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A primeira vez que eu me sentei na frente de uma psicóloga disposta a me ouvir foi quando eu tinha 31 anos e as coisas se desenrolaram mais ou menos como eu havia antecipado. Ela ouviu muito mais que falou, não esboçou reação alguma e me encorajou a continuar falando até que os 45 minutos acabassem. Enquanto ela segurava a porta aberta e acertava os detalhes da próxima sessão, ela soltou: “Você já assistiu àquele filme ‘Em Busca da Felicidade’?”. Eu nunca tinha visto. “Você deveria. Vai te fazer bem. O poder da resiliência, rapaz.”

Dois dias depois eu tive uma crise de pânico ENQUANTO assistia o dito filme com minha então namorada, muito provavelmente PORQUE eu estava assistindo aquilo. Não voltei para a próxima sessão.

“Em Busca da Felicidade” conta a história de um pai e seu filho que, abandonados pela esposa/mãe e despejados do apartamento onde moravam, tentam sobreviver vivendo em albergues e banheiros públicos enquanto o pai se lasca para vender scanners obsoletos. Numa cena, eles se trancam em um desses banheiros enquanto um infeliz esmurra a porta tentando expulsá-los. O pai chora enquanto o filho tenta dormir. Assisti até aí. Naquela primeira sessão, eu havia falado sobre o período de quase um ano que eu tinha passado vivendo nas ruas e de como isso ainda me atormentava, principalmente agora que eu era pai de duas crianças. De alguma maneira, a terapeuta achou que ver Will Smith correndo pra lá e pra cá com o filho debaixo do braço me faria entender o poder da resiliência. Rapaz.

Talvez. Mas não duas semanas depois de você tentar se matar.

Eu estava tomando uma dosagem considerável de lítio na época, graças à psiquiatra de plantão (aquela sem disposição de me ouvir) que me atendeu quando fui levado até o Pronto Socorro. Acho que a consulta durou menos de cinco minutos. “Por que tentou se matar?”, “Acha que vai tentar novamente?” e, a minha favorita: “Problema todo mundo tem”. Claro, porque depressão é uma escolha. Você sai de lá se sentindo um pouquinho pior do que quando entrou, mas com lítio suficiente para engasgar um elefante.

Como acabei sendo convencido que simplesmente abandonar minhas sessões seria algo grosseiro – minha namorada era mais decente que eu – decidi avisar minha quase psicóloga que não voltaria. “Tudo bem. Continue com o lítio e ache uma psiquiatra de verdade. Vou te passar o número de um amigo, sei que você vai adorar conversar com ele, com outro homem.”

Da mesma pessoa que veio o Will Smith sem-teto veio a indicação do terapeuta bon vivant. Ele me recebeu depois de seu horário habitual, numa clínica estilo classe média alta, repleta de plantas artificiais e revistas de fofocas. Esperei uns 15 minutos até o último paciente sair e ele me chamar como se eu fosse um velho amigo. “Senta aí.” Desabotoou os dois primeiros botões da camisa branca enquanto se reclinava numa cadeira que parecia ser confortável demais para alguém disposto a render no trabalho.

A vida com lítio

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O consultório era repleto de livros, diplomas, certificados, e bustos (?). “Pois é, esse é o meu mundo, esse consultório, rapaz. Eu adoro meu trabalho.” Giradinha de 90 graus na cadeira. “Mas vamos lá. Qual é o teu problema?” Não podíamos ter começado melhor. “Vou ser direto porque acho que você aguenta o tranco. Não estou podendo aceitar mais pacientes, minha agenda está lotada e portanto essa será provavelmente nossa única sessão. A doutora _____ me disse que você teve uma vida desgraçada mesmo. Me deixa entender, você foi abusado quando era criança, isso? Ok. Mas tem namorada ou namorado? Vida sexual normal? Ok. Morou na rua, usou drogas. Ainda usa? Ok. Goza de boa saúde? Tem filhos, isso? Divorciado? Emprego? Ah, mas a gente passa por uns maus bocados às vezes. O que não pode é amarrar um lençol no pescoço e tentar se matar. Isso é coisa de piá. Deixa eu te contar um segredo. Um segredo meu para aliviar o estresse. Porque o que te levou ao fundo do poço foi essa cobrança que vem com o estresse. Você disse que tem uma namorada, não? Amigo, eu tenho uma esposa linda, filhos lindos, olha.” Gira o porta-retrato em minha direção com o dedo indicador. Vejo duas crianças bem pálidas abraçadas com o Mickey. “Amo eles. Amo. São minha vida, meu porto seguro. Agora, às vezes, às vezes eu fico tenso. Trabalho, dinheiro, problemas mil. E o estresse vai acumulando, vai minando o dia-a-dia. Você começa a chegar em casa nervoso, teus filhos querem brincar e você tá sem paciência. Tua esposa quer te contar sobre o dia dela e você só quer tomar teu uísque e assistir teu futebol. Nessas horas você sabe o que eu faço? Você acha que eu vou arriscar o bem-estar da minha família por causa de estresse? A gente não pensa direito. O que você precisa é de um cano de escape. Você precisa desaparecer um pouco, relaxar por completo e voltar novo. Eu não vou me entupir de drogas, não vou tomar ‘lítio’. Nem vou sair chorando por aí. É por isso que eu tenho uma amante, rapaz.”

