• Carregando...
 | Leticia Akemi/Gazeta do Povo
| Foto: Leticia Akemi/Gazeta do Povo

O ano novo não teve um começo fácil para o Brasil. As contas públicas estão em frangalhos – tanto o governo federal quanto estados e municípios estão penando para não estourar os gastos. O primeiro puxão de orelha veio logo da agência Standard & Poor’s, que rebaixou a nota de crédito do Brasil e nos colocou ao lado de países como o Vietnã. Entre outras razões, o fato de o Brasil não conseguir aprovar sua reforma da Previdência pesou na avaliação da agência de risco.

Para a economista-chefe da XP Investimento, Zeina Latif, a reforma da Previdência é a espinha dorsal do ajuste fiscal, importante para o governo, e o país já está atrasado por não tomar nenhuma atitude. “Será que a gente vai precisar quebrar de verdade para conseguir fazer reforma?”

Para ela, aprovar algo ainda em 2018 é importante para garantir um fôlego ao próximo presidente. Mas também não dá para ser ‘qualquer coisa’. Uma reforma válida apenas para quem entrar no mercado de trabalho agora seria ruim. A aprovação da idade mínima com regra de transição já é promissora. Porém, deixar o funcionalismo de lado pode significar esquecê-lo por muito tempo. “Todo o discurso do governo nessa nova tentativa de reforma é eliminar os privilégios. Aí na hora que fala que vai aguardar para mexer no funcionalismo meu temor é de que enfraqueça o apelo, a disposição da sociedade por essa reforma que mexe só no INSS”, pondera.

Leia também: Quem ganha e quem perde se a reforma da Previdência for adiada de novo?

Esse processo ainda é o termômetro dos desafios que o próximo presidente vai encarar para retomar o crescimento. “Agora 2019 é a hora da verdade. O próximo presidente tem de vir com agenda forte, ambiciosa e com muita capacidade de articulação política”, aponta.

Zeina esteve em Curitiba para um evento de lançamento da Patrimono Investimentos, em Curitiba. Ela conversou com a Gazeta do Povo sobre a situação fiscal do Brasil, a reforma da Previdência e as expectativas para o próximo presidente. Leia os principais trechos.

Qual sua avaliação do atual momento do Brasil?

O setor público está nesse colapso, que não é só do governo federal – é dos estados, dos municípios, não tem capacidade de fazer investimentos, tem que atrair o setor privado. Atrair o setor privado não é fácil: você tem, por um lado, muita demanda para infraestrutura e serviços no Brasil, mas por outro é um país onde é muito difícil de fazer negócios. Para você atrair esse dinheiro – porque dinheiro na mesa tem – você tem que arrumar o funcionamento dos avanços institucionais que o país precisa. Tudo isso num contexto de uma sociedade que está muito decepcionada, muito desconfiada, não tem salvador da pátria. É uma sociedade com interesses muito pulverizados. Se por um lado a gente tem uma agenda tão difícil politicamente, por outro lado eu vejo o Brasil melhor posicionado para lidar com isso, com esses problemas, do que no passado.

O país começou o ano com o efeito do rebaixamento da nota de crédito na Standard & Poor’s...

Não concordei com a decisão. O que tem de importante foi reafirmar e ressaltar a gravidade da crise fiscal e da urgência dessas medidas – não tem mais espaço para adiar essas agendas. A S&P, no fundo, falou que está rebaixando o Brasil e colocando no grupo do Vietnã porque o Brasil não consegue aprovar a reforma da Previdência e tem riscos eleitorais, que somando tudo, é prenúncio das dificuldades do próximo presidente. Ela toma a natural incerteza do cenário eleitoral como sinal de que a gente vai ter muita dificuldade com essa agenda e eu acho que está cedo para dizer isso. O que eu penso é o seguinte: tem desafios, são enormes, mas por outro lado o país está mais maduro. A gente não pode tomar a incerteza como a certeza que tudo vai dar errado, porque pode dar certo. A incerteza também é para o bem – pode ser que a gente se surpreenda.

No que isso impacta a projeção do Brasil para os próximos anos?

