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A cultura brasileira parece conspirar contra aquilo que disse Aristóteles: “Todos os homens, por natureza, tendem ao saber”. As nossas escolas, ao invés de uma postura reflexiva, conduzem-nos a lugares-comuns
A cultura brasileira parece conspirar contra aquilo que disse Aristóteles: “Todos os homens, por natureza, tendem ao saber”. As nossas escolas, ao invés de uma postura reflexiva, conduzem-nos a lugares-comuns| Foto: Pixabay

A cultura brasileira parece conspirar contra aquilo que disse Aristóteles: “Todos os homens, por natureza, tendem ao saber”.

As nossas escolas, em vez de estimularem uma postura reflexiva, conduzem-nos a lugares-comuns. A indisciplina dos alunos pode até ser um problema visível, mas sua raiz invisível é a falta de paixão e inteligência dos próprios professores, incapazes de despertar os espíritos sonolentos, como fazia Sócrates. Estes parecem resignados à ideia de que o único objetivo no trabalho é receber um salário ao final do mês, ignorando a missão ordenadora que têm em favor das crianças caóticas.

Uma dose de revolta

Esta é a realidade que indigna a personagem do conto “Os desastres de Sofia”, de Clarice Lispector, que será o objeto da minha análise neste texto. A menina, com pouco menos de dez anos, encontra-se ávida por conhecimento, mas se depara com um professor desprovido de paixão — uma experiência comum para muitos brasileiros. Quantos de nós já tiveram um professor que encarasse a educação como uma ferramenta para fortalecer a personalidade e introduzir à vida do espírito? A maioria teve a experiência de vê-la sendo tratada como um mero instrumento para o mercado de trabalho ou para a doutrinação ideológica.

Devido a esse desânimo, Sofia começou a agir mal na sala de aula. Falava muito alto, provocava os colegas, interrompia a lição com piadinhas. Embora suas ações pudessem não ser as mais maduras, uma certa dose de revolta, às vezes, se faz necessária. Geralmente associamos a rebeldia a um comportamento negativo, ou até mesmo a uma patologia esquerdista, porém, diante de um ambiente que não reflete normalidade — ou uma tradição educacional estéril — a rebeldia apenas sugere que o zeitgeist está doente (aquilo que em alemão significa o clima intelectual, sociológico e cultural de uma época).

Nestes casos, a atitude instintiva correta é o posicionamento do indivíduo contra a coletividade — contra a neurose ou estupidez do homem-massa. Por exemplo, se uma família inteira é neurótica, uma criança com inclinações saudáveis não se adaptará à neurose familiar, mas se oporá a ela. O mesmo princípio se aplica à escola: se um gênio frequenta um ambiente que promove a estupidez, ele não se submeterá às provas como um autômato, o que explica por que tantos gênios tiveram dificuldades na escola (como Einstein, Steve Jobs e Churchill. Jobs logo se entediou com o currículo acadêmico e abandonou os estudos universitários depois de apenas seis meses.)

Salvação e perdição

No entanto, o desafio reside em saber direcionar adequadamente nossa raiva justa, especialmente quando somos jovens ou imaturos, o que pode levar ao surgimento de diversas neuroses. No caso de Sofia, ela começou a sentir angústia ao se tornar alvo do ódio de seu professor, mesmo que seu objetivo fosse apenas despertá-lo ao amor à sabedoria. Ela chegou a dizer: “Eu o amava. Não como a mulher que um dia seria, mas como uma criança que tenta desajeitadamente proteger um adulto, com a cólera daqueles que ainda não aprenderam a ser covardes e veem um homem forte com os ombros curvados.” Por que não as costas eretas?

Mas é apenas com a maturidade que conseguimos canalizar nossa raiva em direção a conquistas significativas, ao invés de nos entregarmos a impulsos irracionais que não contribuem para a ordenação dos arredores. É uma verdade que quando respondemos ao mal com insultos, nós mesmos perdemos a razão. É como um chefe que, diante de um funcionário que realiza um péssimo trabalho, o insulta – embora o chefe possa ter motivos legítimos para reclamar, sua reação o coloca em uma posição imoral.

Da mesma forma, a aluna — que poderia justificadamente se queixar de um ambiente intelectual estéril — acaba sendo rotulada como “a vilã” e seu professor como “o santo”. Ela experimentava o caos porque sentia que tinha uma missão maior do que conseguia suportar. Era como uma pessoa inexperiente, cheia de energia, diante de um alpinista paralisado pelo medo do abismo: embora pudesse não ter habilidade técnica, não deveria senão ajudá-lo a descer.