Quando cheguei em casa e minha namorada perguntou, curiosa, como tinha sido a sessão, não resisti. “Joga fora essas caixas de lítio.” Ela não entendeu pelos primeiros 20 segundos e em seguida achou que havíamos trocado a medicação. “Não. Preciso de mais sexo.” Ela sorriu. “Mas não com você. Foi o que o doutor _____ disse.” Tenho que dar esse crédito a ele, o psicólogo bon vivant me fez dar umas risadas naquela noite.

Aquela última sessão – junto com a minha precária condição financeira – me fizeram desistir de procurar um terapeuta e continuei tomando minha dose diária de lítio na esperança que as coisas voltassem ao “normal”. Retomei meu trabalho – sou professor de inglês – e não levou muito tempo para que o lítio começasse a mostrar seus efeitos, colaterais ou não. Na verdade, não conseguia perceber uma melhora real na minha condição, não acordava mais esperançoso pela manhã. Voltei a viver uma rotina e ela preenchia meus dias e, quando o trabalho acabava, gradativamente passei de sentir um peso absurdo no peito a sentir um desconforto na cabeça, seguido por uma letargia constante, até sentir nada. Via meus filhos constantemente, também adorava eles, sabia que eram saudáveis e que de alguma forma eu deveria ser grato por aquilo mas quando estava na companhia deles não sentia nada. Tinha a namorada mais paciente e amorosa do mundo mas quando ela me perguntava se eu estava melhor, eu mentia todas as vezes, porque não saberia dizer: não sentir NADA é melhor do que sentir o que eu sentia antes? Não parecia.

Será que não deveríamos todos tomar um pouquinho de lítio?

Talvez não demore muito para que cada carro, computador e aparelho eletrônico dependam de baterias de lítio do mesmo modo que eu dependo da substância há mais de duas décadas

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Caso tivesse seguido o conselho do meu camarada bon vivant muito provavelmente teria dado com os burros n’água. Quando minha vida sexual esboçou um retorno, ela havia se transformado numa maratona sexual porque o lítio retarda tanto o orgasmo que ambos sucumbíamos antes do fim. Não demorou para que eu começasse a ter problemas no trabalho relacionado à minha crescente falta de memória e raciocínio confuso. Como professor de inglês, o que os alunos esperam de você é agilidade em responder as dúvidas de vocabulário e gramática, algo que eu me gabava de fazer com as mãos nas costas. Não mais. Agora as perguntas vinham seguidas de longos períodos de silêncio da minha parte “Espera, eu sei”. Às vezes um minuto cheio. Bastante tempo pra se ficar numa sala devendo uma resposta para 15 pessoas ou mesmo uma. Quando meu coordenador me chamou para conversar, expliquei por alto o que havia acontecido nos últimos oito meses e mencionei o lítio. Ele foi compreensivo, mas naqueles 30 segundos antes do fim da conversa deixou claro que eu estava colocando meu emprego em risco. “Sinto muito mesmo que você esteja passando por isso, mas a gente obviamente quer que nossos professores rendam o máximo de sua capacidade, você entende, né?” Tapinha nas costas.

