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Diante do olhar perplexo de alguns transeuntes, a Praça Santos Andrade virou cenário. Cenário de um teatral simulacro de si mesma.

O evento de abertura do Festival de Teatro de Curitiba promoveu uma singular experiência urbana. Cercou a praça para a realização do seu “coquetel”: uma encenação de feirinha em praça pública, com espetinhos, crepes, empanadas chilenas, algodão doce e pipoca. Do lado de fora do cercado, os habituais usuários da praça, os que circulam por ali diária ou eventualmente, olhavam com estranhamento. “O que está acontecendo?” ou “está cercada mesmo?” eram as perguntas mais comuns. Mas havia também o senhor com seu filho que fotografava para registro e concluía assertivamente, apontando para que o menino visse: “aí estão os donos da praça”. Sabia do que se tratava.

A praça, um espaço social da vida citadina, lugar público por excelência, tinha sido suprimida por algumas horas para dar lugar à sua imitação

Do lado de dentro, a produção cobria as faixas das barraquinhas com tecido preto. Substituía a identidade da barraca, o anúncio da empanada, pelo asséptico, homogêneo e supostamente mais elegante tecido preto. A produtora fazia as vezes de diretora da peça, ensinando ao feirante como deveria fazer seu trabalho, como servir as empanadas que logo chegariam para preencher as cestas de plástico que imitavam vime. A empanada não era a da barraca e o próprio dono da barraca foi contratado para personificar a si mesmo. Distribuídos pela cerca, seguranças privados, figurantes de destaque, garantiam que o palco não se tornasse novamente praça até o fim do evento.

Quem esteve no Teatro Guaíra relatou que nas falas das autoridades e patrocinadores estava sempre presente um tom de agradecimento pela oportunidade de receber e patrocinar tão importante evento cultural. Enquanto isso um ator, o único que talvez não estivesse representando, perguntava ao público se cabia à autoridade agradecer por cumprir seu papel de promover a cultura. Quanto ao agradecimento dos patrocinadores, os holofotes em frente ao teatro que realçavam os destaques da noite, um carro preto e outro laranja, falavam por si só.

Quando saíam do teatro para o cenário de praça, os participantes do evento encaravam Lala Schneider com olhar de espanto e riso nervoso (só agora a expressão do monumento em sua homenagem me fez sentido). Passavam pelo busto e tinham a oportunidade de curtir por alguns minutos uma encenação de praça pública no próprio lugar onde ela, a praça, deveria estar.

A praça, um espaço social da vida citadina, lugar público por excelência, tinha sido suprimida por algumas horas para dar lugar à sua imitação. O que diria um crítico de teatro ao ver a peça que, em vez de refletir e problematizar a realidade pela ficção, em vez de provocar o espectador a pensar sobre a experiência vivida, era a ficção fingindo ser verdade? Afinal, uma praça não é apenas seu lugar físico, mas uma experiência social que implica, necessariamente, a permeabilidade com a cidade. A praça, a feirinha, a calçada são lugares de encontro, de troca, de diversidade e principalmente de acesso livre e permanência democrática.

A praça cercada não é praça. A Santos Andrade, na noite de 24 de março de 2015, virou cenário de mais um tragicômico capítulo da história de Curitiba.

José Ricardo Vargas de Faria é professor do Departamento de Transportes e da pós-graduação em Políticas Públicas da UFPR.
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