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Em ‘STF: Como Chegamos Até Aqui?’, Duda Teixeira resgata os princípios fundadores da Corte, sua trajetória desviante e seu caráter elitista.
Em ‘STF: Como Chegamos Até Aqui?’, Duda Teixeira resgata os princípios fundadores da Corte, sua trajetória desviante e seu caráter elitista.| Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo

Autor, entre outros livros, do ‘Guia Politicamente Incorreto da América Latina’ (com Leandro Narloch), o jornalista Duda Teixeira está de volta ao mercado editorial com ‘STF: Como Chegamos Até Aqui?’.

Lançada pela editora Avis Rara, a obra resgata os princípios fundadores do Supremo Tribunal Federal, sua trajetória desviante ao longo dos anos e seu caráter altamente elitista.

O trecho a seguir é a narrativa de dois dias seguidos na Corte — uma sucessão de formalidades injustificadas, discursos entediantes e nenhuma decisão realmente conclusiva.

Era quarta, 31 de maio de 2023. Policiais armados e com coletes à prova de balas da Polícia Judicial se posicionavam no entorno do prédio com vidros do Supremo Tribunal Federal, que fica de frente para a Praça dos Três Poderes, com vista para o Palácio do Planalto e para o Congresso.

À frente, fica a estátua 'A Justiça', de Alfredo Ceschiatti. Com 3,30 metros de altura, a obra mostra uma mulher com os olhos vendados, representando a imparcialidade da Justiça.

Um gradil de metal, colocado um mês após os protestos de 2013, separa o prédio e a estátua do restante da praça desértica. Só há movimento em uma das laterais, onde cerca de 30 índios cantam e dançam.

Perto da uma hora da tarde, dois ônibus estacionam em um ponto coberto. Deles, descem estudantes do colégio Miguel de Cervantes, de São Paulo, cujas mensalidades do ensino médio são em torno de R$ 7 mil.

Todos estão impecavelmente trajados — meninos de terno, gravata e sapato social, meninas de terninho ou vestido acompanhado de blazer ou casaco, como mandam as regras do tribunal. Eles são obedientes aos seus professores e permanecem próximos uns dos outros.

Na rampa de mármore que leva para a porta principal do Supremo, forma-se uma longa fila de pessoas para passar pelo raio-X, já dentro do prédio.

Nela, há curiosos, estudantes de direito, advogados, os alunos paulistanos e, por fim, os índios.

À esquerda de quem entra pela porta, há um quadro do pintor japonês Masanori Uragami, que mostra um bandeirante preso ao solo com garras.

Atrás, índios atados são conduzidos, fazendo trabalho pesado. Ao lado, uma mulher indígena amamenta uma criança branca.

O folder do STF distribuído aos turistas afirma que o propósito da obra é “traçar um paralelo entre as bandeiras de Fernão Dias Paes Leme, os desbravadores da Transamazônica e a fundação de Brasília”.

A poucos passos do quadro, uma pequena exposição temporária mostra uma cadeira queimada, um vaso quebrado e várias fotos do plenário em ruínas.

Um texto na parede explica o seu propósito: “O dia 8 de janeiro de 2023 ficará gravado na memória da nação. Naquele domingo, o edifício-sede do Supremo Tribunal Federal foi depredado por centenas de pessoas. As vidraças da fachada foram arrancadas, o prédio invadido e os ambientes totalmente destruídos. Mobiliários, itens de trabalho e objetos do acervo artístico e cultural foram saqueados e vandalizados. O país inteiro testemunhou a desordem que feriu a camada protetora de civilidade. A resposta da Suprema Corte, contudo, iniciada no dia seguinte ao episódio, pode ser resumida em duas palavras: paz e confiança”.

A placa segue falando da necessidade de ressignificar o “sombrio episódio do 8 de janeiro” para que esse dia não caia no esquecimento.

E termina com uma justificativa: “Com a apresentação de símbolos da destruição, o projeto reafirma, de maneira definitiva, que a história da Suprema Corte é inquebrantável.”

Uma vez dentro do prédio, os visitantes se sentam nas duas áreas que ficam à esquerda e à direita da Corte.