Parei de tomar lítio alguns dias depois e não foi por causa do trabalho. Aquele constante estado de letargia e inexistência que eu sentia não me parecia antônimo da tristeza que eu sentia antes, mas sinônimo. Na minha cabeça eu havia substituído uma vontade incontrolável de sair correndo e me atirar do topo de um prédio por um desejo de nunca mais sair da garagem do mesmo prédio. Eu só queria morar no quinto andar.

Em retrospecto, foi a pior decisão que eu já tomei na vida.

Uma amiga me conseguiu algumas caixas de antidepressivos genéricos e eu me convenci que eles ajudariam, agora que eu estava livre do lítio. Passei a tomá-los indiscriminadamente, sem acompanhamento já que não consultava com nenhum terapeuta. Eles obviamente não surtiram efeito algum ou, se surtiram, não apareceram no meu radar. Estou meio triste hoje? Passa uns dois pra cá. Hoje foi um dia legal. Não vou tomar nada.

“Parei de tomar lítio alguns dias depois e não foi por causa do trabalho. Aquele constante estado de letargia e inexistência que eu sentia não me parecia antônimo da tristeza que eu sentia antes, mas sinônimo. Na minha cabeça eu havia substituído uma vontade incontrolável de sair correndo e me atirar do topo de um prédio por um desejo de nunca mais sair da garagem do mesmo prédio. Eu só queria morar no quinto andar.”

Os primeiros sinais de que alguma coisa muito ruim estava para começar apareceram – onde mais? – no trabalho. Não durei mais que seis meses lá. Verdade, recuperei minha boa forma e com ela uma autoconfiança esmagadora, pouco saudável. Eu era o professor favorito de alguns, mas arranjei encrenca com todo mundo que trabalhava comigo e saí de lá batendo portas e fazendo inimigos. Verdade: escolas de idiomas conseguem agrupar um número inacreditável de idiotas como “professores”, mas isso não significa que você precisa dar nome aos bois. Pior, convenci minha namorada que era professora na mesma escola a sair também e ambos decidimos morar juntos uma vez que estávamos desempregados e precisávamos cortar gastos.

Na época minha ex-mulher estava passando por sua parcela de maus bocados e me pediu para que cuidasse das crianças em tempo integral. O que você diz? Minha namorada também tinha dois filhos do primeiro casamento e quando conversávamos sobre como seria nossa vida juntos, as coisas pareciam animadoras. Embora as crianças já se conhecessem de almoços e passeios, nunca haviam convivido e meus filhos eram três anos mais jovens. Nos mudamos pra casa da minha namorada e durante as primeiras semanas tudo foi uma grande festa, as crianças pareciam se dar bem e já estávamos com possíveis empregos engatilhados.

Quando eu tinha 14 anos, passei quatro meses do ano letivo conversando semanalmente com a psicóloga da escola pública na qual eu estudava. Era uma senhora atenciosa que demonstrava bastante curiosidade a meu respeito. Eu era o típico menino problema, mas sem o aspecto “bully”. Pais separados, notas baixas, desinteresse nas aulas, passava o tempo todo desenhando. Mas quando entrava na sala dela com aquela mobília cheirando a óleo de peroba, nossas conversas rendiam. Eu falava passionalmente sobre coisas que me interessavam – como descrever por que eu achava “Use Your Illussion II” melhor que “Use Your Illusion I”, ou se ela entendia a importância do Tim Burton – e ela não me interrompia. Outras vezes eu ficava em silêncio. “Estão me dizendo que você cuspiu na cara da Carla. Quero ouvir de você.” Em uma de nossas últimas conversas, ela esboçou um diagnóstico. “Miguel, eu tenho conversado com você todo esse tempo e acho que sei um pouco a seu respeito. Eu gostaria de conversar com seus pais, se eles puderem vir até aqui.” Eu queria saber o que havia de errado comigo. “Não posso dizer com absoluta certeza, mas existe essa condição chamada de “Psicose Maníaco-Depressiva” em que você talvez, TALVEZ se encaixe. Tuas mudanças constantes de humor, enfim, pede pra tua mãe vir até aqui e eu explico melhor, ok?”

