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 | Michael George Haddad for The New York Times
| Foto: Michael George Haddad for The New York Times

Nos bastidores, até alguns dos defensores mais ferrenhos de Theresa May admitem que ela é relutante na tomada de decisões, mas, depois da tentativa de assassinato de Sergei Skripal e sua filha, Yulia, a primeira-ministra britânica não teve escolha a não ser fazer alguma coisa.

Skripal, ex-agente duplo russo libertado após um acordo com o Reino Unido em 2010, parece ter sido envenenado com uma substância neurotóxica de fabricação russa enquanto comia com a filha em um restaurante italiano em Salisbury, no sul da Inglaterra. Aliás, aconteceram várias mortes suspeitas de russos no país nos últimos anos, mas as autoridades se recusaram a investigar a maioria por serem consideradas “conflitos domésticos” que, por acaso, aconteceram em Londres. Porém, o envenenamento de Skripal, que tinha fornecido informações valiosas aos britânicos, parece ser diferente; afinal, ele fizera parte de uma troca de espiões. Acreditava-se que estava a salvo de qualquer tipo de retaliação.

Nesta quarta, May anunciou sua decisão: expulsou 23 diplomatas russos que, segundo seu país, podem estar envolvidos com a espionagem. Não foi uma medida insignificante, e a Rússia já mostrou que vai responder à mesma altura, com o mesmo número de expulsões.

A primeira-ministra, entretanto, deveria ter sido mais dura. Se realmente queria ensinar uma lição aos russos, teria de ter anunciado medidas que permitissem que seu governo investigasse os bilhões de dólares investidos pelos oligarcas russos e seus associados em solo britânico, já que alguns têm antecedentes criminais ou de espionagem. Esse tipo de transparência atingiria Vladimir Putin e seus aliados onde dói mais: a conta bancária.

Qualquer um pode investir no Reino Unido através de empresas fantasmas registradas em seus territórios ultramarinos

Até hoje, qualquer um – desde os cartéis mexicanos aos comerciantes de armamentos sauditas, passando pelos tais oligarcas russos (e até magnatas norte-americanos do setor imobiliário) – pode investir no Reino Unido através de empresas fantasmas registradas em seus territórios ultramarinos, como as Ilhas Virgens. Só em Westminster, bairro central londrino, cerca de 10 mil imóveis pertencem a companhias cujos donos não são extensamente conhecidos do governo.

Em 2016, o antecessor de May, David Cameron, estava preparando uma legislação para forçar essas entidades anônimas a revelar seus verdadeiros proprietários, mas perdeu o referendo que defendia a permanência do país na União Europeia e se viu sem poderes. Depois que May assumiu, adiou a introdução da nova lei, alegando a necessidade de mais análises. A crise atual com a Rússia teria sido a oportunidade perfeita de apresentá-la ao Parlamento.

May deve ter suas razões para não levar o projeto adiante; é a primeira-ministra mais fraca a assumir o cargo desde a Segunda Guerra Mundial. O Brexit não só polarizou a opinião pública como também criou divisões amargas em seu gabinete, com vários ministros demonstrando claramente o desejo de tomar seu lugar. Por causa disso, tem de lidar com o relacionamento com os russos com extremo cuidado; um passo em falso e seu governo, já fragilizado, pode desmoronar de vez.

Leia também: A ordem que desmorona (artigo de Demétrio Magnoli, publicado em 29 de dezembro de 2016)

Leia também: Putin e o fim da ordem internacional do pós-Segunda Guerra (artigo de Maristela Basso, publicado em 12 de setembro de 2014)

E ela não se mostra mais forte no cenário mundial: seus aliados europeus estão cansados da linguagem ameaçadora dos ministros britânicos que negociam o Brexit e, a princípio, usaram essa crise para expressar sua frustração. Durante vários dias, o francês Emmanuel Macron se recusou a culpar a Rússia pela tentativa de assassinato, alegando a necessidade de provas mais conclusivas; na quinta, porém, Alemanha, França e os Estados Unidos se reuniram para uma manifestação conjunta de repúdio ao envenenamento.

Putin pode ter percebido a fragilidade de May – e, por isso, resolveu agora se vingar de um homem que considera traidor e, de quebra, causar uma enorme dor de cabeça aos britânicos. A motivação russa é compreensível: sua economia enfrenta sérios problemas estruturais, incluindo uma dependência excessiva e perigosa de petróleo e gás. Ao mesmo tempo, o empresariado está preocupado com o declínio demográfico do país no longo prazo. Putin quer aumentar sua popularidade em termos nacionais mostrando-se poderoso, semeando a discórdia com o Ocidente.

E o próprio Reino Unido se fez alvo fácil para a intriga russa. Justiça seja feita, o problema não é de responsabilidade de May; o governo está colhendo os frutos duvidosos de manter sua capital aberta, desde o fim dos anos 90, ao capital estrangeiro, sem questionar suas origens. O objetivo inicial dessa estratégia permissiva era convencer os investidores de que Londres tinha mais condições de ser o centro financeiro do mundo, e não Nova York. Entre os muitos que tiraram vantagem dessa legislação benevolente estão oligarcas, espiões e gângsteres.

Theresa May precisa reintroduzir no Parlamento a proposta engavetada que força as empresas anônimas a revelar sua fonte de renda

O Reino Unido precisa de um esforço concentrado para identificar a origem de toda essa fabulosa riqueza. Os bilionários russos já deixaram uma marca indelével na capital; alguns são donos de jornais, outros de times de futebol mais bem-sucedidos, enquanto uns possuem propriedades valiosíssimas nas partes mais valorizadas da cidade. Vários deles são parceiros e amigos de Putin. Graças a alguns jornalistas determinados, ficamos sabendo que os filhos de Vladimir Yakunin, chegado do presidente e ex-diretor do sistema férreo russo, vêm comprando casas de luxo em Londres através de empresas fantasma. Esse é atualmente o truque mais popular – a transferência de dinheiro corrupto para os parentes, na tentativa de evitar qualquer tipo de investigação.

Se May está mesmo convencida de que a Rússia está por trás do ataque, então precisa encontrar uma forma de enquadrar os amigos e associados de Putin, o que significa uma transparência inequívoca. Ela deve reintroduzir a proposta engavetada que força as empresas anônimas a revelar sua fonte de renda. E, se qualquer membro do Parlamento se opuser a uma atitude agora, seus motivos se tornarão inegavelmente suspeitos. Agora é a hora de confundir e calar seus críticos, agindo de maneira firme.

Se o Reino Unido souber de onde vêm esses valores, poderá criar sanções mais eficazes contra os comparsas de Putin; a informação também será vantajosa por simplificar a identificação do dinheiro criminoso do mundo todo que é lavado através do mercado imobiliário e financeiro londrino.

Se Moscou é, de fato, responsável pelo envenenamento de Skripal e sua filha, então as tentativas de assassinato parecem ser outra tática de uma estratégia que visa explorar as vulnerabilidades políticas de nossas democracias – só que, ao contrário da boataria e da ingerência nas eleições, pode ser fatal.

Misha Glenny é autor de “McMafia: A journey through the global criminal underworld”, livro que inspirou o filme de mesmo nome.
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