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Privatização das telecomunicações: a queda de um monstro estatal
| Foto: Unsplash

Acho que tenho autoridade para contar a história da telefonia no Brasil, não só porque eu sou um profissional da área, mas porque acompanhei com muita atenção tudo o que aconteceu neste setor ao longo da minha vida. É uma história que precisa ser contada porque a grande parte dos jovens não faz ideia de como era ter um telefone na época de seus pais.

A minha infância seguiu o padrão de quase toda criança, que viu o pai comprar um carro quase duas décadas antes de ter uma linha de telefone. Minha mãe me obrigava a decorar o número de telefone da vizinha, que era uma das poucas pessoas que desfrutavam deste luxo. Mas a tarefa era bem fácil, afinal o número tinha só 3 dígitos! Com isso eu quero mostrar como era precária a conjuntura da época. Com 3 dígitos somente é possível endereçar 1000 números, os quais devem estar ligados à central local. Para se fazer uma ligação interurbana era necessário contatar a telefonista, que então agendava o horário em que seria feita a ligação. Esta era a condição da minha cidade, mas ela se repetia em todo o território nacional.

Este cenário desastroso começou a mudar em 1962, com a criação da Embratel e com o início do processo de estatização do sistema de telecomunicações. Os governos militares alavancaram este processo de estatização e desenvolveram um sentimento de posse na população sobre o sistema de telefonia. Este sentimento de posse foi criado com o uso de propaganda, mas também porque o titular de uma linha telefônica era obrigado a adquirir ações da empresa estatal. Com isso, os telefones eram muito caros e de difícil obtenção. O governo conseguiu resolver o problema de integração do sistema de telefonia com o uso de centrais modernas, que dispensavam a telefonista, mas não conseguiu resolver o problema da demanda reprimida.

Muita coisa mudou em termos de tecnologia, mas nada mudou mais do que a minha compreensão de como o governo é um agente nocivo para administrar um bem público.

Como consequência da falta de linhas telefônicas, por absoluta incompetência do governo em atender a demanda, eram comuns as “bolsas de telefone”, onde uma linha telefônica podia ser alugada por preços da ordem de 300 dólares ao mês. Era um mercado bastante ativo e que propiciava renda aos titulares de linhas telefônicas. Havia gente que possuía várias linhas e se mantinha com esta renda. Não por acaso, a titularidade de uma linha telefônica custava entre 3 e 5 mil dólares, conforme a região.

Uma assinatura de telefone celular atualmente permite o acesso à Internet, com todas as facilidades de informação, comunicação e comércio que ela oferece a um custo mensal de aproximadamente 50 reais (10 dólares). Esta condição em nada se compara ao serviço oferecido pelo monstro estatal, onde o assinante despendia altos valores para ter acesso a uma linha telefônica, a qual só contemplava o serviço de voz, e depois tinha que arcar com uma assinatura mensal de cerca de 40 dólares. Essa assinatura correspondia a uma franquia de 200 pulsos para ligações locais que, em linhas gerais, permitiam falar cerca de 15 minutos por dia. Qualquer excesso neste limite, assim como qualquer ligação interurbana, tinha um custo adicional que era lançado na conta mensal do assinante. Nessa época era comum os assinantes esperarem o horário noturno para fazer suas ligações interurbanas, contando com tarifas menores. Esta era a forma com que o sistema estatal resolvia o problema de saturação nas centrais telefônicas. Oferecia “tarifas reduzidas” para ligações noturnas.

Com a entrada de FHC na Presidência do país em 1995 veio a proposta de privatizar o setor de telecomunicações brasileiro. Eu fui daqueles que ficaram revoltados com esta proposta. Afinal, a minha formação transcorreu em escolas públicas, com toda a retórica dominante sobre o nobre papel do Estado… É curioso que este era um ponto de consenso entre os militares e seus detratores da esquerda. Todos defendiam a total participação do Estado e abominavam a participação do setor privado em uma área tão “estratégica”. Além disso, eu tinha a clara visão de que o setor de telecomunicações brasileiro estava tecnicamente maduro e tinha plenas condições de atender a demanda da população, bastava que as empresas de telefonia estatais fizessem um plano adequado de expansão. Se havia uma imensidão de gente disposta a pagar caro pelo serviço de telefonia, não era possível que o sistema estatal não pudesse atender a esta demanda.

