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| Foto: Architect of the Capitol/Divulgação

Por estes dias, os brasileiros que chegaram à meia idade estão rememorando as glórias e tragédias de um time que tinha o meio-campo formado por Sócrates, Falcão, Cerezo e Zico. Pois bem, esses homens e mulheres viveram tempo suficiente para se lembrar de um mundo político dividido, literalmente, por um muro. De um lado, cinza, vigiado pela sinistra Stasi, o serviço secreto da Alemanha Oriental. Do outro lado, colorido pelos grafites. Quando ele tombou, no fim do ano de 1989, foi de leste para oeste, o que só confirmava perante a História (com letras maiúsculas, como grafavam os velhos marxistas) que a democracia e a liberdade estavam de um dos lados – daquele no qual a propriedade privada era soberana e o capital fluía pelos mercados.

Passadas quase três décadas, os muros, muitos deles também literais, estão por toda parte, se multiplicam e, ganhando altura e robustez, separam países, povos, bairros e condomínios. O que terá feito desandar o sonho de um mundo sem muros? Do nosso ponto de vista, que entendemos como o de uma esquerda democrática, a resposta começa pela rejeição do antagonismo “igualdade versus liberdade” como síntese da disputa política entre esquerda e direita.

O que dizia, e ainda sustenta, a visão de mundo vencedora na derrubada do Muro de Berlim? A direita liberal apresenta-se como grande defensora da liberdade, diferenciando-se de uma certa esquerda (que não é a única nem a nossa) defendendo que a “desigualdade de resultados” é produto necessário de uma sociedade livre e que o lugar da igualdade nessa ordem social é apenas no ponto de partida – como reconhecimento de dignidade e direitos iguais para todos e na distribuição equitativa de oportunidades.

Os problemas dessa fórmula começam pelo fato de que riqueza e dinheiro não são coisas que pertencem a um âmbito distinto daquele da cidadania e da democracia, pois são, essencialmente, diferenciadores sociais que definem níveis de poder, liberdade de escolha e, portanto, de oportunidades. Por isso, a ideia de que a desigualdade econômica, por maior que seja, não é um problema desde que oportunidades semelhantes estejam ao alcance de todos – ainda que somente nas fases iniciais da vida, na infância e adolescência, digamos – é uma falácia.

A concentração de riqueza se traduz em distorção do processo político, das leis e políticas públicas em favor dos mais ricos

Dinheiro é meio de equivalência e comparação para um universo de diferentes tipos de entes providos de valor social, essencialmente um simbolismo. Moedas, cédulas, cheques ou bits na conta bancária não funcionam como outra coisa senão signos marcadores de diferenças relativas a possibilidades de escolha, oportunidades e poder de realização.

Não há distribuição nem razoavelmente equânime de oportunidades em um sistema que marca a diferença daquilo que é possível (e desejável) por meio de um denominador comum, o dinheiro, num período histórico no qual há uma desigualdade abissal de riqueza. As liberdades do capital e da democracia não compõem um conjunto congruente e basta observar a realidade social e avaliar as evidências empíricas para constatar que, a partir de determinado nível de concentração de riqueza, a dinâmica capitalista de distribuição de possibilidades joga contra o projeto de uma sociedade livre e democrática.

Em 2016, ficamos sabendo, graças a uma pesquisa da Oxfam, que o 1% mais rico do planeta possui tanta riqueza quanto os 99% restantes da população mundial. Ao divulgar o estudo, a ONG britânica fez uma ressalva, dizendo que provavelmente estava subestimando a quantidade de riqueza acumulada no topo da pirâmide, pela dificuldade de obter informações precisas e completas sobre os bens e dinheiro acumulados pelos super-ricos – pondo em evidência outra desigualdade importante, relativa aos níveis de transparência aos quais diferentes grupos socioeconômicos estão submetidos.

No início de 2017, a mídia internacional divulgou outro dado para lá de expressivo sobre a escala da desigualdade global: as oito pessoas mais ricas do mundo possuem tanta riqueza quanto a metade mais pobre da população, 3,8 bilhões de pessoas.