O espaço do centro, que fica no topo da letra “U” formada pela mesa dos ministros, é reservado aos advogados que vão defender alguma causa.

Aqueles que irão fazer uma sustentação oral, falando em um púlpito de madeira, vestem uma beca preta comprida e se destacam dos demais.

Nas duas laterais, o povo se senta sob os olhares de seis seguranças com ponto eletrônico no ouvido.

Todos os que se acomodam são orientados a não falar no celular, não usar fone de ouvido, não tirar fotos ou vídeos durante a sessão e deixar o aparelho no mudo, para evitar qualquer barulho.

Em tom de camaradagem, um segurança conta que, uma vez, uma jovem foi chamada a deixar o espaço porque produzia muito ruído digitando no teclado do seu notebook.

Na parede de trás da Corte, há um painel de Athos Bulcão, feito em mármore bege-bahia.

No canto inferior direito de cada retângulo, há dois semicírculos em relevo, que indicam as três instâncias da Justiça no Brasil (o STF poderia ser corretamente considerado como a quarta).

O propósito, segundo se aprende no tour aos turistas em outro horário, é significar a igualdade da Justiça, que atende a todos de maneira indistinta.

O relógio digital mostra duas da tarde, hora marcada para o início da sessão. Mas a única movimentação é a dos assistentes de plenário, que se sentam na primeira fileira das cadeiras laterais e andam apressados com olhar para o chão.

Com salários de R$ 18 mil reais, em média, esses empregados de luxo usam um pano preto pendurado na metade das costas. Daí serem apelidados de “capinhas”.

Sem uma formação específica, eles foram escolhidos por serem de confiança dos ministros. Com esse único atributo, eles ganharam o direito de fazer parte da elite do funcionalismo público, na capital mais desigual do Brasil.

Dentro do plenário, fazem de tudo. Depositam os porta-lápis, copos de água e pilhas de folhas de sulfite impressas nas mesas dos ministros e na bancada que fica em volta. Um desses maços de folhas traz o nome de um escritório de advocacia na capa.

Das poltronas, os índios conversam em uma língua do tronco Jê. Há 19 kayapós, seis panarás e nove mundurucus.

Alguns viajaram por três horas de lancha voadeira, percorreram 280 quilômetros de estrada de terra, depois mais seis horas de barco, para pegar um ônibus em Novo Progresso, de onde partiram para mais 44 horas de ônibus até Brasília.

Os cocares feitos com penas de arara em diversas cores indicam a família, a aldeia ou o grau de hierarquia do seu dono. Alguns receberam o adorno colorido como herança de alguém que morreu.

Todos são autoridades em suas respectivas aldeias. Eles foram até a capital do Brasil para acompanhar o julgamento de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), sobre a redução da área do Parque Nacional do Jamanxim, para a construção da estrada de trem Ferrogrão.

“Quando é para a luta, todos se dispõem a vir”, diz o presidente da tribo kayapó, Doto Takak Ire, que veste blazer azul, calça jeans e tênis.

“Para a gente, o STF tem muita importância. O presidente e o Congresso podem inventar leis inconstitucionais, mas aí a coisa para aqui no STF.”

O advogado dos índios passa à frente das fileiras e cumprimenta todos pelo nome, embora não fale o idioma das tribos. Para passar o tempo, os índios conversam entre si e mexem em seus celulares. Doto gosta principalmente de lutas de vale-tudo.

Na porta que fica do lado oposto à entrada do público, alguns ministros chegam em carros blindados. O espaço por onde eles caminham está demarcado por organizadores de filas, e não há como contorná-los.

Outros ministros atravessam por um túnel com carpete vermelho e quadros com vários rostos estampados das turmas anteriores do Supremo.

Sem utilidade alguma, as montagens de fotos só servem para afagar o ego dos retratados. Ao final da passagem, eles entram em um elevador privativo, sem qualquer placa indicando que só ministros podem usá-lo.

A discriminação é velada. Quem se aventura a entrar no elevador é imediatamente repreendido por um segurança, sempre postado ao lado da porta.

