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Brasil e mundo tentam definir regras para o trabalho por aplicativo. “É uma tarefa difícil”, diz o professor José Pastore.
Brasil e mundo tentam definir regras para o trabalho por aplicativo. “É uma tarefa difícil”, diz o professor José Pastore.| Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

O Brasil, como o mundo todo, vem batendo cabeça para definir regras para o trabalho nos aplicativos de transporte e entregas. Após meses de debates, representantes do Ministério do Trabalho, empresários e sindicatos finalmente concluíram uma proposta de regulamentação para os motoristas de veículos como Uber e 99. Não houve acordo, no entanto, em relação aos entregadores que usam apps como o iFood.

O Projeto de Lei Complementar 12/2024, enviado ao Congresso em fevereiro pelo Executivo, enfrenta resistência tanto de parlamentares quanto de trabalhadores do segmento, que temem ser "engessados" pela regulação. Enquanto isso, mais de 10 mil ações tramitam na Justiça do Trabalho em busca do reconhecimento de vínculo empregatício ou de indenizações por parte das plataformas.

O cenário de incertezas não é exclusivo do Brasil. Trata-se de um desafio global imposto pela chamada “gig economy”, que diz respeito ao aumento das plataformas digitais de trabalho. Segundo um relatório de 2021 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o número de empresas do gênero quintuplicou na última década no mundo.

A legislação não acompanha a velocidade das transformações. Enquanto tribunais de vários países debatem questões fundamentais, como a existência ou não de vínculos trabalhistas entre os condutores e as plataformas, parlamentos buscam aprovar leis que possam disciplinar e harmonizar as relações de trabalho.

"Cunhar leis específicas para proteger quem trabalha em plataformas digitais tem sido um empreendimento raro e pouco convincente", diz José Pastore, professor da Faculdade de Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP) e autor de estudo "As proteções dos trabalhadores em plataformas digitais".

O grande desafio é encontrar um equilíbrio entre a flexibilidade proporcionada pelas novas tecnologias e a necessidade de garantir uma base mínima de segurança previdenciária, evitando a precarização do trabalho. "É uma tarefa difícil", aponta Pastore em seu estudo.

Trabalhador por aplicativo: empregado, autônomo ou independente?

O primeiro passo dos legisladores é determinar critérios que diferenciem empregados de trabalhadores autônomos ou independentes. Nesse sentido, o cenário mundial é tão diverso quanto intricado.

"Alguns países têm adotado abordagens mais protetivas aos trabalhadores, classificando-os como empregados com direito a benefícios trabalhistas, enquanto outros mantêm a classificação de trabalhadores independentes, com menos proteções", diz Elimar Mello, advogado trabalhista e sócio do Badaró Almeida Advogados.

O único consenso é que os profissionais trafegam em uma área cinzenta, o que leva a interpretações controversas.

"Enquanto não são empregados no sentido tradicional, também não são totalmente autônomos, pois recebem orientações da plataforma sobre como proceder no trabalho. Alguns os consideram em um limbo para o qual ainda não existem leis específicas", afirma Pastore. "Essa situação tem resultado em ações judiciais divergentes, baseadas em diferentes definições de empregados e autônomos."

Confira a seguir uma visão geral da regulamentação e das leis ao redor do mundo, explorando como diferentes nações enfrentam o desafio.

A legislação do trabalho por aplicativos na Europa

A União Europeia tem discutido diretrizes para proteger seus mais de 28 milhões de trabalhadores em plataformas digitais. Um esforço recente para melhorar as condições de trabalho se deu por meio da proposta do Parlamento para reclassificar os "gig" como "trabalhadores por conta de outrem", com acesso a direitos trabalhistas básicos. O movimento poderia beneficiar mais de 5 milhões de condutores ativos, mas enfrentou a oposição de uma maioria dos países-membros, que adotam disposições diferenciadas.

Inglaterra: Os trabalhadores de aplicativos foram denominados “workers”, uma categoria intermediária entre empregados e autônomos. Essa classificação surgiu de uma decisão judicial no processo entre a Uber e Aslam em 2016. No entanto, ainda não há consenso. Uma apelação ao Tribunal Superior de Justiça confirmou a decisão de considerar os trabalhadores de plataformas como profissionais autônomos e não “workers”, argumentando que os motoristas podem aceitar ou rejeitar serviços e ser substituídos por outros motoristas. Os casos relacionados a trabalhadores de plataformas na justiça trabalhista continuam a proliferar.