Ximena Medina Sancho/wikimedia Commons

Voltei pra casa, entrei no meu quarto pra me certificar de uma coisa que não saía da minha cabeça. Peguei uma pilha de revistas de música e escrutinei uma por uma. Lá pela metade encontrei. Era isso mesmo. Axl Rose também era “Maníaco-Depressivo”. Nunca falei nada para minha mãe. Na verdade, aquela psicóloga de escola foi a primeira. Era eu que não estava disposto a ouvir. Mas quem está, aos 14 anos? No ano seguinte eu abandonei a escola e fui embora para o Rio de Janeiro trabalhar num bar e morar com uma mulher de 30 anos. E não é que a psicóloga da escola estava certa!

Atualmente, a Psicose Maníaco-Depressiva é mais conhecida como Transtorno Bipolar, e entre suas características principais estão as mudanças de humor abruptas que variam entre euforia extrema e depressão. Existem inúmeros fatores que acompanham cada um dos episódios – mas o que eu experimentei naquela fase em que parei de tomar lítio e me mudei para a casa da minha namorada foi um tipo de paranoia que eu nem sabia que existia.

Num intervalo de semanas, tirei meus filhos de lá porque achava que eles estavam sendo perseguidos e incomodando as outras duas crianças e os levei para morar com meu pai que eu não via há mais de uma década, sabotei meu relacionamento com meus enteados, dormia menos de quatro horas por noite e trabalhava mais de 12 – passava o resto em discussões totalmente inúteis com minha namorada, quase sempre concluindo que meu lugar era nas ruas mesmo (eu agora dava aula numa escola que atendia um público classe AA). Então eu sumia por dias inteiros e voltava para casa completamente destruído, incapaz de falar, chorando. Ficava assim dias a fio. Cogitávamos ir a um médico, mas não tínhamos grana e todos me pareciam igualmente babacas, eu dizia.

Tivemos que aprender a viver com isso nos anos seguintes. Me custou bastante, mas acho que custou ainda mais para as pessoas ao meu redor. Minha enteada foi embora morar com o pai e acho que tenho uma parcela de culpa nisso, de não prover uma casa mais agradável para ela viver com a mãe. Meus filhos voltaram a morar com a mãe deles e se talvez tivesse conseguido dar mais estabilidade para eles, se eu fosse uma pessoa mais estável, as coisas fossem diferentes hoje. Tive algumas crises durante esses anos, mas cheguei a um ponto em que percebi que não aguentaria mais sozinho. Ter que viver com a culpa disso tudo, mais um diagnóstico naquela época ignorado por mim, parecia demais.

Foi então que dois anos atrás – após o que hoje sei classificar como mais uma crise de mania –, vendo que mesmo casado com uma santa, ninguém mais estava conseguindo lidar com a situação e eu começava a flertar novamente com a ideia de suicídio, fui consultar com uma terapeuta esposa de um amigo. Meu ceticismo inicial perdurou por algumas sessões, mas pude perceber que ela era diferente. Como sempre fui muito ligado em literatura, música e cinema, não era incomum que eu fizesse paralelos entre obras como uma tentativa de entender certos aspectos da minha vida e ela acompanhava isso sem problemas, algo novo para mim em um consultório. Discorrer sobre minha “história” foi algo mais espontâneo do que eu achava que seria e, quando comecei a pensar no que ela me apontava, me fazendo sair do ponto cego, as coisas pareceram melhorar. Por alguns instantes, conseguia pensar antes de agir e algumas vezes me controlar antes de tomar uma atitude impetuosa. Mas era um tipo de progresso ínfimo. Ela não tardou em perceber as oscilações de humor e muito provavelmente delírios maníacos nas descrições que eu dava ou então minha total falta de controle em lidar com questões menores. “Acho que você precisa ver uma psiquiatra também.” Deixei claro que não tomaria lítio. “Existem outras opções.”

A psiquiatra que me foi indicada tinha uma reprodução do Monet na parede que me distraiu durante os cinco primeiros minutos da sessão. Rapaz, é realmente um saco ter que contar sua vida desgraçada pela enésima vez. Em determinado ponto você decide testar seu poder de síntese e então percebe que pouco importam os detalhes. Falei durante 30 minutos. Recebi um pseudodiagnóstico em cinco. Pseudo porque nessa área é impossível ter certeza. “Você apresenta todos os sintomas de quem tem ‘transtorno afetivo bipolar’. Precisa de acompanhamento médico, tratamento com medicamentos e terapia.” Contei sobre minha experiência com o lítio. “O lítio é o mais indicado, mas, no teu caso, por causa do teu problema de memória, vamos tratar com Depakote, um outro remédio muito eficaz e bastante usado em pacientes bipolares.” Prescreveu as receitas. “Nos vemos mês que vem” e até logo.