As manifestações de colapso do estado estão aí e podem piorar muito este ano. Tem muitos estados e o próprio governo federal em situação bastante difícil: febre amarela e não tem seringa, estado que não consegue pagar folha de pagamento. É torcer para que não aconteçam catástrofes e coisas do tipo, porque a nossa capacidade de reação vai ser muito limitada. Agora, a gente vai construindo um cenário para que o próximo presidente e a nossa classe política, que é muito pragmática, vão conseguir avançar. A discussão é quem, dentre esses candidatos, vai ter mais capacidade política de entregar uma agenda mais ambiciosa, de forma que o Brasil consiga ter ciclos econômicos daqui para frente tão acentuados. Será que a gente vai precisar quebrar de verdade para conseguir fazer reforma? E só vai fazer reforma quando a coisa vai mal ou teremos mais maturidade para fazermos reformas com mais frequência? Hoje a gente tem mais chance de enxergar um cenário benigno do que no passado. Venezuela a gente não vai virar. O Brasil tem instituições mais sólidas. Mas a questão é essa: quem vai poder entregar mais? Essa resposta a gente não vai ter em 2018, teremos em 2019, quando o futuro presidente tomar posse. Provavelmente não vai ter lua de mel, vai ter de chegar já mostrando a que veio. Acho que podemos nos surpreender positivamente, tanto do ponto de vista de reação da economia quanto de não ter uma volatilidade expressiva. Agora 2019 é a hora da verdade. O próximo presidente tem de vir com agenda forte, ambiciosa e com muita capacidade de articulação política, porque são agendas que não dependem só de boa vontade e de estar conectado. Isso é importante, mas ele terá que ter capacidade de articulação política e diálogo.

Uma das medidas que ajudariam a missão do próximo presidente é a aprovação da reforma da Previdência, mas não há sinais de que ela sairá esse ano. É melhor qualquer reforma do que nenhuma mudança?

Depende. Acho improvável que aconteça, mas digamos que o presidente faça uma reforma da Previdência só mudando as regras para quem ingressar agora no mercado de trabalho. Se for para fazer isso, é melhor não fazer, porque vai ser uma reforma ruim. Agora, se você consegue fazer idade mínima com regra de transição, manter isso, vai ser um salto importante. Eu acho que a dificuldade do governo na aprovação da reforma da Previdência não é exatamente a questão de capacidade de articulação política. É porque o tema é de fato difícil, demorou para esse debate avançar e cair a ficha da sociedade da importância da reforma, que estamos envelhecendo e não dá mais para manter o desenho do passado. E vejo ainda muita resistência do funcionalismo em relação às mudanças, que faz uma pressão muito grande dentro do Congresso. Isso é bastante claro quando a gente olha ao dia seguinte do anúncio do governo de que iria adiara a votação da reforma para depois do Carnaval, no dia seguinte, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, falou que ia ter de flexibilizar adicionalmente as propostas de reforma da Previdência da parte do funcionalismo. Mais recentemente, saiu na imprensa que o governo também discute não mexer com funcionalismo agora, deixar essa parte para o próximo presidente e fazer só o ajuste do INSS. Se caminhou desse jeito, a minha interpretação é de que fato aí é que tem uma grande resistência.

Leia também: O que vai sobrar da reforma da Previdência?

E o discurso do governo para emplacar a reforma é de redução de privilégios...

Todo o discurso do governo nessa nova tentativa de reforma é de uma reforma que não vai impactar as pessoas mais pobres – vai impactar os não-pobres, e, portanto, tem essa questão de justiça e de eliminar os privilégios. Aí na hora que fala que vai aguardar para mexer no funcionalismo – mesmo que mexa só no INSS já seria importante – mas o meu temor é de que ao não mexer no funcionalismo enfraqueça o apelo, a disposição da sociedade por essa reforma que mexe só no INSS. A gente vê um quadro difícil para aprovação. Mesmo que seja só INSS, por mais decepcionante que seja não mexer com o funcionalismo. E essa questão do funcionalismo é urgente no caso dos Estados. Mesmo que isso não aconteça, só fazer o INSS já é importante. Quanto mais a gente avançar agora, mais o próximo presidente vai ter capital político para avançar em outras agendas: a reforma dos militares, a questão do funcionalismo, reforma tributária. Então, se você sobrecarrega demais a missão do próximo, obviamente que poderá ter reveses.

E não fazer nada com a Previdência afeta muito as contas públicas.

A reforma da previdência é a espinha dorsal do ajuste fiscal. Nesse orçamento deficitário, que ainda não temos o número, mas deve ser mais de 2% ou até 2,5% do PIB, no nível federal 57% das despesas são de previdência e tem outras despesas obrigatórias – a gente já está gastando toda a nossa margem. Não é à toa que não tem dinheiro para investir. Independe de regra de ouro, de regra de teto – isso não é saudável para o país: o dinheiro acabou. A reforma da previdência é essencial, e a gente está atrasado. Qualquer país minimamente arrumado estabeleceu a idade mínima há 20 anos – nós tentamos fazer isso e não conseguimos. Eu não estou comparando o Brasil a países desenvolvidos. Estou comparando com países parecidos como a gente. Nossos vizinhos da América Latina já fizeram suas reformas para adequar a idade mínima. É um absurdo o Brasil não ter idade mínima para aposentar. Aliás, tem: para os mais pobres, que se aposentam, a depender da regra, com 60 ou 65 anos. Justamente quem tem mais renda, que é quem se aposenta por tempo de contribuição, não tem idade mínima para aposentar. É um equívoco do ponto de vista fiscal e de equidade.