A constatação do grau espantoso da atual concentração mundial de riqueza, por si só, diz pouco sobre os impactos desse fenômeno sobre os sistemas democráticos. Para checar se a nossa hipótese – de que certos níveis de desigualdade econômica e de concentração de renda sabotam a democracia –, nada melhor do que analisar o que vem se passando no país que lidera, econômica e simbolicamente, o capitalismo global.

Aproveitando o ensejo da recente aprovação da reforma trabalhista pelo Senado brasileiro, vejamos as tendências na área das relações de trabalho, remuneração e tributação de pessoas físicas nos Estados Unidos, que tanto inspiram os nossos liberais. Em 2014, um estudo da Harvard Business School informou que na década de 1960 – chamada de “Golden Age” pelos grandes avanços socioeconômicos do país no período –, os dirigentes de grandes empresas americanas ganhavam cerca de 20 vezes mais que os “funcionários médios” das mesmas corporações. Passados 50 anos, na década de 2010, essa diferença foi multiplicada por 15, com o salário do dirigente equivalendo ao de cerca de 300 funcionários. Esses dados dizem respeito a valores brutos. Se levada em conta a tributação, essa disparada da desigualdade de renda fica ainda maior: nos anos 60, a taxa mais alta de tributação – para parte da renda do contribuinte que excedesse o limite mais alto previsto pela legislação – chegou a 91%, enquanto em 2017 é de 39%.

Diante desses dados, não surpreenderia se, nas últimas décadas, o crescimento econômico do país tivesse favorecido, desproporcionalmente, os mais ricos. De fato, de acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), entre 1975 a 2007, considerando apenas o aumento da renda, 47% do crescimento norte-americano ficou com o 1% mais rico, enquanto apenas 20% beneficiaram os 90% mais pobres – contraste que se revelaria ainda mais gigantesco se incluísse os ganhos de capital.

Dos mesmos autores:O Brasil é para amadores (17 de maio de 2017)

Leia também:O problema não é a desigualdade, é a pobreza (artigo de Rodrigo Saraiva Marinho, publicado em 7 de dezembro de 2016)

Mas como essa crescente desigualdade se reflete na capacidade de decisão política e de exercício da liberdade de autodeterminação da sociedade? Não seria ainda possível contar com a democracia política tradicional, com seus sistemas de contrapeso e a eleição direta, como uma forma de contrabalançar e diluir o poder do capital concentrado? Aqui as notícias também não são animadoras.

Há três anos, um grupo de pesquisadores da Universidade de Princeton publicou os resultados de uma pesquisa que avaliou 1.799 propostas parlamentares com impacto sobre políticas públicas votadas no parlamento federal dos EUA, entre 1981 e 2002. Conclusão: a influência da opinião dos eleitores sobre os votos de seus representantes foi tão pequena que os autores da pesquisa a classificaram como “estatisticamente irrelevante”. Já a influência do chamado “big money” – poderosos grupos empresariais e lobbies endinheirados – foi “muito relevante”, com destaque para os grandes doadores de campanhas políticas, cujos interesses e opiniões quase sempre estiveram alinhados com os votos dos congressistas por eles financiados. Evidências que, segundo os autores do estudo, abalam a convicção de que os EUA são uma sociedade democrática. A dinâmica exposta por eles, de fato, revela um sistema cada vez mais oligárquico, justamente o que os fundadores da democracia norte-americana mais quiseram evitar no século 18.

A percepção dessa realidade, na qual a concentração de riqueza se traduz em distorção do processo político, das leis e políticas públicas em favor dos mais ricos – e vice-versa –, já chegou ao americano comum, que considera excessiva a influência do poder econômico na política (uma preocupação que frequentemente aparece nas pesquisas à frente de problemas como desemprego, terrorismo, custos de educação e saúde). Segundo pesquisa do instituto Ipsos publicada em junho de 2016, 78% dos americanos apoiam mudanças legais para reduzir a influência do “big money” na política, 81% avaliam que esse problema nunca foi tão grave quanto é hoje e 93% dizem que as suas visões e interesses não são levados em conta pelo sistema político.

