Estava lá o Luiz Henrique Mandetta prestando seu depoimento na CPI da Covid, o senador Eduardo Girão fazendo suas perguntas e, de repente não mais que de repente, aparece a mãe de todos os mitos da tese do conflito entre ciência e fé.
Girão queria saber do ex-ministro o que ele faria se, mais adiante, ficasse comprovado que o tal do “tratamento precoce” funciona mesmo. Mandetta deu umas voltas e o senador, tendo direito a uma pergunta final, lembrou que, quando apareceu a gripe H1N1, o Tamiflu foi receitado ainda antes que sua eficácia estivesse totalmente comprovada, e perguntou se a prescrição daquele medicamento teria sido um crime. O ex-ministro, então, fez um discurso sobre como funciona a ciência, dizendo que “não existe verdade absoluta, você vai lá e submete a sua verdade, e submete aos pares. Se não fosse assim o Iluminismo não teria existido, a era da ciência, estaríamos nas trevas, estaríamos ainda com crendices e bruxices”; acrescentou que “muitas vezes a gente acredita em uma coisa e depois a gente fala ‘puxa, o que eu acreditava na verdade não era’”, e emendou: “Quando a gente fala ‘o cientista tem de decidir dessa maneira’... a Igreja Católica já fez loucuras, até com Galileu Galilei, fez ele desfazer que a Terra era o centro do universo”. Está tudo a partir das 2h20min do vídeo.
Sobre o Iluminismo, para começo de conversa, o método científico já tinha aparecido antes dos filósofos iluministas. A “era da ciência” já corria a pleno vapor. O que o Iluminismo fez, graças aos revolucionários franceses por ele inspirados, foi pegar a ciência, a “razão”, colocá-la num pedestal bem acima do seu verdadeiro papel, e transformá-la, quem diria, em uma nova religião, em cujo nome aliás foram cometidas muitas barbaridades, como lembra o João Pereira Coutinho em sua última coluna. Mas vamos ao Galileu.
Descontemos o lapso, já que o que Galileu “desfez” foi o Sol no centro, e não a Terra, e vamos pressupor que o ex-ministro estava fazendo uma crítica a interferências externas na ciência. Afinal, o movimento dos astros e a eficácia de remédios são temas estritamente científicos nos quais nem o poder político, nem o poder religioso teriam nada a dizer, menos ainda a impor. Imagino que Mandetta estivesse querendo dizer algo do tipo “como a Igreja quis impor uma convicção sobre o movimento dos astros pra cima de Galileu, o presidente quis impor uma convicção sobre a eficácia do tratamento precoce pra cima de mim, e isso está errado porque essas definições são assunto para os cientistas, deixemos que eles trabalhem”.
Mesmo que Mandetta estivesse fazendo uma crítica a interferências externas na ciência, o exemplo que ele escolheu estava longe de ser dos melhores
Se é isso, e parece que foi mesmo, vá lá, mas a escolha foi bastante peculiar. Afinal, há uns detalhezinhos do caso do Galileu que não fazem dele o melhor dos exemplos. Primeiro, o heliocentrismo não era o consenso científico da época, e ainda por cima havia outros sistemas astronômicos sendo propostos, como o de Tycho Brahe. Segundo, que o chefe da Inquisição, o cardeal Roberto Belarmino, já tinha deixado claro na sua carta a Antonio Foscarini que, se houvesse prova irrefutável de que os astros se moviam como Galileu propunha, então sim, era preciso abraçar a evidência e reinterpretar a Escritura. Só que Belarmino não acreditava que Galileu tivesse essa prova, o que nos leva ao terceiro: Galileu realmente não tinha a prova – e estava errado ao considerar as marés como a evidência do movimento da Terra. Podem conferir tanto no Galileu – pelo copernicanismo e pela Igreja quanto no essencial Terra plana, Galileu na prisão e outros mitos sobre ciência e religião.
Então, houve uma interferência do poder religioso na atividade científica? Houve, e foi um erro sabendo o que sabemos hoje e avaliando com a mentalidade atual. Mas, cá entre nós, se era a Igreja que estava exigindo a comprovação acima de qualquer suspeita, com duplo cego randomizado, publicação em revistas A1 na lista da Capes etc. etc., antes de abraçar o heliocentrismo, tenho a impressão de que, se vivesse no começo do século 17, Mandetta seria muito mais #TeamBelarmino que #TeamGalileu, não?
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