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Dizem que, quando eu era pequeno, a minha visão era perfeita. Aos poucos, muito aos poucos, contudo, a coisa foi piorando. Bem aos pouquinhos mesmo, de tal maneira que eu não consegui perceber que havia algo de errado. Só desconfiei quando achei difícil ler o quadro, na escola. Aí, já no começo da minha adolescência, fui ao oculista e ele me descobriu míope.

Normal: minha mãe era míope, já era coisa de se esperar. Mas, na verdade, eu não sabia, na minha miopia, que a minha visão era imperfeita. Eu achava que todo mundo enxergava exatamente como eu, com as coisas progressivamente se dissolvendo na distância até virarem uma pintura de Monet. Dizem, aliás, que Monet pintava daquele jeito por ser míope. Não sei se é verdade, mas que o sujeito pelo menos vislumbrava algo do mundo com aquela beleza suave que só nós, os míopes, conhecemos, disso eu tenho certeza.

Pois imaginem os senhores que aquele moleque desengonçado, com as pernas e braços compridos demais e espinhas brotando pela cara como orégano numa pizza, montou um dia em sua fiel bicicleta e foi, com o papelzinho na mão, pegar na ótica seus óculos novos. Para miopia e para astigmatismo, com lentes relativamente grossas e uma armação de plástico redonda.

Dizem que Monet pintava daquele jeito por ser míope

Cheguei lá, peguei os óculos e passei por um processo que nunca mais vi repetido, em que o sujeito da ótica ajustou meus óculos às minhas orelhas esquentando as hastes e dobrando-as. Pendurei aquela estranha bicicleta no nariz e saí. Lá fora, olhei para um lado, olhei para outro. Em que mundo estranho teria eu ido parar, no curtíssimo intervalo que passara dentro da ótica?!

As árvores, antes massas verdes com um borrão marrom a sustentá-las, repentinamente ganharam folhas. Muitas folhas, milhares de folhas, todas visíveis ao mesmo tempo! Folhas, para mim, costumavam ser uns detalhes descobertos aos poucos, visíveis tão de perto que não mais se podia ver a árvore inteira de uma só vez.

Do outro lado da rua, outra surpresa: homens, mulheres, bebês e crianças, todo mundo tinha rosto. Enquanto antes eu sabia que uma pessoa era um homem ou uma mulher pelo jeito de se mexer, de repente passou a ser possível ao mesmo tempo ver com detalhes uma pessoa – se o sujeito tem ou não bigode, se a moça tem o cabelo liso ou crespo – e estar longe o bastante dela para poder olhar sem ter intimidade com ela. Muito estranho. Regras novas a descobrir.

Os carros, esses eu descobri terem placas. Não sei até hoje como cheguei em casa, pedalando e lendo as placas dos carros, fazendo a curva e admirando as folhas das árvores.

Mas eu cheguei, e até hoje gosto dos meus óculos. Em casa, todavia, não os uso. Prefiro descansar num mundo mais suave que os duros ângulos das nossas avenidas.

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