Quando fui pesquisar sobre o transtorno, descobri seu outro nome, Psicose Maníaco-Depressiva e liguei os pontos com a psicóloga da escola. Também entendi porque Axl Rose vive isolado em uma mansão em Hollywood Hills, despediu todos os membros originais do Guns N’ Roses, levou 20 anos para gravar seu último álbum e atualmente parece um leão marinho albino.

Pedro Szekely/Wikimedia Commons

Continuei minhas sessões de terapia e visitas mensais à psiquiatra. No natal passado, um casal de amigos teve que vir me buscar numa praça a pedido de outra amiga. Eu mal conseguia falar. Estava ali sozinho, me sentindo pior do que jamais havia me sentido antes. Eles me levaram para um Hospital Psiquiátrico onde esperei para falar com o psiquiatra de plantão. Ele me remediou e sentamos em seu consultório para uma longa conversa. Ele era jovem e falante demais para quem estava de plantão no natal. Me ofereceu café e no meio da conversa me acompanhou até o pátio do lado de fora do hospital para que eu pudesse fumar. Não me lembro com exatidão da nossa conversa – o comprimido minúsculo que ele me deu agiu rápido – mas me lembro de ele dizer que se eu estivesse pensando em me matar deveria ficar por lá. Pensei na minha esposa e nos meus quatro filhos em casa, eles não faziam a menor ideia de que eu estava lá. Perguntei se não havia nenhum outro tratamento para a bipolaridade fora os remédios. “Tem eletroconvulsoterapia.” Eletrochoque? “Você ficaria surpreso como é muito mais eficaz que os medicamentos. Bem mais caro também. E não temos aqui.” Agradeci o papo e decidi não ficar.

“Eu tiro desse transtorno a única coisa boa que gerações tem tirado dele desde Sêneca: o gene criativo.”

Quando retomei minhas sessões de terapia, eu estava tomado de raiva. Não entendia por que havia tido outra crise mesmo fazendo tudo que me disseram para fazer e tomado todos os remédios. Minha psicóloga foi paciente e tentou me explicar que as coisas não funcionavam assim, que ainda precisávamos entender meu problema e pensar meu quadro clínico dentro da minha história e dos meus sintomas. Eu dizia que estava de saco cheio dessa conversa de “bipolaridade” e ela rebatia que eu não deveria me ater a rótulos. Ela tentou, mas eu estava agressivo demais, machucado demais. Amigavelmente, decidi dar um tempo das sessões e mantive apenas as consultas mensais com a psiquiatra. Não podia continuar pagando as duas e a essa altura já não conseguia mais dormir sem esse e aquele remédio. A verdade é que meu colapso nervoso poderia ter sido muito pior. Levei um tempo para admitir isso.

Minha psiquiatra alegou que a medicação não teve tempo suficiente para agir por completo e que tratamentos assim são usualmente demorados. Consulto com ela uma vez por mês, conversamos um pouco, ela finge que está interessada, eu finjo que ela está me ajudando. Ela quer que eu pague e caia fora, eu quero que ela me dê as receitas dos remédios para poder cair fora. Um acordo invisível. Imagino se é assim com todo mundo e espero que não.

Porque passei os primeiros 31 anos da minha vida no escuro sobre a minha condição e só comecei a tomar a medicação certa aos 36, fico pensando quanto dano já foi causado e se há mesmo chance ter uma vida normal. Eles me dizem que vou ter que tomar medicamentos para o resto da vida e muito provavelmente ainda terei dezenas de episódios pela frente.

Então penso na minha história. Naquela que eu tive que recontar dezenas de vezes. Penso na total falta de “normalidade” e em tudo que ela me proporcionou.

Eu tiro desse transtorno a única coisa boa que gerações tem tirado dele desde Sêneca: o gene criativo.

Já é um começo.

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