Portanto, no conto, a dinâmica entre professor e aluno não se desdobra conforme o modelo clássico de transmissão e recepção do conhecimento, mas sim como uma relação entre salvação e perdição. A propósito, é isso que as crianças de gênio realmente buscam no professor: uma maneira de se salvarem de si mesmas.

Elas reconhecem em si uma grande energia psíquica, porém têm dificuldade em canalizá-la de forma clara e coesa, ao mesmo tempo em que enfrentam a incapacidade de compreender plenamente a realidade e a complexidade das relações humanas. O professor deveria desempenhar o papel de mestre, guiando a criança no caminho da vida intelectual.

No entanto, no Brasil, é o próprio professor que precisa ser salvo — pois não apenas carece de conhecimento, mas também falta-lhe as sementes da genialidade. Assim, Sofia emerge como o arquétipo do herói-buscador, que busca a mudança tanto para o professor quanto para si mesma. Qual é o objetivo de sua revolta? Ela necessita que o professor abandone sua postura de desânimo e reaja, demonstrando autoridade e sabedoria.

Amar as imperfeições

Lembram do que eu mencionei há alguns parágrafos? Toda revolta saudável precisa ir além da mera queixa verbal e se transformar em realização concreta. Portanto, a revolta de Sofia se torna produtiva quando ela demonstra habilidade em uma atividade específica. O professor propôs uma atividade na qual os alunos deveriam recontar uma história utilizando suas próprias palavras — e ela fez isso melhor do que ninguém.

A narrativa apresentada girava em torno de um homem extremamente pobre que sonhou com a descoberta de um tesouro e, ao acordar, empreendeu uma longa busca por ele, sem nunca encontrá-lo. Exausto, ele retornou à sua modesta casa e, sem ter o que comer, decidiu plantar algo em seu pequeno quintal. Com o tempo, suas plantações prosperaram, ele plantou mais e se tornou rico ao vender suas colheitas.

Sofia compreendeu as expectativas do professor de que os alunos extraíssem uma lição moral da história: que o trabalho árduo é o único caminho para a prosperidade, não os sonhos milagrosos. No entanto, ela optou por divergir e escrever uma moral oposta: que o verdadeiro tesouro reside no interior, onde menos se espera, dentro de nossa própria casa e coração. Ela queria enfatizar que é no ócio intelectual, mais do que no trabalho, que se encontram as recompensas verdadeiramente gratificantes — aquelas que enriquecem a alma. Assim, mesmo partindo livre e despossuída, alguém pode carregar consigo um tesouro no coração.

Contudo, o desfecho foi exatamente o oposto do que Sofia pretendia com suas provocações: o professor admira a capacidade singular de uma criança em encontrar um valor simbólico na história, um significado que escapara ao olhar dos colegas. Seria ela uma mística, uma artista, um gênio?

No entanto, Sofia carece de autoestima para acolher o elogio. Ela interpreta a ação do professor como a de um mendigo que agradece por um prato de comida sem perceber que lhe haviam dado carne estragada. Ela vê aquele homem adulto se deixar levar pelas artimanhas de uma garotinha confusa e sem candura. Na visão de Sofia, o texto não foi produzido com o intuito de atribuir um sentido simbólico, mas sim para provocar revolta. Mas será que o símbolo precisa pedir licença para existir?

Na esfera mística, a prece mais profunda não é aquela que pede algo específico, mas aquela que deixa Deus fazer o que bem quiser, porque Ele conhece nossas necessidades antes mesmo de nós a conhecermos. Naquela esfera, o professor fez Sofia sentir-se como o próprio tesouro disfarçado, aquele que está onde menos se espera. Mesmo que ela fosse considerada imperfeita, quem começa amando o que é imperfeito alcança algo que poucos conseguem alcançar.

Amar o ideal, o perfeito, é fácil demais; porém, amar o real, mesmo em sua imperfeição, é um verdadeiro ato heróico. Já dizia um poeta: “Pelo menos ele tem a vantagem de existir.” E se para amar é necessário aprender a aceitar as imperfeições, também é preciso aprender a ser amado: suportar o sacrifício de sentir que não se é merecedor.

Ninguém é amado verdadeiramente pelo orgulho, por fingir ser perfeito, mas sim pela aceitação das próprias imperfeições. É nessa aceitação que se revela a vulnerabilidade e se constrói a intimidade – a única e possível via para o amor.

Curiosamente, através da menina, que era difícil de amar, o professor foi capaz, com grande compaixão, de vislumbrar a Sabedoria, finalmente, a Realidade Interior. Ele despertou de seu sono letárgico. Enquanto isso, Sofia descobriu que sua revolta não era maldade, mas sim a responsabilidade de suportar um peso maior do que deveria carregar.

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