Com meia hora de atraso, uma campainha toca e os seguranças fazem um sinal com a mão pedindo para que todos se levantem. Eles percorrem afoitos os corredores para garantir que todos entenderam a ordem.

Ninguém escapa da deferência obrigatória. Os capinhas sobem no tablado e se posicionam atrás das poltronas de couro caramelo.

Um a um, os ministros surgem pela porta de um dos lados do tribunal, como se saíssem das coxias de um teatro.

A primeira na fila é a presidente do STF, ministra Rosa Weber, que surge com um bóton amarelo escrito “STF: democracia inabalada”, vendido por R$ 5 na livraria do Supremo.

Os capinhas puxam as poltronas e as empurram, para que os ministros possam se sentar. Apenas o ministro Alexandre de Moraes dispensa o mimo.

Todos têm direito a um capinha, incluindo o representante do Ministério Público (naquele dia, o procurador-geral da República Augusto Aras).

Quem inicia a sessão ao microfone é Rosa Weber, a presidente do STF. Ela faz menção aos estudantes do ensino médio do colégio Miguel de Cervantes.

“Não sei em que ponto do plenário eles se encontram. Sejam todos muito bem-vindos”, diz Rosa. Nenhuma citação é feita aos índios presentes.

Os ministros então começam uma longa digressão, em que cada um dá a sua versão sobre quantos anos e meses de cadeia o ex-presidente Fernando Collor de Mello deveria enfrentar.

A condenação do político já estava decidida, mas faltava estabelecer quanto tempo ele e mais dois envolvidos ficariam na prisão.

Uma decisão que os ministros bem poderiam ter tomado em uma reunião de 20 minutos toma várias horas, com vários deles explicando as razões para cada prazo, para cada um dos crimes, para cada um dos condenados.

O ministro Gilmar Mendes anuncia que iria simplificar o voto, embora me “encanta ouvir a minha própria voz”. O ministro Luís Roberto Barroso comenta: “Não é algo incomum na comunidade jurídica”.

A sessão delongada entedia a todos. Aos poucos, em pequenos grupos, os estudantes deixam o prédio, silenciosamente.

Doto, o kayapó, não resiste e pega no sono. Imediatamente, um dos seguranças avisa outro funcionário que cutuca o índio e o manda sair do recinto. Não é permitido dormir no plenário.

Tudo o que acontece no espaço reservado ao público não é capturado pelas câmeras da TV Justiça, penduradas no teto.

O vídeo transmitido no YouTube só mostra os ministros, e as imagens são traduzidas para que possam ser compreendidas pelos cegos: “A ministra Rosa Weber tem pele branca, cabelos loiríssimos, lisos e curtos. Usa óculos de armação clara. Veste um terno preto sobre blusa preta e um lenço estampado com cores fortes ao redor do pescoço”.

Quatro dias depois, o vídeo da sessão tinha obtido 441 visualizações, sendo que 18 pessoas apertaram no botão “Gostei”.

Enquanto o público se entedia, os capinhas veem fotos e vídeos nas redes sociais e escutam áudios dos grupos de família do WhatsApp. Eles não tiram os olhos das telas, porque é por ali que eles se comunicam com os ministros, que ficam a uma distância de 2 metros.

Em um dado momento, Gilmar Mendes envia uma mensagem para o seu capinha, que corre para digitar a senha no notebook, ao alcance do braço do ministro.

Outro pega a xícara de café que um garçom traz, caminha três metros e a deposita na mesa do seu magistrado. O procurador-geral da República, Augusto Aras, mantém atuação discreta e não abre a boca durante a sessão.

Os votos de todos os ministros são lidos, e ninguém muda de opinião nos debates. É tudo mera formalidade. Como o tempo se delonga, Rosa Weber interrompe a sessão para um breve intervalo.

Novamente, todos na plateia são obrigados a se erguer para que as celebridades saiam.

No intervalo, capinhas aproveitam para trocar os copos de água cheios de alguns ministros por outros, igualmente cheios de água. Alguns depositam uma folha de guardanapo em cima do copo.

