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Cena com o elenco principal do filme britânico “Para o Resto de Nossas Vidas”, de 1992
Cena com o elenco principal do filme britânico “Para o Resto de Nossas Vidas”, de 1992| Foto: Divulgação

O escritor Ariano Suassuna (1927-2014) costumava dizer que é uma tremenda falta de educação falar mal de alguém pela frente, já que isso constrange quem ouve e constrange quem fala. A tese do autor é a de que não custa nada a gente esperar um pouco as pessoas darem as costas e, aí sim, falar mal o quanto quiser.

É difícil afirmar se Suassuna realmente acreditava nisso ou estava somente destilando seu humor e cinismo. Mas, a bem da verdade, também é possível traduzir seu pensamento como o de autopreservação. Uma ideia que parece simplesmente não existir nos personagens de Para o Resto de Nossas Vidas, uma produção britânica lançada em 1992 com direção do irlandês Kenneth Branagh e disponível no streaming para locação via Apple TV+ e Amazon Prime Video.

Além de assinar o roteiro (em parceria com Rita Rudner e Martin Bergman), Branagh é um dos inúmeros personagens que habitam esse drama intenso e revelador, pontuado com o fino humor inglês, que conta a história de um grupo de amigos que se reúne para comemorar a chegada do ano novo. O anfitrião é Peter Morton (Stephen Fry), que vive praticamente solitário em sua mansão herdada dos pais. A última vez que encontrou seus amigos foi há dez anos, quando ainda vislumbrava a carreira de ator e todos eles fizeram uma frustrada apresentação teatral numa festa de Réveillon.

Passada uma década, Peter vence a barreira da timidez e do isolamento, convidando os antigos amigos para a passagem de ano. Para ele, apesar do distanciamento, todos continuam sendo praticamente sua família. O primeiro a chegar é Andrew (Branagh), sedutor, alcoólatra e falastrão na mesma medida, que deixou a Inglaterra e foi em busca do sucesso em Hollywood, e acabou se casando com a atriz de novela televisiva Carol (Rita Rudner), uma mulher muito vaidosa e igualmente fútil.

Andrew irá reencontrar Sarah (Alphonsia Emmanuel), com quem já teve um rápido affair. Sarah não é lá tão criteriosa em seus relacionamentos e chega à festa acompanhada de Brian (Tony Slattery), com quem se entende muito bem sexualmente, mas duvida de um futuro promissor, uma vez que o cara é casado e pai de um garoto pequeno.

O dono da casa, Peter, não mostra qualquer tipo de aflição com a chegada de seus convidados. Nem mesmo com a de Maggie (Emma Thompson), uma solteirona em busca do amor verdadeiro e que, quase imediatamente, mira suas atenções em Peter e literalmente se joga em seus braços, afirmando que eles devem ficar juntos. Sem qualquer escapatória, Peter é obrigado e revelar sua preferência por homens.

Para completar a mesa da ceia, surge o casal formado por Roger (Hugh Laurie) e Mary (Imelda Staunton). Uma famosa e bem-sucedida dupla criadora de jingles publicitários, por trás da aparente felicidade eles vivem o drama e a profunda tristeza de terem perdido um de seus gêmeos ainda bebê. O problema é que Mary culpa o marido pela morte da criança.

Um lorde entre desalinhados

Na tão aguardada noite de Réveillon começam a surgir os conflitos e discussões, numa lavação de roupa suja interminável. À exceção de Peter, que se mantém um genuíno lorde, todos passam a quilômetros de distância da proposição sustentada por Suassuna. Pior: por pura falta de autopreservação, os amigos se arriscam a falar mal um dos outros pela frente e por trás, numa sucessão de gafes e absoluta deselegância.

Mesmo diante de personagens que transitam no completo desalinho, é de se esperar que o roteirista e diretor Kenneth Branagh consiga criar uma atmosfera de humor e sensibilidade emocional – graças, principalmente, aos diálogos bem construídos. Afinal, Branagh, um discípulo de William Shakespeare que foi indicado ao Oscar de direção por Henrique V, sabe muito bem como usar as palavras, até mesmo quando essas não devem (ou não deveriam) ser utilizadas.

Ainda que Branagh proponha reflexões sobre as muitas transformações políticas e culturais nos anos de 1990, discuta relacionamentos conjugais, amizade, confiança e até aproveite para alfinetar a futilidade no universo das celebridades hollywoodianas (de fato, um ano antes desse filme, Branagh saiu da Inglaterra e foi tentar a sorte em Hollywood com o suspense inspirado em Hitchcock Voltar a Morrer), o principal objetivo da obra é escancarar a arrogância daquelas pessoas que só conseguem enxergar os erros dos outros e, ainda mais trágico e mesquinho, achar que seus problemas, traumas, obstáculos são sempre maiores e mais importantes do que os dos outros.

A prepotência e a cegueira moral chegam ao ponto em que os convidados culpam o próprio anfitrião por toda aquela cizânia, já que ele organizou o encontro. O ponto de virada, ou o famoso tapa na cara e choque de realidade, surge no momento em que Peter conta o motivo de reunir seus amigos. É uma revelação bombástica, triste, comovente. Silêncio de alguns, desespero de outros. Branagh, que não quer cair nos clichês e muito menos transformar seu filme num dramalhão televisivo, dá um corte rápido para evitar a pieguice e prefere um desfecho burlesco. Uma forma inteligente para passar a mensagem de que a mesquinhez está diretamente associada ao ridículo.

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