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O papa Francisco faz um momento de oração diante do Sudário de Turim, durante visita em 2015.
O papa Francisco faz um momento de oração diante do Sudário de Turim, durante visita em 2015.| Foto: Alessandro di Marco/EFE/EPA

Na segunda metade de abril, um novo estudo sobre o Sudário de Turim causou um bom barulho nos ambientes católicos. Uma semana depois de sua publicação na revista acadêmica Heritage, o National Catholic Register publicou reportagem do vaticanista Edward Pentin; no Brasil, a repercussão veio da ACI Digital e do Aleteia (na versão padrão e na premium). Resumindo o trabalho da equipe liderada pelo cientista italiano Liberato de Caro, do Instituto de Cristalografia do Conselho Nacional de Pesquisa, em Bari, uma técnica de datação baseada no uso de raios-X (diferente, portanto, do célebre carbono-14 usado no Sudário em 1988) foi aplicada em um fragmento do tecido, e concluiu que ele data da época de Cristo.

Na entrevista a Pentin, De Caro explica que as fibras de tecido vão se “quebrando” com o tempo, à medida que são submetidas aos elementos – a comparação que o cientista faz é com um punhado de espaguete –, e essa nova técnica de datação, criada três anos atrás e apelidada WAXS (sigla em inglês de “Wide Angle X-ray Scattering”), se baseia na medição do comprimento atual das fibras, o que permitiria estimar a sua idade. Antes do Sudário, a equipe de De Caro havia realizado testes em vários outros fragmentos de linho.

Mas vamos devagar com o andor. O Centro Internacional de Estudos do Sudário (Ciss, na sigla em italiano) está para divulgar um breve comentário, ao qual o Tubo de Ensaio teve acesso em primeira mão, no qual aponta algumas limitações do estudo recentemente publicado. Afirma o texto:

“O método desenvolvido por De Caro et. al depende da ocorrência de modificações nas amostras de tecido; é provável que o ritmo dessas modificações seja fortemente influenciado por condições ambientais, como temperatura, umidade, pressão de oxigênio, presença de possíveis catalisadores como ácidos, bases ou metais, condições de armazenamento e manuseio e, finalmente, a presença e a atividade de micro-organismos. Assim, parece improvável que esse método possa oferecer uma datação absoluta tão confiável quanto aquela baseada no decaimento radioativo de carbono, que, como se sabe, não é afetado por nenhuma condição ambiental.”

Não podemos ser menos criteriosos com os estudos que atiçam nosso viés de confirmação; também eles precisam passar pelo mesmo crivo com que analisamos, por exemplo, o teste de carbono-14

Isso não quer dizer, no entanto, que a técnica WAXS seja inútil:

“Em geral, o método WAXS parece adequado para a datação de amostras que não tenham experimentado flutuações de temperatura e umidade, e tenham sido armazenadas sob condições razoavelmente estáveis, como em tumbas subterrâneas vedadas.”

O problema, aqui, tem mais a ver com o objeto que com a técnica:

“Certamente o Sudário não é esse tipo de artefato, pois, além de chamas e água, ele esteve sujeito a condições desconhecidas de armazenamento e manuseio ao longo dos séculos.”

De fato, um evento central na história conhecida do Sudário é o incêndio na capela que o abrigava em Chambéry, na França, em 1532. A nota do Ciss mostra como o pano pode ter sido irremediavelmente afetado pelo desastre e pelos “primeiros socorros” a que foi submetido:

“Uma questão central é o efeito do incêndio sofrido pelo Sudário em 1532 na degradação da celulose: uma degradação acelerada efetivamente aumentaria a idade aparente do tecido. De Caro e sua equipe tratam deste tema mas sua discussão, embora bastante clara, é provavelmente simplista. Certamente, é necessária uma quantidade significativa de novos trabalhos experimentais para verificar se submeter um tecido a altas temperaturas pode ou não aumentar a degradação das fibras de celulose. Além disso, as considerações de De Caro e sua equipe sobre a baixa umidade presente no tecido durante a queima do recipiente onde estava guardado são improváveis. Imediatamente depois que o Sudário foi retirado, a uma temperatura de 200 graus Celsius, com gotas de prata incandescente derretida perfurando o pano, jogou-se água no tecido para controlar as chamas. A umidade do pano molhado é de 100% e sua temperatura permaneceu alta, pois o linho é um tecido que esquenta lentamente, e esfria de forma igualmente lenta. Como resultado, as alegações de ‘baixa umidade’ de De Caro não se sustentam.”

À esquerda, a Sainte-Chapelle de Chambéry, onde o Sudário estava guardado no incêndio de 1532. (Foto: Florian Pépellin/Wikimedia Commons)
À esquerda, a Sainte-Chapelle de Chambéry, onde o Sudário estava guardado no incêndio de 1532. (Foto: Florian Pépellin/Wikimedia Commons)

Atenção aqui: o Ciss não está dizendo que o Sudário não é da época de Cristo, mas apenas que este estudo em específico ainda não permite tirar essa conclusão de forma incontestável. No fim, a sugestão do órgão coincide, em termos, com a do cientista italiano em sua entrevista: precisamos de mais testes. O Ciss sugere, em primeiro lugar, seguir trabalhando com o WAXS para determinar seu grau de precisão, e que circunstâncias podem afetá-la. Caso a técnica se mostre realmente eficiente, então seria possível avaliar pedaços maiores do Sudário (uma vantagem do WAXS sobre o carbono-14 é que aquele não destrói a amostra).

Entendo perfeitamente o entusiasmo de muitos católicos diante da divulgação do estudo de De Caro. Quem acredita que o Sudário é realmente o pano que envolveu o corpo de Cristo tende a deixar o desconfiômetro desligado quando surge algo que parece confirmar as nossas convicções (que fique claro: eu também creio que o Sudário de Turim é aquele pano descrito nos evangelhos de São Mateus e São João). Mas não podemos ser menos criteriosos com os estudos que atiçam nosso viés de confirmação; também eles precisam passar pelo mesmo crivo com que analisamos, por exemplo, o teste de carbono-14, cujos sérios problemas só foram descobertos porque os cientistas fizeram o que tinham de fazer: questionar e analisar os dados, em vez de aceitá-los cegamente.

Talvez, por melhores que sejam as técnicas de datação presentes e futuras, o Sudário seja mesmo um objeto “imprestável” para esse tipo de análise, devido à sua história conturbada – e vejam que só estamos tratando dos últimos sete séculos, sabe Deus o que esse pano sofreu nos outros 13! O pano foi levado de um lugar para outro, exposto, guardado, manipulado, passou por dois incêndios (houve outro em 1997, já em Turim), foi perfurado, encharcado, remendado, enfim, difícil pensar em algum tecido mais “contaminado” que este. Não é por isso, claro, que deixaremos de estudá-lo – suponho que é justamente por representar um desafio ainda maior que tantos cientistas sejam fascinados pelo Sudário –, mas toda descoberta precisa ser lida cum grano salis à luz de tudo isso.

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