Quais as opções do governo: enxugar a máquina? Mexer na regra de ouro, como vem sinalizando?

Já passou dessa fase. Claro que uma reforma administrativa seria muito boa, mas já não resolveria. A regra de ouro é uma boa regra: o governo só pode emitir dívida pública para amortizar a própria dívida e para investimento, não pode usar para gastos correntes. Ela fala que esta geração não pode deixar a fatura para a próxima. Quer ter gastos com previdência, funcionalismo, com isso e aquilo? Pois é, vai ter que fazer com carga tributária. Já deixamos um quadro bastante ruim para os nossos jovens de é um país que não cresce e ceifa oportunidades. Ainda vamos deixar mais? Há uma questão concreta que é a seguinte: até que a gente tenha a aprovação de reformas estruturais e elas, de fato, se materializem nos cofres públicos, a gente vai passar por riscos. O número talvez fique menor, mas hoje é algo na casa de R$ 200 bilhões para cumprir a regra em 2019. O próximo presidente já entra correndo o risco de cometer crime fiscal e isso ameaçar o seu mandato. Flexibilizar a regra de ouro, se bem feito, não compromete a solvência de dívida nossa. É um ajuste de curto prazo, em que se põem contrapartidas, limitações, para que isso não gere precedentes. No fundo, a questão é como vai arrumar R$ 200 bilhões ou algo nessa casa em 2019? Não tem mais dinheiro do BNDES, certo? CPMF não tem como – vai cobrir R$ 50 bilhões e olha lá. Mesmo que você faça um conjunto de medidas, é um volume de recursos muito grande num país que tem sérias limitações para aumentar a carga tributária. A opção é diluir por alguns anos, mas com contrapartidas, como não aumentar funcionalismo. E o governo não pode mandar um orçamento já violando a regra. Alguma flexibilização será necessária. A questão é como fazer isso sem abrir precedentes e sinalizar irresponsabilidade fiscal. Simplesmente flexibilizar, sem nenhuma contrapartida, aí seria um tremendo equívoco porque abre um precedente muito ruim.

Este ano vamos escolher o próximo presidente. Há espaço para um debate eleitoral de nível?

Durante a campanha, seria ingenuidade pensar que os candidatos vão querer discutir o seu desenho de reforma da previdência. É ingenuidade achar que teremos esse tipo de conversa. A questão na agenda econômica é não negar o problema, porque isso vai ser questionado. Não há espaço para discurso populista, porque para ser populista é preciso ter dinheiro no bolso. A tendência dos candidatos é de ter uma postura mais responsável, porque a campanha de 2014, em que os problemas foram negados e passou-se uma imagem de um país que não existia, deixou lições. Os equívocos de 2014 deixaram lições para a classe política: tem limite para você negar problemas, porque você corre o risco de ganhar a eleição e aí tem que fazer o ajuste da casa. E como é que faz? Num país que passou por uma crise como essa – em que chefes de família perderam emprego, com crise de segurança, colapso do setor público – a sociedade precisa entender a importância do equilíbrio fiscal par a gente recuperar a capacidade do estado de oferecer serviços públicos. Aí tem que ser o debate, não de ter ou não problema, mas em cima de quais são as propostas de cada um. Qualquer que seja o partido e a orientação do partido, a discussão deve ser em cima das propostas e não de um falando que tem problemas e o outro falando que não tem.

Qual o impacto do mercado para essa eleição? Mesmo antes das candidaturas estarem formalizadas, já há movimentação a cada pesquisa divulgada.

