• Carregando...

Felipe Lima

A páscoa de dom Paulo Evaristo Arns deixou não só a Igreja Católica, mas também o Brasil mais pobre. Foram quase cem anos de vida, dentre os quais 32 como bispo, dedicados à causa do Reino de Deus, que é a causa dos pobres, os prediletos filhos seus. Sua morte foi seu último gesto de amor, o momento derradeiro de uma vida feita oblação e entrega na gratuidade, seja como professor de teologia em Petrópolis, seja como pastor à frente da Arquidiocese de São Paulo.

Com sua morte, silenciou uma reconhecida voz dos que não tinham ou não têm voz e vez. Não tinham voz os militantes contra a ditadura militar, que se perpetuou no país por 20 longos anos. E, entre os sem vez, estão os moradores de rua de São Paulo e de todas as ruas de nossas cidades, com quem uma noite dom Paulo foi dormir debaixo de uma ponte, para delatar o cinismo das autoridades que lhes haviam fechado as portas dos centros de acolhida.

Descer à cripta é também subir para a companhia do Senhor da História e desfrutar da plenitude da vida com a legião dos que ele defendeu e apoiou

Deixou-nos o apóstolo dos direitos humanos, dos direitos sociais, dos sem direitos, das minorias invisibilizadas pelo mercado que prescinde dos que não produzem e nem consomem. Partiu o defensor da liberdade de expressão, em pleno regime de exceção. Liberdade também para sua Rádio Nove de Julho, silenciada pela ditadura militar. Ou para seu jornal O São Paulo, costumeiramente editado com páginas em branco, o registro do protesto contra a censura do regime, que teimava em amordaçar a utopia dos libertos do medo que paralisa e acovarda. Partiu o bispo que vendeu o palácio episcopal Pio XII no centro da cidade, por US$ 5 milhões, para construir cerca de mil centros comunitários nas periferias esquecidas da megalópole paulista. Rompendo toda barreira entre sagrado e profano, entre fé e vida, estes centros ora eram igreja, ora escola de alfabetização, de capacitação de mão de obra ou espaço da educação política, da organização e do empoderamento dos excluídos.

Acompanhado pelo povo simples, com quem sempre caminhou e foi solidário, desceu à cripta da Catedral da Sé aquele que desceu tantas vezes aos calabouços da infame ditadura para depois poder inquirir, como testemunha ocular, desde generais, incluídos os do Palácio do Planalto, até os sentinelas das masmorras onde eram torturados ou desaparecidos os presos políticos.

Mas descer à cripta é também subir para a companhia do Senhor da História e desfrutar da plenitude da vida com a legião dos que ele defendeu e apoiou. É subir para o convívio de irmãos no episcopado, homens incomuns da envergadura de dom Aloísio Lorscheider, Dom Luciano Mendes de Almeida, dom Ivo Lorscheiter, dom Antônio Fragoso, dom Tomás Balduíno, dom Waldyr Calheiros, dom Adriano Hipólito, dom José Gomes, entre tantos outros. Consola-nos a presença entre nós de outros bispos de sua geração e perfil como a de dom Pedro Casaldáliga, dom José Maria Pires e dom Erwin Kräutler. Como dom Paulo Evaristo Arns, eles souberam descentrar a Igreja de suas questões internas e levar os cristãos a se sintonizarem com as grandes causas da humanidade, que são a causa do evangelho do Reino de Deus.

Dom Paulo Evaristo Arns, como bom franciscano, nunca se fez notar por seus mais de 50 livros escritos, os 20 prêmios internacionais de reconhecimento por seu trabalho ou os 20 títulos de doutor honoris causa, conferido pelas mais prestigiosas universidades nacionais e internacionais. Como também não ameaçou sua sincera humildade o doutorado obtido na prestigiosa Sorbonne de Paris, onde estudou o pensamento dos grandes pensadores e pastores da Igreja no período patrístico. Foi da academia do Instituto Franciscano de Petrópolis que, em 1966, o papa Paulo VI o chamou para ser bispo auxiliar, arcebispo de São Paulo em 1970 e cardeal em 1973. Tal como dizia Santo Agostinho ao seu povo – “com vocês, sou cristão; para vocês, sou bispo” –, dom Paulo, com o povo brasileiro, foi militante da causa dos excluídos; e, com os cristãos, foi profeta de um mundo onde caibam todos, expressão na intra-história do Reino escatológico definitivo.

Padre Agenor Brighenti é professor de Teologia na PUCPR.
0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]