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 | Miguel Nicolau/Especial para a Gazeta do Povo
| Foto: Miguel Nicolau/Especial para a Gazeta do Povo

Antes de mais nada, confesso: não tinha lido nenhum dos romances do chileno Alejandro Zambra. Segundo a crítica internacional, ele está entre os melhores autores de língua espanhola – e não apenas dela.

O primeiro trabalho de Zambra com que me deparei foi também o primeiro livro de contos que ele escreveu: “Meus Documentos”, recém-lançado pela Cosac Naify.

Da leitura dessa reunião de 11 histórias curtas surgiram duas constatações: não há exagero nenhum nos elogios que Zambra tem recebido e perdi tempo ao não conhecer sua prosa “inteligente e de linguagem luminosa”, como já escreveu um dos grandes contistas brasileiros, Sérgio Sant’Anna.

Zambra consegue um pequeno milagre narrativo: apesar da polifonia dos personagens dos contos, há um traço comum ao narrador de cada um dos contos, uma melancolia bem-humorada que deixa a impressão de que é um mesmo personagem que fala. Múltiplos em sua unidade é o que se pode dizer desses contos cuja matéria-prima é a memória.

Zambra faz um backup literário da experiência de passagem da infância à adolescência e à idade adulta num Chile em que o espectro da ditadura de Augusto Pinochet (1915-2006) sobrevoa como um condor.

Nos contos, estão as memórias do filho, do estudante, do aspirante a escritor, do jovem autor que se sustenta em subempregos, do amante inexperiente, professor iniciante e pai neófito.

Solidão, violência, sexo, opressão, futebol e religião habitam o porão da memória do escritor que sabe a hora certa e em que medida abrir seu alçapão. Ao mesmo tempo raiva adolescente e nostalgia lírica.

Em todos os textos, o narrador mostra a transição do analógico para o digital no início da década de 1990.

“Meus Documentos”

Alejandro Zambra. Tradução de Miguel Del Castillo.

Cosac Naify, 222 pp., R$ 32.

O título do conto que dá nome ao livro remete à pasta pessoal da linguagem Windows, espaço mágico para armazenar seus escritos, músicas e bobagens em geral que o narrador descobriu quando comprou seu primeiro computador pessoal.

Essa idiossincrasia torna dobrado o prazer da leitura para quem é da mesma geração digital do escritor, hoje na faixa dos 35 anos.

A experiência de Zambra como professor e crítico literário por dez anos antes de se arriscar na ficção é visível: ele, não raro, gosta de problematizar o processo da escrita e as angústias do ficcionista. Os narradores dos contos sofrem com a necessidade de escrever em um mundo que rejeita essa atividade.

A solução de linguagem encontrada por ele é fascinante. Às vezes, o autor fala “machadianamente” com o leitor, usando reflexões entre parêntesis. Esse jogo, porém, não é presunçoso. Seu discurso é sem firulas ou literatices. Revela, no entanto, um trabalho de ourivesaria da palavra escondida numa coloquialidade oral contundente.

Não fossem os prêmios, as adaptações bem sucedidas para o cinema, a quase unanimidade da crítica e de uma legião de leitores que cultuam e aguardam as obras do chileno, só esse livro de contos bastaria para colocá-lo na primeira divisão da literatura mundial.

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