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| Foto: Sebastião Moreira/Estadão Conteúdo

O Brasil perdeu, na quarta-feira, não apenas um de seus mais destacados religiosos, mas também uma figura emblemática na defesa dos direitos humanos: dom Paulo Evaristo Arns, cardeal e arcebispo emérito de São Paulo, faleceu aos 95 anos. Apesar de ter manifestado algumas simpatias questionáveis, como aquela por Fidel Castro, é muito mais relevante o enorme impacto de dom Paulo na luta pelos direitos humanos durante a ditadura militar brasileira, deixando um exemplo que merece ser seguido nesses tempos em que ideais antidemocráticos parecem ressurgir de forma mais ou menos sutil.

O padre franciscano, ordenado em 1945, foi nomeado bispo auxiliar de São Paulo em 1966 e, quatro anos depois, o papa Paulo VI o promoveu a arcebispo. O início de sua atividade à frente de uma das principais dioceses brasileiras coincidiu com os “anos de chumbo”, o período mais crítico da ditadura militar iniciada em 1964. Sua denúncia das torturas realizadas nos porões militares começou quase que imediatamente, ao entrar em um presídio paulistano e ver o que havia sido feito ao padre Giulio Vicini e à assistente social Yara Spadini, que tinham sido presos pelo regime. O episódio levou dom Paulo a procurar o ditador Emílio Garrastazu Médici, em Brasília, quando ouviu um recado claro: o lugar do arcebispo era na sacristia.

Foi o trabalho de democratas como o cardeal Arns que criou as condições para o fim da ditadura militar

Se Médici pensava ser capaz de frear o bispo, enganou-se. Arns continuou seu trabalho em defesa dos direitos humanos, denunciando a ditadura no Brasil e no exterior. Aliou-se ao pastor presbiteriano Jaime Wright e ao rabino Henry Sobel e promoveu atos genuinamente revolucionários. Quando, em 1975, Vladimir Herzog foi morto no DOI-Codi, o trio desafiou a versão oficial de suicídio e a Catedral da Sé foi o local escolhido para o ato ecumênico em homenagem ao jornalista, que era judeu. E que não se diga que Arns contava com a batina para se proteger, pois cargos eclesiásticos não colocavam ninguém a salvo naqueles tempos – basta lembrar da perseguição a outro arcebispo, dom Hélder Câmara, em Pernambuco, e o sequestro, em 1976, de dom Adriano Hypólito, então bispo de Nova Iguaçu (RJ): o prelado foi abandonado em um matagal em Jacarepaguá, nu e com o corpo pintado de vermelho; seu carro foi levado até a sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) no Rio e explodido.

Recordar a luta de dom Paulo Evaristo Arns é recuperar a verdade histórica sobre a redemocratização. Se a ditadura caiu, não foi, como se tornou costume dizer hoje, graças a grupos guerrilheiros e terroristas que tinham a intenção de derrubar um autoritarismo para construir outro. Devemos o retorno à democracia a pessoas como dom Paulo, Wright, Sobel, Ulysses Guimarães, Tancredo Neves: esses e outros brasileiros usaram sua influência para, na base do convencimento, colocar a sociedade contra o regime ditatorial e provocar uma transição pacífica para o governo civil.

Esta mensagem democrática faz falta. O cardeal Arns e aqueles que compartilhavam de seu ideal defendiam uma plataforma nobilíssima: a própria democracia, aviltada por um regime autoritário, e os direitos humanos, contra a tortura e as arbitrariedades. Mas perceberam que a nobreza de seus objetivos não justificava o recurso a qualquer meio. Renunciaram à força bruta e ao ataque a direitos alheios, mesmo diante de um adversário disposto a tudo para prevalecer. Foi o trabalho desses democratas que criou as condições para o fim da ditadura militar. Uma mensagem poderosa nessas épocas de invasão de escolas e plenários, de protestos movidos a violência e depredação, enfim, nesses dias em que se tenta impor as próprias ideias na marra.

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