Outros abaixam a tela dos notebooks dos ministros. Trata-se de uma precaução extra, uma vez que uma película impede que a plateia veja o que eles estão escrevendo e lendo.

Mais de meia hora se passa e as excelências retornam, repetindo todos os rituais. O público é obrigado a ficar de pé e os togados entram em fila.

Devidamente sentados, com a ajuda dos seus capinhas, ministros trocam mensagens entre si pelo celular e fazem gestos para saber se o outro entendeu a mensagem.

Desentendimentos na dosimetria da pena de Fernando Collor impedem que quem assista saiba qual foi o resultado final. De supetão, Rosa Weber encerra o julgamento.

“Senhores ministros, são 18 horas e sete minutos. Só me resta agradecer a presença de todos, senhores advogados, que pacientemente ao longo do julgamento nos assistiram porque realmente é uma questão complexa. Ação penal sempre envolve um tempo a mais. Agradeço a presença de todos os presentes.”

Rosa não dá qualquer palavra sobre os outros temas que estavam na agenda para ser debatidos, como a redução da reserva dos indígenas. Os seguranças mandam que todos se levantem novamente, uma última vez, para acompanhar a saída dos magistrados.

Os ministros saem aos poucos, mas Rosa Weber e Alexandre de Moraes permanecem no plenário conversando. Apenas os dois falam baixinho.

Os índios do Pará, os advogados que vestem uma beca preta comprida e todos os demais ficam imóveis, de pé, olhando para os dois ministros conversando.

Por mais de cinco minutos, ninguém se senta. Ninguém fala. Todos os olhos perplexos se voltam aos dois ministros, indiferentes à realidade que os cerca. Sem qualquer pressa, eles também vão embora.

“Além de não decidir, não nos serviram café”, diz um dos índios ao advogado Melillo Dinis, que tinha se preparado para defender os indígenas.

“Isso causa muita indignação. É a terceira vez que eles vêm até Brasília e nada é decidido”, diz Melillo.

No dia seguinte, quinta-feira, 1º de junho, a sessão começa com o atraso de costume, em torno de meia hora. Rosa Weber anuncia que, por ocasião da visita do presidente da Finlândia, haverá um intervalo de 30 minutos.

Perto das quatro horas da tarde, ela e Aras recebem o chefe de Estado estrangeiro e sobem a escada para conversar no Salão Nobre. O intervalo, contudo, demora uma hora e meia — três vezes mais que o anunciado.

Quando ela e Aras caminham pela lateral do plenário após o fim da recepção, para se encontrar com os demais ministros em outro salão antes de reiniciar a sessão, os seguranças ordenam que as pessoas sentadas no auditório se levantem.

Como eles passam caminhando rapidamente, pelo corredor lateral, todos ficam menos de um minuto em pé.

Os que demoraram mais para entender o que estava acontecendo permanecem poucos segundos erguidos. A cena chega a ser cômica, como no final de uma dança das cadeiras.

Os ministros retornam às cinco e vinte e seis da tarde, mas ficam pouco. Antes das seis horas, Rosa anuncia que o tempo está se esgotando. Estender as sessões para concluir as tarefas do dia é impensável.

Novamente, a sessão acaba e os demais temas que estavam na pauta vão para o limbo. Não há um novo agendamento. Ao final, os ministros Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes conversam entre si.

Desta vez, as pessoas ficam em silêncio, de pé, por dez minutos, esperando que eles saiam.

Sem qualquer esforço extra, é possível ouvir os ministros falando sobre lobbies no Congresso, multas milionárias e as ações do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco.

Com os magistrados recolhidos novamente para a parte de trás do plenário, todos os que assistiam podem, finalmente, conversar, sentar ou sair.

Como não há sessões às sextas, a semana de trabalho do tribunal mais importante do Brasil chegava ao fim.

A história da Suprema Corte, como diz a mensagem na exposição sobre os Atos de 8 de janeiro, seguia “inquebrantável”. A democracia, segundo a frase no bóton de Rosa Weber, permanecia “inabalada”.

Até o envio deste livro para publicação, em março de 2024, Fernando Collor ainda não tinha sido preso.

Conteúdo editado por:Omar Godoy
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