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Sem dúvida, os eventos das últimas horas no Zimbábue marcaram o início do fim do reinado de Robert Mugabe. No poder há 37 anos, o ditador ficou marcado pelo sofrimento indizível causado ao seu povo, além da alta inflação e da escassez de água, eletricidade e dinheiro. Milhões de pessoas deixaram o país em busca de oportunidades melhores e a maioria dos que ficaram tem de encarar a pobreza e as doenças.

Em uma sequência confusa de eventos na terça e na quarta-feira, os militares tomaram a sede do canal de tevê estatal ZBC e, em uma tentativa de minimizar o que estava acontecendo, disseram que não havia golpe, e estavam apenas em busca dos criminosos que cercavam o presidente.

Eles podem dizer o que for, mas que foi um golpe, foi.

Alguns cidadãos, desesperados por uma mudança – e com razão –, podem achar que esse foi o melhor passo para algum tipo de reforma, mas não é. Há evidências de que a intervenção tenha sido motivada pelo interesse próprio dos generais, e não o benefício da nação, o que torna sombrias as perspectivas de reformas econômicas e democráticas.

A nação ficará à mercê de um grupo altamente imprevisível que raramente agiu em benefício popular

Não é segredo para ninguém que Mugabe e seu partido, o Zanu-PF, são impopulares, mas o exército vai, sem dúvida, continuar governando na mesma linha. Nas sucessivas eleições desde 2000, teve um papel de flagrante retrocesso, manipulando os resultados e incitando a violência em nome do “interesse nacional”. É a mesma instituição que malversou a renda das minas de diamantes em Chiadzwa, há apenas quatro anos, sabotando o que poderia ter sido um momento econômico próspero para todos.

E também se calou quando a ex-vice-presidente Joice Mujuru, muito popular e experiente, foi forçada a deixar o governo, em 2014, por se mostrar interessada em disputar a presidência. Só tomou uma posição quando Emmerson Mnangagwa, considerado o aliado mais antigo de Mugabe, herói dos tempos da libertação, foi destituído pelo próprio presidente este mês. Ele ocupou a posição-chave de ministro da Segurança Nacional de 1980 a 1988 e a pasta da Defesa de 2009 a 2013, antes de ser promovido ao cargo vice-presidencial.

O golpe não passa de consequência de brigas internas no Zanu-PF. Há meses a tensão vinha se acumulando dentro do partido devido à possibilidade, cada vez mais forte, de que Grace, mulher de Mugabe, o sucedesse no lugar de Mnangagwa. A relação especial deste com o exército talvez explique melhor a intervenção. É muita ingenuidade acreditar que qualquer líder que receba o poder nessas circunstâncias brigue por uma reforma democrática.

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Se o exército conseguir assumir o controle do país nas próximas semanas ou meses, que ninguém se engane achando que a política instaurada por Mugabe mude de alguma forma. A perspectiva de uma ocupação militar completa é forte quando há partidos de oposição fragmentados e uma sociedade civil dividida, que também é alvo fácil de manipulações. Na ausência da legitimidade constitucional – vácuo criado por Mugabe –, o exército vai apelar para a opinião pública, já que o cidadão comum se vê desesperado por qualquer líder que lhe prometa uma vida remotamente melhor. O zimbabuense espera por esse momento messiânico há tempos, e essa é a oportunidade de ver mudar a política de Mugabe.

O golpe de quarta-feira parece ser o início da fase em que as Forças Armadas ocuparão o papel principal na política nacional e não se sabe o que vai acontecer se seus interesses vierem a ser ameaçados.

As últimas horas revelaram que Mugabe – o homem que todo mundo achava que permaneceria à testa do governo até morrer – pode ser derrubado; as próximas mostrarão como o exército vai lidar com a provável demissão ou destituição do presidente. Em meio a relatos de que ele se recusa a deixar o cargo e os militares negando que uma delegação foi enviada ao país pelo sul-africano Jacob Zuma, para contenção de danos, as linhas dessa briga já estão definidas. Mnangagwa, que desde então já retornou ao país, deve explorar opções legítimas para assumir a presidência, com o apoio dos soldados.

Para muitos, essa é a melhor opção – uma figura bem conhecida no cargo, inclusive tendo lutado pela independência –, mas só o tempo dirá se vai funcionar. Caso dê certo, Mnangagwa pelo menos deve dirigir o país, em segurança, até as eleições do ano que vem.

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Porém, se o controle da situação se mantiver nas mãos do exército, não aposto em votação. Ele vai precisar de mais tempo para criar um resultado previsível para si mesmo. Isso se aplica se Mugabe entregar o poder a um governo de transição, que precisará de tempo para se estabilizar e se preparar para as eleições. Os militares determinarão e moldarão o ritmo dos acontecimentos enquanto protegem “os interesses nacionais”.

Se o poder for entregue a eles, a nação ficará à mercê de um grupo altamente imprevisível que raramente agiu em benefício popular. É mais que certo, portanto, que sua liderança brinde o povo com um futuro imprevisível. Ainda que possa querer aproveitar a oportunidade para reorganizar o Zanu-PF e só aí anuncie eleições, os problemas do partido não são os problemas do Zimbábue.

A melhor opção para o país no momento é um arranjo transicional com representação multipartidária para estabilizar a situação, com a Comunidade de Desenvolvimento da África Austral confirmando seu apoio para garantir a eleição, o que poderia envolver uma coalizão entre Mujuru, Mngangagwa, o líder da oposição, Morgan Tsvangirai, e o ex-ministro de Assuntos Nacionais Dumiso Dabengwa.

Enquanto os zimbabuenses ao redor do mundo comemoram o momento de alívio, não podemos nos esquecer de que o futuro parece sombrio. O golpe é sempre um caminho retrógrado para a conquista de fins democráticos. Assim que o exército entrar, seus interesses, e não os nossos, serão a prioridade. Qualquer perspectiva de reforma do país depende da devolução do poder aos cidadãos e de o exército respeitar a autoridade civil.

Glen Mpani é especialista em democracia e governança que há 15 anos se dedica à África. É membro da Faculdade Kennedy da Universidade de Harvard.
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