Espanha: Em solo espanhol, muitas ações têm sido julgadas com base no Estatuto dos Trabalhadores Autônomos, que definiu uma terceira categoria de trabalhadores: os “autônomos economicamente dependentes”. Esses trabalhadores atuam predominantemente para uma empresa. No entanto, ainda há disputas. Em 2021, um decreto real conhecido como "Lei Rider" (Real Decreto-ley 9/2021), aprovado pelo Conselho de Ministros, classificou os entregadores de aplicativos como empregados das plataformas digitais. Um dos principais pontos dessa norma diz respeito ao reconhecimento de uma presunção legal de vínculo empregatício para os trabalhadores de plataformas de entrega. Um ponto crucial da Lei Rider diz respeito à obrigação no fornecimento de informações sobre algoritmos ou sistemas de inteligência artificial.

França: A legislação francesa é mais protetora. A Corte de Apelação de Paris reconheceu o vínculo de emprego entre os motoristas da Uber em 2019. Em 2020, a Corte de Cassação da França confirmou essa decisão para um caso individual, afirmando que o motorista não poderia ser considerado um contratado autônomo, pois não tinha sua própria clientela nem definia seus próprios preços. Portanto, ele trabalhava como funcionário da Uber. Os magistrados utilizam testes de aderência, um relatório de informações sobre as condições de trabalho, para definir essa situação, algo comum em outros países da Europa e nos Estados Unidos.

Alemanha: Em dezembro de 2019, trabalhadores de plataformas foram considerados não empregados, pois não eram obrigados a aceitar ordens. No entanto, essa decisão foi posteriormente contestada no Tribunal Superior do Trabalho. A diferença está na forma de contratação dos trabalhadores. Os trabalhadores são empregados por uma companhia terceirizada, contratada pela plataforma.

A legislação do trabalho por aplicativos nos Estados Unidos

A situação nos Estados Unidos é complexa e fragmentada quando se trata da regulamentação do trabalho em plataformas digitais. Os estados têm leis e entendimentos diversos, o que resulta num labirinto jurídico. A Suprema Corte afirma que não existe uma definição única que resolva todos os problemas relacionados aos trabalhadores e às próprias plataformas. Enquanto o estado da Califórnia classifica a Uber como uma empresa de transporte que deve registrar os motoristas como empregados, o Ministério do Trabalho dos Estados Unidos afasta a classificação, alegando a autonomia e independência dos motoristas.

O Ministério do Trabalho utiliza testes de aderência, que são critérios elaborados pela Suprema Corte. Esses critérios levam em conta fatores como o controle exercido pelo empregador, os investimentos feitos pelos trabalhadores e a integração desses profissionais nos negócios da empresa.

Com base nesse teste, os motoristas da Uber, Lyft e outras plataformas não são considerados empregados pelo Ministério do Trabalho americano. Mesmo assim, os recursos e apelações a tribunais superiores persistem.

A confusão é ainda maior quando há leis específicas em vigor. Para contornar a crescente onda de judicialização, muitas plataformas digitais nos Estados Unidos passaram a incluir cláusulas de arbitragem nos contratos dos profissionais, deixando explícita a condição de autônomos e independentes.

A legislação do trabalho por aplicativos na América Central e na América Latina

A Cidade do México, em 2015, e La Paz, na Bolívia, em 2017, foram pioneiras na regulamentação da operação de plataformas digitais intermediárias para o transporte individual. A regulamentação exige contribuições, apólice de seguro e registro em órgãos fiscalizadores.

Desde 2023, o Chile tem uma legislação específica para serviços pagos de transporte de passageiros, incluindo plataformas. A Lei 21.553 foi publicada em 19 de abril e demorou nove meses para ser regulamentada. Os motoristas precisam se registrar no Ministério dos Transportes e Telecomunicações para obter uma autorização especial. O embate com taxistas foi muito intenso antes da regulamentação.

Costa Rica: Em março de 2023, um tribunal na Costa Rica determinou o reconhecimento de vínculo empregatício entre a Uber e os motoristas. Apesar da decisão, o Executivo está promovendo o Projeto de Lei de Transporte Não Coletivo de Pessoas e Plataformas Digitais, com requisitos básicos para os motoristas, incluindo uma “rentabilidade bruta mínima” por quilômetro. A lei exige que os motoristas sejam inscritos como autônomos na Caixa Costarriquenha de Seguridade Social (CCSS) e como contribuintes no Ministério da Fazenda.

No Equador, os aplicativos de transporte enfrentaram uma série de desafios legais para operar. Em Quito e Guayaquil, Uber, DiDi e InDrive operam de maneira regulada. Em março deste ano, a Cabify deixou de prestar o serviço nas principais cidades do país, argumentando que “seu modelo de negócios não reagiu com o mesmo nível de crescimento e rentabilidade da região".

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