Claro que a volatilidade do mercado ela, se exacerbada, tem consequências na economia. Em 2002 a gente viu um exemplo disso. E no caso de 2002 era um temor muito grande do que seria um governo Lula e o mercado financeiro estava errado. O governo Lula começa seu primeiro mandato aumentado meta de superávit primário, elevando juros e seguindo uma agenda ortodoxa. O mercado estava errado e, lá atrás, aquela volatilidade gerou consequências na economia. Você tem pressão cambial, impacto na taxa de juros, nas finanças das empresas. Eu não vejo isso se repetindo, até porque somos um país mais maduro. Lá, era o temor de uma transição. Aqui, a gente não tem isso. Aqui a discussão não é se a gente vai virar uma Venezuela, qualquer que seja o presidente, mas se a gente vai ter uma agenda mais ou menos ambiciosa. É um país que vem adquirindo alguma maturidade. Nesse aspecto, eu não espero grande volatilidade esse ano, pelo contrário, eu acho que o ano pode surpreender positivamente. O cenário internacional é benigno, a gente está colhendo os frutos do corte de juros, gerando a recuperação cíclica da economia. Não é o que vai fazer o país ficar rico, não é o que vai fazer o país ter crescimento sustentável, mas nesse momento é uma volta cíclica importante. Imagina o que seria a eleição no Brasil se nesse momento a gente estivesse numa confusão de estagflação, que não sabe para onde vai os juros, a inflação, o câmbio; a economia que não enxerga fundo do poço. Não é esse o cenário. A minha preocupação não é 2018. Agora 2019 é o ano da verdade. O time de transição vai ter que trabalhar muito para que o próximo presidente possa entregar algo rapidamente. O atual time econômico é bom e tem muita coisa que vai estar ali na gaveta para o próximo presidente abrir e tocar essa agenda. O país tem condições de dar continuidade essa agenda de ajustes que já começou, com erros aqui e ali, mas tem muitas coisas positivas acontecendo.

O que o próximo presidente vai enfrentar?

O desafio eu não tenho dúvida de que é enorme. O que cai no colo do próximo presidente é a mais grave crise fiscal da nossa história, sem espaço para aumentar a carga tributária, portanto, você tem que cortar gastos. E cortar gastos não é fechar ministério, é rever políticas públicas, cortar despesas. E a sociedade reage – ninguém quer abrir mão de seus benefícios. Quando a gente fala desse estado que é tão inchado no Brasil, é inchado por causa de um monte de políticas públicas que, por sinal, não tem nos feito bem. Ou são injustas socialmente ou atrapalham o crescimento – ou as duas coisas juntas. Não é uma agenda fácil, significa contrariar grupos de interesse e ter de dar notícias duras. Isso junto com os desafios demográficos de um país que envelhece. Isso impacta as contas públicas, a previdência. De um país que tem produtividade muito baixa e até caiu nos anos passados por causa de tantos equívocos da política econômica na gestão anterior.

E quais devem ser as prioridades da agenda para a economia?

Essa agenda fiscal é alicerce: não tem como [não fazer]. Não tem como garantir o equilíbrio macroeconômico, ou seja, inflação bem-comportada, taxa de juros de um dígito, não dá para manter esse quadro que a gente tem hoje se não tiver entrega da agenda fiscal. Tem que entregar alguma coisa e sinalizar que tem mais, porque vai demorar para ter a estabilização da dívida pública. Enquanto a gente não tiver isso, estaremos sujeitos à tensão na macroeconomia, daquelas do final do governo Dilma em que ninguém sabe para onde vai os preços de ativos e aí ninguém faz nada, ninguém investe, ninguém contrata. Essa questão fiscal é alicerce para a gente ter ancoragem de inflação e juros. É claro que quando a gente discute a atuação do estado na economia isso tem impacto no potencial de crescimento do país. A gente está falando de um país que está envelhecendo, o bônus demográfico vai acabar em breve – não é daqui a dez anos, é virando a esquina, estamos falando de 2022 ou 2023. Isso significa que a gente tem que correr com a agenda microeconômica, essa agenda estrutural, para aumentar o potencial de crescimento do país, melhorar o ambiente de negócios, para ir aos poucos abrindo a economia, trazendo investimentos ao país. Para atrair o setor privado, você tem que arrumar esses marcos regulatórios, tem que dar mais segurança para quem quer investir. Dinheiro tem, mas a gente precisa conseguir canalizar. Essas agendas de repensar a atuação do estado na economia são por aí. Cada presidente vai fazer as suas prioridades. Outra pedra fundamental é a reforma tributária. Não é reforma tributária para reduzir carga tributária, porque hoje nós não temos a menor condição de reduzir a carga tributária. O presidente que vier falando que vai reduzir carga tributária vai ter que dizer como é que ele vai fazer isso. Se você tiver uma simplificação, tornar o sistema mais racional, já é um golaço. Reduzir essa complexidade, a insegurança jurídica que existe associada a carga tributária, dar mais segurança ao empresário já tem impacto de impulsionar crescimento de fato.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]