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Pesquisa norte-americana mostra que 50% dos jovens se veem como viciados em dispositivos móveis. | Brunno Covello/Gazeta do Povo/Arquivo
Pesquisa norte-americana mostra que 50% dos jovens se veem como viciados em dispositivos móveis.| Foto: Brunno Covello/Gazeta do Povo/Arquivo

É hora de discussão em grupo no reSTART, um centro de reabilitação a cerca de 50 quilômetros de Seattle, nos Estados Unidos. Quatro residentes sentam ao longo da sala da estar e conversam sobre seus problemas com o vício, batendo ansiosamente seus dedos nas pernas e mexendo nos cadarços dos tênis. Um jovem descreve como teve que abandonar os estudos e buscar tratamento para a situação incapacitante que trouxe todos até ali: o uso compulsivo da internet.

É fácil zombar da ideia de vício em internet, que não é oficialmente reconhecido como uma doença nos Estados Unidos. A ciência médica ainda tem que diagnosticar de forma mais precisa o que acontece nos cérebros dos viciados, e não há uma definição clara sobre o que causa esse vício.

Por outro lado, um número crescente de pais e especialistas dizem que a dependência ligada a telas – como as de smartphones e computadores – está se tornando um problema enorme para muitos americanos jovens, fazendo com que eles larguem a escola e se distanciem de suas famílias e amigos, além de sofrerem de uma ansiedade profunda durante ocasiões sociais.

Um estudo recente divulgado pela Common Sense Media, uma organização que trabalha em prol da família, mostra que 59% dos pais acham que seus filhos adolescentes estão viciados em dispositivos móveis – ao mesmo tempo, 50% dos jovens se veem como viciados. O estudo contou com a participação de 1,3 mil pais e filhos.

É evidente, considerando a demanda por centros como o reSTART – que em breve vai lançar um programa para adolescentes, após receber centenas de pedidos dos pais –, que muitos lutam contra um lado obscuro do uso da tecnologia, mesmo que nosso mundo obcecado por dados ainda não seja capaz de quantificar isso. Alguns pais acreditam que esta condição é grave o bastante a ponto de estarem dispostos a pagar dezenas de milhares de dólares para enviar seus filhos para tratamento – algo que os seguros de vida não cobrem.

“Nós somos uma geração de cobaias.”

Alex jovem norte-americano para quem o estímulo dado pelos pais para “mergulhar” no mundo tecnologia é algo do qual eles não tem nenhuma noção das consequências.

Largando a faculdade para jogar games

“Não é algo óbvio como a dependência de uma substância química, mas é muito, muito real”, diz Alex, um jovem de 22 anos que passou cinco dias no reSTART devido a uma história familiar a tantos outros. Ele abandonou a faculdade porque passava os dias jogando games no celular ou usando a internet em vez de estudar ou trabalhar (assim como outros pacientes ouvidos pela reportagem, ele não quis revelar seu nome completo, com medo de ser estigmatizado como um viciado).

Jovens viciados em internet no centro de reabilitação reSTART, numa localidade próxima a Seattle.David Ryder/The Washington Post

Seus pais, conta Alex, sempre o encorajaram a usar tecnologia, sem se darem conta do mal que isso podia lhe causar. Eles estavam apenas tentando incluir seu filho em um mundo mergulhado em tecnologia que não existia quando eles tinham a sua idade. “Nós somos uma geração de cobaias”, diz o jovem.

Segundo especialistas, aqueles que sofrem de vício em internet compartilham muitos sintomas com outros tipos de dependência, em relação a como substâncias químicas são liberadas dentro do cérebro. Os centros de prazer do cérebro acendem assim que são apresentados aos estímulos. Viciados perdem o interesse em outros hobbies ou, algumas vezes, não desenvolvem nenhum outro.

Quando não conseguem se conectar à internet, experimentam sintomas de abstinência como irritabilidade, depressão ou até tremores no corpo. Especialistas dizem que essas pessoas costumam recorrer a locais da internet onde conseguirão se sentir bem-sucedidos de forma rápida, ao subir ao topo do ranking de um game ou conseguir muitas curtidas em um post no Facebook, por exemplo – uma sensação de sucesso que não conseguem ter no mundo real.

Uso precoce

Peter, de 30 anos, sabe muito bem disso. Antes de entrar no programa do reSTART, ele estava desempregado e morando na rua. Ele também combatia o alcoolismo, mas acredita que foi o uso compulsivo de tecnologia que o levou a um dos momentos mais sombrios de sua vida.

“Eu estava totalmente dependente. Me custou relacionamentos”, disse.

O vício em tecnologia de Peter começou quando ele tinha 13 anos, após a morte do pai. Em uma tentativa de lidar com a situação, se retraiu no mundo dos games, jogando do amanhecer até a noite, algumas vezes nem sequer fazendo intervalos para comer ou até mesmo para ir ao banheiro.