Como resultado, há uma crescente decepção, sobretudo dos jovens, com relação à crescente prevalência da “liberdade do capital” sobre a dos cidadãos, conforme mostrou pesquisa da Universidade de Harvard: em 2016, dos americanos entre 18 e 29 anos de idade, apenas 42% diziam apoiar o capitalismo. Em outra pesquisa, do Colgo, publicada em fevereiro de 2017, jovens de até 30 anos responderam se viam de forma favorável ou desfavorável o capitalismo e o socialismo; 43% se disseram favoráveis ao socialismo e 32%, ao capitalismo.

A denúncia da crescente concentração de renda e riqueza e do aumento da influência do poder econômico sobre o sistema político são as principais bandeiras do político mais popular dos Estados Unidos atualmente, Bernie Sanders, único em atividade no país cujo índice de aprovação é superior a 50% (segundo o site político The Hill). Sanders defende que é preciso restaurar a sensibilidade ética que percebe imoralidade, obscenidade mesmo, a partir de certos níveis de desigualdade, especialmente quando esses níveis não são exceção, mas característica genérica e normalizada do sistema. Uma sensibilidade perdida, que, no auge da expansão e do compartilhamento da prosperidade nos países capitalistas centrais, se expressava politicamente em sistemas tributários mais progressivos, com porcentuais de impostos sobre as empresas e as faixas superiores de renda das pessoas físicas muito mais elevados que os atuais.

A igualdade é um meio indispensável tanto para a realização de justiça quanto para a expansão compartilhada da liberdade

Essa perspectiva, à Bernie Sanders, de uma esquerda democrática, transportada para o Brasil – onde os níveis de desigualdade são ainda maiores que nos EUA –, evidencia a necessidade de fazer reformas (trabalhista, previdenciária, tributária, educacional...) que, em vez de manter privilégios e cobrar os maiores sacrifícios dos já menos providos de riqueza, como está acontecendo hoje, contribuam para a construção de um sistema econômico e político mais equilibrado.

Concordamos com os liberais (os genuínos, democratas) que a igualdade vista como fim em si mesmo é um imperativo uniformizador, disciplinar e valorativamente neutro, pois depende de “em que” ou “para que” se almeja a igualdade (queremos ser igualmente miseráveis, ignorantes, cruéis ou infelizes?).

No plano da realidade social, vemos a igualdade como meio, instrumento. Precisamos de mais igualdade para a liberdade, que significa, politicamente, poder de escolha, decisão, expressão, participação e realização.

Para a esquerda democrática, a igualdade é um meio indispensável tanto para a realização de justiça quanto para a expansão compartilhada da liberdade. Não basta a igualdade abstrata, relativa à dignidade e direitos formalmente proclamados, mas irreconhecível no cotidiano. Sem a igualdade prática, presente nas condições de desenvolvimento dos grupos e dos indivíduos, essa abstração é letra morta.

A disputa ideológica fundamental, portanto, deve ser travada entre concepções de liberdade e entre diferentes visões a respeito dos pressupostos e das condições para a construção de uma sociedade livre.

Trata-se de questão decisiva, premente, pois as ameaças aos modelos democráticos que propiciaram e que alicerçam grandes avanços civilizatórios hoje são reais e crescentes.

Diante do aumento acelerado da desigualdade e da descrença nos sistemas políticos como instrumentos capazes de servir ao bem comum – que resulta, inclusive, em fenômenos de viés autoritário ou mesmo fascista, como a eleição de Donald Trump nos EUA e o movimento pró-Bolsonaro no Brasil –, a luta por mais igualdade deve unir todos os defensores da democracia.

Flavio Lobo, jornalista, assessor e consultor de comunicação, é mestre em Comunicação e Semiótica. Vinicius Prates, doutor em Comunicação e Semiótica, é professor de Jornalismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
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