Também é fato que a privatização do setor de telefonia ocorreu com muita corrupção, o que dava razão às críticas da oposição. Eu nunca entendi por que abrir a concorrência para empresas internacionais, dado que o Brasil tinha pleno domínio técnico de toda a tecnologia, mas o que mais me perturbava é que todo aquele patrimônio havia sido construído com dinheiro da população. Qualquer um que ganhasse a concorrência iria querer reaver o capital investido após assumir as empresas, e com isso, a população teria que pagar novamente por algo que já havia pago. A minha forma de pensar não estava de todo errada, mas eu desconhecia a capacidade que o Estado tem de se superar em matéria de incompetência. De qualquer forma, este era um dos argumentos alegados por FHC para privatizar o setor de telecomunicações, de forma que me pareceu justo privatizar logo, pois não se pode esperar uma boa administração de alguém que quer provar sua incompetência.

A privatização do setor de telecomunicações teve início no ano de 1998 com os primeiros leilões de venda de estatais e com a criação da Anatel. Os maiores desafios dessa época não eram apenas a demanda reprimida por linhas telefônicas. Havia todo um setor de telefonia móvel que ainda estava engatinhando e começava surgir uma demanda por linhas digitais. Essa área era especialmente complicada, porque o preço dos serviços oferecidos não tinha nenhuma relação com os custos de instalação e manutenção realizados pela operadora. Eram estabelecidos de forma anacrônica pelos meandros da burocracia estatal. E os preços praticados pelo sistema estatal em relação às linhas digitais eram muito abusivos. Nessa época a Internet já era conhecida, mas seu acesso se dava por linhas analógicas (linhas comuns de telefonia) através de modems que realizavam a conversão dos sinais. A qualidade do acesso era bastante ruim e já se podia prever a necessidade de linhas mais apropriadas (a famosa banda larga).

Eu nunca entendi o motivo da criação da Anatel, uma vez que já havia pessoal técnico qualificado no ministério das comunicações para definir as novas regras do sistema privado. A melhor hipótese que me ocorre é que foi uma solução política para acomodar os caciques que ocupavam altos cargos no sistema estatal e temiam o desemprego. A grande bandeira da privatização era acabar com o monopólio estatal e estabelecer um sistema em que a competitividade entre várias empresas garantisse o oferecimento de uma melhor qualidade de serviço. Veremos que isso demorou bastante para acontecer.

A área de telefonia móvel era certamente a que mais carecia de uma ampla reforma. A situação era tão bizarra que as empresas que detinham o monopólio estatal cobravam uma taxa de cerca de 300 dólares por um serviço que era denominado “habilitação”. Este serviço, nada mais era do que o registro do aparelho na operadora. Eu nem preciso mencionar que o minuto conversado no celular tinha um preço excessivo. Era comum contatar alguém pelo celular e pedir para a pessoa procurar um telefone fixo para dar continuidade à conversa. Em termos tecnológicos, o sistema AMPS, adotado pelas empresas estatais, usava uma tecnologia analógica ultrapassada e estava com sua capacidade esgotada. Dentre os problemas da tecnologia analógica destaca-se a má utilização do espectro de frequências e o consumo exagerado de bateria, o que exigia que os aparelhos tivessem grandes dimensões. De forma acertada, as empresas concorrentes deveriam apresentar propostas que contemplassem sistemas digitais. No estado de São Paulo, por exemplo, a antiga Telesp Celular foi adquirida pela Portugal Telecom (que futuramente se tornaria a Vivo), a qual implantou o sistema CDMA. Como forma de estimular a concorrência, foi criada também a empresa BCP (futuramente adquirida pela Claro), que implantou o sistema TDMA.

É fácil ver que a pretendida concorrência não acontecia de fato, dado que as operadoras utilizavam sistemas distintos. Ou seja, para mudar de operadora era necessário que o usuário abandonasse seu aparelho celular e adquirisse um aparelho da outra operadora, com o inconveniente adicional de ter que mudar de número. Nessa época os aparelhos somente eram comercializados nas lojas da própria operadora e com preços rigorosamente iguais em todas elas, o que permitia que as operadoras ditassem os preços dos aparelhos. Aos clientes não restava muitas opções, a não ser ficarem amarrados à operadora que escolhiam inicialmente.

É preciso esclarecer que a coexistência de operadoras em uma mesma área é feita através da designação de faixas de frequências diferentes para cada uma delas: as tais banda A, banda B, banda C. Não havia razão técnica nem comercial para que elas utilizassem sistemas diferentes. Este foi um erro da Anatel, que parecia mais preocupada em satisfazer os interesses das empresas concorrentes do que o dos consumidores brasileiros. Contudo, também é preciso considerar que naquele momento não havia ainda um sistema de telefonia móvel preponderante em nível global. Em breve tempo os sistemas TDMA e CDMA ficaram obsoletos e cederam lugar ao sistema GSM, que se tornou hegemônico e é utilizado em praticamente todos os países. A evolução da tecnologia GSM teve início na segunda geração, sendo mais conhecida pelas siglas: 2G, 3G, 4G e 5G.

