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Índios tupiniquins dançam em comemoração à demarcação de suas terras em Aracruz, Espírito Santo, em 2007
Índios tupiniquins dançam em comemoração à demarcação de suas terras em Aracruz, Espírito Santo, em 2007| Foto: Valter Campanato / Agência Brasil

Na primeira vez que mencionou a invasão aos Três Poderes, em Brasília, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes se referiu à ação como “tentativa de operação tabajara”. Houve quem chamasse o ataque de “Capitólio tupiniquim”.

Tabajara e tupiniquim são duas tribos indígenas tradicionais. Os tabajaras ainda hoje habitam áreas na Paraíba, no Ceará e no Piauí. É possível que eles mesmos não se nominassem assim: o termo vem do tupi antigo e faz referência à expressão equivalente a “inimigos”. Como conheceram a tribo por intermédio dos tupis, os portugueses adotaram o termo, que permaneceu. E hoje, na linguagem coloquial, ganhou uma conotação pejorativa.

Já os tupiniquins habitavam o sul da Bahia e o norte do Espírito Santo. Foram índios tupiniquins que receberam a esquadra portuguesa de Pedro Álvares Cabral. O nome da tribo deu origem a uma série de expressões que o igualam a “nacional”, como “cinema tupiniquim”, ou “arquitetura tupiniquim”, nem sempre com sentido negativo.

Para a colunista do UOL Tudruá Dorrico, ao dizer "Operação Tabajara", o ministro Alexandre de Moraes utilizou uma "expressão racista". Dorrico acredita que a expressão "Capitólio Tupiniquim" também é racista. Após escrever um texto com a expressão "Operação Tabajara", o também colunista do UOL Reinaldo Azevedo pediu desculpas e a renomeou como "Operação Capivara".

Mas afinal, utilizar estes termos é crime? As irônicas “Organizações Tabajara”, uma criação fictícia do grupo de humoristas Casseta & Planeta que tinha espaço nobre na grade da Rede Globo nos anos 90, são condenáveis? O ministro Alexandre de Moraes poderia ser acusado por prática de racismo?

Racismo individual

Do ponto de vista linguístico, é problemático afirmar que expressões como estas são prova incontestável de racismo estrutural, como se afirma constantemente em uma série de veículos de imprensa, avalia a professora de português e especialista em psicopedagogia Kátia Simone Benedetti. “O racismo estrutural é um conceito que carrega a noção intrínseca de que a estrutura social apresenta aspectos racistas. Por outro lado, se considerarmos o conceito de racismo individual, aquele praticado por indivíduos de forma deliberadamente ofensiva, então essas expressões só se tornariam, de fato, racistas quando usadas em contextos nos quais existe a intenção específica de depreciar os indígenas”.

Em outros contextos cotidianos, ela explica, “essas expressões são usadas como sinônimo de coisas que não funcionam, que não têm organização e/ou planejamento adequado, que são ineficientes”. Ao usá-las, “os falantes não têm em mente a intenção racista de comparar sociedades, povos e suas culturas, mas estão somente lançando mão de expressões que fazem parte do léxico do português brasileiro”.

Faz mais sentido pensar em termos individuais, argumenta a professora. “O conceito de racismo individual faz mais sentido que o de racismo estrutural. O conceito de racismo estrutural torna o racismo uma entidade abstrata, diluída no tecido social. Mas não se pode (e não se deve...) tentar controlar todos os aspectos de uma sociedade, incluindo aí o uso da língua pelos seus falantes”. É quando se consideram expressões individuais, diz ela, é que se pode criar mecanismos legais que ajudem a identificar, coibir e punir o crime.

Inquisição linguística

Thiago Sorrentino, professor do Ibmec que atuou assessor de ministros do Supremo Tribunal Federal por dez anos, concorda. “Numa visão mais tolerante e orgânica da sociedade, a linguagem evolui naturalmente, e os usos das palavras são definidos pelos valores e pelas práticas de cada grupo componente desse corpo social maior. Apenas palavras que incitem o ódio, entendido como ação violenta material ou psicologicamente, seriam proibidas. Os demais usos poderiam ser classificados como deselegância, pedantismo ou gentrificação, mas sem levar à criminalização”.

O problema, diz ele, é que tem ganhado corpo no meio judiciário a ideia de que a linguagem é um instrumento de transformação social. “É um conceito muito parecido com o ‘duplipensar’ sugerido por George Orwell no livro 1984”, diz Sorrentino. “Para essa linha de raciocínio, controlar o modo como as pessoas se referem ao mundo pode limitar ou incentivar pensamentos e condutas”. Para estas pessoas, “a utilização de gentílicos associados a posturas ou condutas consideradas socialmente reprováveis deve ser criminalizada, com o objetivo de extirpar essa associação do próprio pensamento”.

E esta intenção autoritária que vem mudando a prática penal brasileira, que anteriormente entendia que o crime era incitar o ódio com base no preconceito. “Atualmente temos uma inflexão, e cada vez mais os órgãos jurisdicionais estão a chancelar o realismo jurídico-semântico, isto é, o regramento do uso das palavras com consequências penais”, avalia Sorrentino. “A depender do contexto, é provável que vejamos condenações criminais, por racismo ou figuras análogas, com base em isoladas associações entre gentílicos e características tidas como pejorativas”.

Em outras palavras, o realismo jurídico, forma de pensar que entende que o Direito deve ser utilizado para operar mudanças sociais, independentemente dos limites impostos pelo legislador e pelo processo político-democrático, depende essencialmente da idiossincrasia de quem julga. “O aplicador entende estar seguindo a melhor solução, mas o critério para definir essa solução é pessoalíssimo dele, não universal. A melhor figura literária para esse fenômeno é o Grande Inquisidor [personagem contido na obra Os Irmãos Karamazov, de Fiódor Dostoievski], que renega Cristo em sua Segunda Vinda, paradoxalmente em nome do sucesso do cristianismo. Cristo seria contraproducente ao cristianismo, na cabeça do Inquisidor”.

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