Os games lhe ofereceram uma escapatória eufórica da realidade. Ele começou a passar cada vez mais e mais tempo jogando, assistindo videos online e participando de discussões em mídias sociais e fóruns. Peter se afastou do resto do mundo, evitando a dor e a sensação de total inaptidão que o atingiam quando ele tentava encarar seus problemas. Seu estudos foram afetados e sua saúde física piorou porque ele nunca havia aprendido a cozinhar, limpar a casa ou se exercitar – ou, como ele mesmo diz, “viver como um adulto”. O que também prejudicou de forma definitiva o relacionamento com sua mãe.

Hilarie Cash, co-fundadora do reSTART e diretora clínica da instituição, conhece esses comportamentos muito bem. Seu primeiro paciente por vício em internet surgiu em 1994: um homem adulto cuja fixação por games online custou a ele seu casamento. Muitos de seus pacientes mais jovens têm pouco controle sobre seus impulsos e dificuldade em fazer planos para o futuro. Mesmo a ideia de ter que pensar em preparar uma refeição, diz Cash, pode fazer esses pacientes tremerem de medo.

Impasse na literatura médica

Alguns especialistas estão menos propensos a acreditar que estes problemas se referem a uma condição específica. Nos Estados Unidos, não há uma definição do que seja, de fato, vício em internet. Essa situação não é reconhecida no Manual Diagnóstico e Estatístico de Doenças Mentais (DSM, da sigla em inglês), que traz os padrões oficiais para o tratamento de transtornos no país. O esboço de uma definição para o conceito de dependência em video-game está incluída em um apêndice para futuras versões do manual, mas não há um tópico que fale de uso mais geral de tecnologia.

É difícil encontrar, nas pesquisas existentes, o que o vício em internet realmente acarreta ao doente, diz Nancy Petry, uma médica e professora do curso de Medicina da Universidade de Connecticut. Ela participou do comitê da Associação Americana de Psiquiatria que validou os vícios comportamentais que constariam da quinta edição do DSM. Vício em pornografia online, por exemplo, é um indicativo de um vício na internet ou uma doença sexual? Ou se enquadra nas duas situações?

Petry reforça que, mesmo olhando para algo mais específico, como o vício em videogames, pesquisadores ainda precisam definir que aspectos dos games são viciantes. Mais estudos, por exemplo, também são necessários para determinador que comportamentos são exclusivos dos dependentes.

Outros países, por outro lado, já reconhecem oficialmente algumas formas de vício em internet como condições graves. Na Coréia do Sul, o vício em internet tem uma definição formal; lá, estudantes são diagnosticados e enviados para centro de tratamento do governo. Na China, campos militares têm tratado milhões de crianças com essa dependência. O Japão também tem testado “campos de abstinência” para tratar jovens.

Sem uma definição formal nos Estados Unidos do que é dependência em internet, é difícil conseguir cobertura de planos de saúde para pagar por programas de reabilitação intensiva como o reSTART. No centro, o programa custa US$ 25 mil para 45 dias de tratamento, um valor similar ao cobrado por clínicas de dependência química.

Detox tecnológico

Há também debates sobre que tipo de tratamento, neste caso, funciona melhor.

No reSTART, que já tratou mais de 150 pacientes entre 18 e 30 anos, a intenção é ajudar os pacientes a se “desintoxicarem” e ensiná-los habilidades básicas que eles precisarão para balancear de forma adequada o uso da tecnologia. O centro fica em uma casa modificada em uma terreno de cinco acres, cheio de trilhas e animais como galinhas.

Há pouca tecnologia na casa – certamente não há smartphones ou videogames. Mesmo livros de fantasia são confiscados assim que os pacientes entrem no centro, para evitar que eles se percam em seus próprios mundos.

Os residentes – geralmente homens jovens, na maioria encaminhados pelos pais – dormem em camas conjuntas. Eles se exercitam e aprendem sobre como atingir seus objetivos, e como lidar com a ansiedade e a depressão que podem levar à dependência. Os pacientes aprendem como comprar comida em mercados ou lavar roupas; muitos chegam ao local sem nem sequer saber como limpar um banheiro.

A médica Kimberly Young, que fundou um dos primeiros centros para tratamento de dependência em internet, em 1995, na Pennsylvania, trata seus pacientes de uma forma mais tradicional, às vezes aliviando sintomas com medicamentos psiquiátricos. Casas que funcionam como retiros, como no caso do reSTART, podem ser eficazes, diz Young, mas também podem relevar as dificuldades que os pacientes terão ao voltar ao “mundo real”.

“É fácil para alguém que está em uma casa e um ambiente controlado, onde você pode ter bastante ajuda se tiver uma recaída”, afirma a médica. “Mas quão prático isso vai ser depois?”

Há consenso, de qualquer forma, de que os pais têm um papel fundamental em estabelecer hábitos saudáveis para seus filhos, já que o uso de tecnologia, atualmente, não pode ser totalmente evitado.

“Eu digo a eles: vocês são os traficantes”, afirma Young. “Vocês precisam entender que modelos estão sendo para seus filhos”.

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