O sistema GSM chegou ao Brasil trazido pela TIM, em 2002, aumentando a diversidade de sistemas de telefonia digital em operação. Mas esta diversidade acabou em poucos anos, porque as demais operadoras migraram seus sistemas para o sistema GSM. Entretanto, também o fato de todas as operadoras usarem o mesmo sistema não estimulou a concorrência entre elas. Ocorre que os aparelhos ainda eram comercializados pelas próprias operadoras, que vendiam os aparelhos “bloqueados” para só funcionar com o seu próprio sinal. Somente em 2008 é que este problema começou a ser solucionado, mas não por determinação da Anatel, como deveria ser o esperado deste órgão regulador. Neste ano, entrou em funcionamento a operadora Oi. Esta empresa percebeu que seria difícil penetrar em um mercado de cartas marcadas, onde os usuários estavam cativos das operadoras por uma adulteração no software de seus aparelhos, e passou a oferecer um serviço de desbloqueio de celulares a todos que tivessem interesse. Fez isso gratuitamente, contratando o serviço de hackers que atendiam o público em quiosques instalados em shopping centers.

Após a entrada da Oi no mercado, ainda levou muito tempo para que chegássemos à situação atual. Os aparelhos celulares ainda eram bastante limitados, não tinham tela e seu uso era restrito à comunicação de voz. Os aparelhos que traziam alguma inovação, como por exemplo, uma câmera fotográfica integrada, também tinham alguns recursos bloqueados pela operadora. Por exemplo, a transferência de arquivos por bluetooth vinha bloqueada, para que o usuário não conseguisse transferir suas fotos para o computador e tivesse que fazê-lo através da operadora, arcando com os elevados custos do serviço. O que realmente causou uma mudança no cenário da telefonia celular foi quando os aparelhos passaram a ser vendidos em lojas de varejo, eliminando a operadora do esquema de vendas. Os consumidores passaram a procurar por aparelhos não bloqueados e a escolher os planos que lhe ofereciam maior vantagem. Surpreendentemente, até a agência reguladora contribui com a mudança neste momento, obrigando as operadoras a criar um sistema de portabilidade numérica, além de regras para a fidelização do assinante, livrando-o das amarras com a operadora.

Nestes 25 anos que se passaram desde a privatização do sistema de telecomunicações muita coisa mudou em termos de tecnologia, mas nada mudou mais do que a minha compreensão de como o governo é um agente nocivo para administrar um bem público. A Anatel desempenhou um papel importante no processo de privatização, mas ela tem um componente estatal que contribuiu muito para retardar o processo de criação de um mercado realmente livre e sadio. Uma das primeiras barbaridades criadas pela Anatel, e que persiste até hoje, foi a inserção do número da operadora na sequência de dígitos das ligações de longa distância. Esta sequência de dígitos tem um formato hierárquico regional para que as centrais telefônicas encaminhem a ligação através da rede. Quem deve definir o caminho das chamadas são os equipamentos de roteamento, não o usuário do sistema. Esta medida foi criada com o pretexto de reduzir os preços das ligações de longa distância através do incentivo à concorrência, mas se mostrou bem infeliz e causou muita confusão.

Quando eu vejo um grupo de jovens defendendo o sistema estatal eu me dou conta de que existe um erro grave na nossa educação, pois eu pensava igual a eles. Passamos 70 anos aplaudindo a “nossa” Petrobras, que até hoje não resolveu o problema da dependência internacional que temos em relação ao petróleo. O submarino nuclear brasileiro, cujo projeto foi anunciado em 1978, ainda não está pronto. Na verdade, sempre esteve “prestes a ser concluído”, que, por óbvio, é o estado atual. As estatais de saneamento básico não dão conta de atender nem a metade da população brasileira. Isso para não falar na infinidade de projetos científicos que são mantidos com dinheiro público nas universidades. Os feudos acadêmicos produzem uma infinidade de artigos irrelevantes, cuja finalidade primeira é obter pontos para a promoção dos autores. Porém, o retorno em termos de benefícios para a população é irrisório. Obviamente, existem exceções elogiáveis, mas a regra é o absoluto desperdício de recursos públicos. O critério de qualidade que mais se aplica nesta área é avaliar os Ministros de Ciência e Tecnologia pela quantidade de dinheiro que destinam ao setor. Esta é a característica mais típica do Estado: avaliar os projetos pela quantidade de dinheiro investido, não pelos resultados obtidos.

José Roberto Gimenez é engenheiro e doutor pela Unicamp.

Conteúdo editado por:Jocelaine Santos
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