. A própria humanidade depende desse olhar. É no ventre da mulher que o mundo recomeça, e é nos braços da mulher que a criança aprende a realidade. Essa tarefa, tão elementar, tem sido questionada por discursos que prometem liberdade, enquanto negam o dom. Mas uma liberdade que se define como fuga da vocação, como rejeição ao peso da entrega, não passa de uma caricatura, e só conduz a uma felicidade igualmente falsificada. É preciso dizer com clareza: somos livres, sim. E, justamente por isso, podemos escolher viver o nosso chamado mais profundo. Sim, temos direito à profissão, ao trabalho, aos projetos pessoais. Mas isso não nos isenta, nunca, da nossa missão mais essencial: cuidar da célula básica da sociedade, da família. Se negligenciamos essa tarefa, a sociedade inteira padece; a falta das mães se reflete como sofrimento para todos — nas ruas, no crime, nos distúrbios, na confusão —, e já estamos vendo os sintomas dessa omissão.

Vivemos dias em que a mulher é ensinada a suspeitar de sua própria vocação. Somos induzidas a acreditar que aquela voz que nos chama, desde dentro, é ilusória e mentirosa, foi implantada ali por quem nos quer mal; mas que as vozes que nos vêm de fora, e que nos mandam, tantas vezes, negar o que nosso próprio ventre nos faz sentir — essas, sim, são as verdadeiras, e que nos querem libertar. O cuidado virou sinônimo de opressão. A entrega foi reduzida a servidão. Mas essa leitura cínica do feminino é um veneno paralisante. A mulher tem o poder de dar o tom da vida humana. Quando ela educa um filho com presença, amor e doação, imprime nele um selo de valor que o acompanhará para sempre. A menina que teve uma boa mãe será uma mulher firme. O menino que foi educado por uma mulher virtuosa terá mais chances de se tornar um homem inteiro. Porque ali, no seio familiar, houve quem mostrasse, com a vida, que amar vale a pena. Que viver é mais do que reivindicar direitos: é doar-se.

Mesmo aquelas que não puderam ser mães biológicas, ou que renunciaram à maternidade por um outro chamado sobrenatural, estão igualmente convocadas a viver esse espírito maternal. Quero dizer: todas essas mulheres são chamadas pela mesma vocação maternal, só que num sentido, diríamos, sublimado, espiritualizado. O feminino é sempre fecundo, mesmo quando não gera filhos de carne, e toda mulher é, de algum modo, uma mãe. Ela acolhe, educa, restaura. A mulher, em sua vocação mais profunda, é um espaço de regeneração para o mundo.

Pensemos no exemplo de Maria, a mãe de Jesus. Independentemente da fé que se professe, a figura da Virgem nos mostra uma verdade luminosa: foi pelo seu “sim” que a humanidade foi salva. Maria gerou em seu ventre o próprio Deus feito homem. E, ao fazê-lo, gerou também uma nova esperança para toda a humanidade. Seu “sim” é, por excelência, o paradigma do chamado feminino: fazer-se dom. A mulher que se entende como chamada a dar vida — vida física, moral, espiritual — transforma o mundo com sua presença. O que ela toca, floresce. O que ela ama, permanece. E o que ela sofre, redime.

Na mais profunda simbologia da fé cristã, a Igreja é apresentada como esposa. Esposa de Cristo, corpo místico que gera vida por meio dos sacramentos. E o que são esses sacramentos, senão gestos maternais que acolhem, curam, alimentam, fortalecem? O Batismo dá a vida espiritual, a Confissão restaura essa vida quando perdida, e a Eucaristia a sustenta, alimentando-nos com o próprio doador da graça. A alma feminina do cristianismo se revela aqui: a Igreja, como mulher, é mãe da humanidade redimida.

É possível — e necessário — transportar essa imagem para a nossa realidade concreta. A vocação da mulher não está limitada à maternidade biológica. Ela é, essencialmente, um chamado a gerar e restaurar a vida onde quer que esteja. Cada mulher, ainda que sem filhos, ainda que celibatária, ainda que marcada por feridas e limites, é portadora dessa missão. No cuidado com os doentes, na atenção aos idosos, na educação dos órfãos, na escuta de quem esteja marginalizado — aí está a maternidade em sua forma mais luminosa. E, também, no ambiente profissional, onde a mulher, com o olhar atento e reconciliador, pode ser fonte de harmonia e sentido. Eu sinto vontade de dizer que este Dia das Mães, que hoje comemoramos, é o verdadeiro “Dia da Mulher”, e que todas as mulheres que ouvem a sua vocação enquanto tais são dignas de festa nesta data.

