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Quando as luzes se apagam o que te sobra?

Os gênios conseguem traduzir o pensamento de uma época em apenas um quadro, uma música, filme ou livro. É uma qualidade rara. Não é raro quando expressam o pensamento que ainda está por vir. Difícil, para nós mortais, é entender a tempo. É tirarmos do pedestal e refletirmos no momento que nos é dito. Talvez a incompreensão momentânea seja o que nos atrai nestes lampejos. Uma obra pode levar anos para ser entendida. Ou séculos. Nunca, porém, se esgotará ou se decifrará 100% do que está lá.

Há 400 anos, Caravaggio quebrava a cabeça do mecenato. O insolente italiano começou a usar imagens de pessoas comuns para ilustrar os quadros com motivos religiosos. Para ele, era necessário unir o que se via nas ruas com o que se pregava nas igrejas. Não bastava uma elite deter todo o entendimento religioso quando o povão estava mais preocupado em garantir o pão de cada dia. O clero não estava preparado e, por mais talentoso que o jovem fosse, não parecia cabível usar o corpo de uma prostituta morta para representar a morte de Maria. Caravaggio tinha a necessidade de fazer uma ligação do mundano com eventos bíblicos. Aquele mundo intocável de Deus precisaria chegar a todos.

Quase dois séculos mais tarde, Goya enfrentava a inquisição. Ele vivia numa Espanha tomada por guerras e mergulhada em uma religiosidade fundamentalista. Por mais que aceitasse encomendas, suas obras estavam cada vez mais contundentes. O artista começou a desrespeitar a aristocracia, que não dialogava com todos, entregando quadros que mostravam a decadência do sistema, o reinado absolutista de Fernando VII. No ápice de sua criatividade fez a séria que ficou conhecida como pinturas negras, culminando com Saturno devorando o filho. As pinceladas pastosas afastaram o tema da realidade. A guerra já não tinha mais a glória que esteve presente na história da arte. A visão de Goya era que os dois lados perdiam com a brutalidade. Não havia mais herois.

Na França burguesa da virada do século XX, Matisse estava descontente com o academicismo vigente. O real já não poderia mais ser o centro das atenções. Os artistas também tinham atingido status de celebridade. Preferiu redefinir tudo, colocou a obra acima do autor. Os “selvagens”, como os críticos definiram os fauvistas, estavam começando a acreditar no não dito. Na arte de expressão. O homem já não tinha mais todo o controle de suas faculdades. Era preciso se libertar para seguir em frente.

Pouco mais tarde, Picasso fez Guernica. Retrato entrecortado de um bombardeio nazista à cidade basca. As referências começavam a ruir com uma Europa divida e em guerra. Dois anos antes da Segunda Guerra Mundial, o espanhol mostrou quanto fragmentado ficava o mundo quando os ideais eram deturpados. A brutalidade de ser perder as referências. Daí vem a célebre frase do gênio. Quando questionado por oficiais nazistas se era ele o autor de Guernica teria respondido: “Não, vocês o fizeram”.

Este prólogo é para tentar explicar um filme que me ajudou a entender um dos maiores artistas dos nossos tempos.

O cordeiro

O Lutador, de Darren Aronofsky, conta a história de uma celebridade das lutas-marmeladas, aquele estilo de teatro que só os norte-americanos curtem. Randy “The Ram” (o cordeiro) Robinson vive tentando estender o passado conseguido na década de 80. Se mutila em tentativas vãs de não precisar reconhecer a derrota. Cassidy é uma stripper que sente o peso dos anos quando começa a ser recusada pelos clientes. O filme não é sobre ascensão e queda dos personagens. É sobre como as pessoas se afastam do que realmente é importante quando são atraídas por coisas mais fáceis. A tal perda de foco.

Nos anos 80 o mundo vivia uma euforia. Os yuppies eram a representação do sucesso. Jovens poderiam alcançar seus milhões com dedicação exclusiva ao trabalho. Nas artes havia a predominância da felicidade a qualquer preço. Era a década da cocaína. O hard rock dominava as paradas de sucesso. Cabelos de poodle, calças de academia, maquiagem excessiva e lenços coloridos adornavam os músicos de sucesso.

Randy: P****, já não se faz música como antigamente.
Cassidy: Anos 80, a melhor época.
R: Guns’N Roses detonam.
C: Mötley Crüe, Def Leppard…
R:Mas aquele babaca do Cobain tinha que vir e estragar tudo.
C: Como se houvesse problema em querer se divertir.
R: Vou te falar. Detesto os anos 90.
C: Os anos 90 foram uma m****.

Esta é provavelmente a maior verdade que já foi escrita sobre o Nirvana. Kurt Cobain estragou a festa das aparências. Criado longe da família, sentia que tudo aquilo era irreal. Sentia falta do contato. Do outro. Não era possível acreditar em uma felicidade tão fugaz.

Aronofsky fez em O Lutador uma crítica tardia (existe um tempo para se fazer críticas?) da obra de Cobain. Mostra didaticamente como Randy precisa se despir (metaforicamente) para conseguir reconquistar a filha. Como ele decide refazer a relação? Dando um casaco de lã de presente. O cordeiro precisa estar nu para poder abraçar o próximo. Tem-se que perder a pose.

Sempre imaginei que Nevermind era um grito adolescente. O melhor grito que uma criança poderia dar quando notava que pelos cresciam pelo seu corpo. E tudo que sempre li partia dessa premissa. Era “gutural” e “urgente”. Mas não havia notado até então que era muito mais que isso. Era o enterro da visão parca de sucesso a qualquer preço. Era o fim de que poderia se viver alegremente e se evitar as dores que os outros podem te provocar.

Todos os textos biográficos apontam Cobain como um cara frágil. Dependente de atenção. Suas músicas são basicamente isso. Ele quer saber o que há por traz da purpurina. E por que precisamos de tantas ferramentas para dar a mão para o outro. Ele pede para que o estuprem. Que penetrem sua alma. “Venha como você estiver. Venha no seu tempo. Venha afundado na lama”. Não importa o que você conquistou. Seu sucesso ou dinheiro. Se não está próximo, não serve para nada.

Kurt Cobain chorou por ser o primeiro a expressar que as coisas estavam erradas. Talvez seja esta a dor que citava em todas as entrevistas. A dor que ele sentia nas entranhas e que nenhum remédio conseguia curar. Nem heroína. Ele chorou quando se viu no meio do que mais combateu. Não era a questão do sucesso apenas. Como dar todo o amor à filha quando se é um astro? Como conviver com pessoas que sempre estiveram ao seu lado e nunca te entenderam? Como ser mais claro? “O que mais eu poderia dizer? O que mais eu deveria ser? O que mais eu deveria escrever?”, cantou em All Apologies.

Aronofsky me fez perceber que Cobain estava absolutamente certo. Não há como negar a individualização dos últimos anos. Não há como negar que a dor da qual falava Cobain foi esquecida. Não há como negar que hoje nos afastamos todos os dias do contato com o outro. Acabamos criando holofotes mais potentes. E esquecemos da mais conhecida frase do gênio: “Quando as luzes estão apagadas é menos perigoso”.

Divulgação

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