Negar essa vocação é adoecer o espírito. Uma mulher que defende o aborto, por exemplo, não está apenas em desacordo com um princípio religioso ou moral: está ferida em sua própria identidade, distanciada de sua essência. O problema não é político, nem privado; é antropológico. É uma confusão profunda sobre o valor da vida e o papel feminino na sua defesa. Ao abandonar sua vocação de guardiã do humano, a mulher deixa de comunicar ao mundo o valor que ele tem. E essa dignidade da mulher, embora inata, precisa ser reconhecida, alimentada, sustentada pelos homens. Amar uma mulher — verdadeira e profundamente — é ajudá-la a ser quem ela é. E aqui, mais uma vez, a biologia revela uma verdade maior: é o homem quem inicia o ato da geração, quem planta a semente. O corpo da mulher a acolhe, a transforma, a carrega. O gesto masculino é dom; o feminino, receptividade ativa, fecunda. Há beleza e verdade nesse dinamismo. Não há hierarquia; há comunhão.

Mas o que dizer das mulheres que não têm um marido presente, ou cujo companheiro não as sustenta como deveria? Muitas vivem esse vazio. Não são poucas aquelas que, mesmo rodeadas por uma família, sentem-se sós na tarefa de amar. E é por isso que a mulher é chamada à piedade. Piedade, não como sentimentalismo, mas como raiz de fortaleza. Alimentar-se do alto, quando a terra não provê. Receber de Deus o amor que o mundo, muitas vezes, não oferece. As mulheres são, em geral, mais piedosas — e isso não é sinal de fraqueza, mas de sabedoria. Elas sabem que, para continuar se doando, precisam estar abastecidas.

A vocação da mulher é, também, moral. Não no sentido de um moralismo, é claro, mas no de estrutura interior, que é o verdadeiro objeto da moral. A mulher sustenta os valores fundamentais de uma cultura. Quando ela se desintegra, a moralidade se desfigura. Quando ela se corrompe, o mundo começa a ruir. Por isso, o ataque à mulher não é apenas social: é espiritual. A ideologia que ridiculariza a pureza, que despreza a fidelidade, que zomba da maternidade como “atraso” mina as bases mesmas da civilização, que, por sua vez, significa a perpetuação dos valores espirituais que prezamos, cujo cultivo tem consequências concretas e eternas para as almas individuais, e não somente consequências culturais ou estéticas. A mulher precisa resgatar seu papel de guardiã do humano. Mesmo viúva, mesmo solteira, mesmo ferida — ela é chamada a acolher, proteger, gerar. A piedade torna possível essa entrega.

É verdade que o chamado à maternidade, no sentido mais pleno do termo, exige muito, muito mesmo, de nós. Exige o risco da doação. Toda mulher que concebe um filho corre o risco de ser deixada. Toda mãe já se viu, ao menos uma vez, sozinha diante do peso do mundo. Mas esse risco é próprio do amor verdadeiro. Amar é arriscar-se. É dar sem a certeza de receber. É confiar, mesmo sabendo que pode doer. A mulher é, em sua natureza mesma, aberta à eternidade. Tem facilidade em ver longe. A maternidade — biológica ou espiritual — ensina paciência, perseverança, capacidade de sacrifício. Ensina que o tempo é um aliado, não um inimigo. Enquanto o mundo grita por urgência, a mulher ensina esperança e o tempo justo do devido cuidado. É por isso que ela educa. É por isso que transforma. A civilização será salva, como dizia Chesterton, pelas mães que educam seus filhos com carinho e firmeza.

Assumir essa missão é construir uma força interior que não depende de aplausos. É forjar, no silêncio do cotidiano, a fundação de um mundo. Há quem pense que ser mãe, que viver a vocação feminina, é anular-se. Engano. É, na verdade, firmar-se; é construir uma personalidade robusta, que não se dobra à tempestade. E o mundo precisa de mulheres assim: mulheres que, mesmo entre lágrimas, sustentem-no com seus joelhos; que gerem vida e salvam almas com o simples fato de estarem ali, presentes.

E é isso vocação: saber-se chamada. Chamada a amar, a restaurar, a consolar, a formar, a interceder, a suportar. Chamada a ser uma ponte entre o Céu e a Terra, como a Virgem Mãe do Senhor. Chamada a transformar a dor em vida, o cansaço em esperança, o cotidiano em eternidade. Com delicadeza e coragem, com silêncio e firmeza, a mulher mantém o mundo de pé. Ela o faz com as mãos calejadas e o coração transbordante de amor. Ela o faz porque sabe que, ao doar-se, torna-se inteira. E o mundo, por mais cinzento que esteja, vai sempre se curvar diante de uma mulher que se entregou.

Feliz Dia das Mães!

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