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“O Liberalismo antigo e moderno”: um passeio de Merquior pela jornada de uma ideia
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Por Lucas Berlanza, para o Instituto Liberal

Admirado por ninguém menos que Lévi Strauss como “um dos espíritos mais vivos e melhor informados do nosso tempo”, o professor José Guilherme Merquior (1941-1991), aluno do sociólogo Raymond Aron, era uma mente profundamente lúcida e aberta ao diálogo filosófico e cultural. Seu trabalho final, O Liberalismo antigo e moderno, é um passeio pela história do pensamento liberal, reunindo uma constelação de grandes nomes e percorrendo alguns séculos de elaborações e discussões vicejantes.

Antes de ler a obra de Merquior, é preciso ter algumas noções em consideração. Em primeiro lugar, que Merquior estabelece uma diferença entre liberalismo eliberismo.  Em seu linguajar, este último, o “liberismo”, significa “liberdade econômica”, isto é, reduz-se a abordar a retração do intervencionismo estatal no mercado, podendo apresentar-se, por exemplo, sob um governo ditatorial. Já o liberalismo propriamente dito, na visão de Merquior, é “um fenômeno histórico com muitos aspectos” e “dificilmente pode ser definido”. Ao contrário de outras correntes de pensamento, o liberalismo foi e é uma longa elaboração, com diversas subdivisões, e melhor seria descrever todas elas e acompanhar seus desdobramentos que selecionar uma única e tomá-la por definição absoluta do conjunto. Em linhas gerais, porém, Merquior encampa sob esse rótulo uma série vasta de desdobramentos práticos e ideológicos de um conjunto de ideias originárias, basicamente, do século XVIII, cujo esforço tem sido enaltecer a dimensão individual e resguardá-la de avanços do Estado. Nessa jornada, o liberalismo foi, a cada etapa, avançando em determinadas direções e recuando em outras, bem como os pensadores de uma mesma escola apresentaram nuances e divergências muitas vezes suficientes para se rechaçarem mutuamente. O pensamento de Merquior a respeito, portanto, é incompatível com uma visão monolítica que enxergue o liberalismo como algo sectário que possui uma identidade única. Em realidade, as escolas são muitas, e o propósito do livro é justamente elencá-las e dar voz a elas.

José Guilherme Merquior

Por outro lado, Merquior não é, nem poderia ser, um observador neutro. Ele tem uma posição dentro desse cenário, que é a do que ele chamava de “liberalismo social”, enquanto outros chamariam de “social-liberalismo”. Merquior possui algumas referências simbólicas de viés à esquerda, apresentando certo apelo estético afeito ao democratismo e ao igualitarismo em intensidades com que não nos afinizaríamos. Em prefácio para a obra de seu amigo, quase tão imperdível quanto o livro em si, ninguém menos que Roberto Campos diz que, por exemplo, as linhas de Merquior foram “generosas demais, no tocante a Keynes, e generosas de menos no tocante aHayek”. Relacionando-se, no entanto, com figuras simpáticas a quase todas as escolas que descreve, Merquior é, ele mesmo, um convite para se despir de preconceitos e conhecer todos os matizes e lutas das ideias da liberdade.

Inglaterra, França e Alemanha

Antes de abordar as escolas liberais, Merquior subdivide três grandes blocos de pensamento acerca da liberdade baseados nos países em que foram mais característicos – sem que se possa considerar que fossem absolutos. Tudo no campo do liberalismo se sofistica a partir dos conceitos aí desenvolvidos.

A teoria da liberdade de origem inglesa, de importância capital no nascimento de qualquer coisa que merecesse o nome de liberalismo, indo “de Hobbes e Locke a Bentham e Mill, vê a liberdade como ausência de coerção, ou (na famosa opinião de Hobbes) a ausência de obstáculos externos. Seria o conceito clássico de “liberdade negativa”. A vertente francesa, por sua vez, em vez do também francês Montesquieu, é marcada pela influência de Rousseau, que, na interpretação de Merquior, também era, sob vários aspectos, um individualista – apesar de sua crítica conhecida à propriedade privada. No entanto, precursor do romantismo, ele colocava a “liberdade política” bem acima da “autonomia civil”. Queria “despatrimonializar o poder” e destruir os privilégios, empossando “o povo”, mas não acrescentava limites nem valorizava os pesos e contrapesos necessários. Substituía, assim, a tirania pelo “despotismo democrático”, ainda que inconscientemente – em seu nome, mesmo que sem sua aprovação, foram produzidos os massacres do jacobinismo francês, e brotaram as raízes da esquerda moderna. Finalmente, existe a vertente alemã,com destaque para Humboldt e Kant, preocupada com “a formação da personalidade e aperfeiçoamento pessoal”. Os alemães valorizavam, muito além da liberdade política francesa e da liberdade de coerção inglesa, o “desdobramento do potencial humano”, voltando-se para a independência e a “realização pessoal”, a partir do que se chamou “autotelia”.

As categorias históricas do pensamento liberal, segundo Merquior

John Locke

A jornada de Merquior começa com o que ele chama de “protoliberalismo”. Aí, acontece o alvorecer de ideias que posteriormente se tornariam o arcabouço teórico dos chamados liberais clássicos. A partir de fontes filosóficas e institucionais, como o Iluminismo e a prevalência, em maior ou menor grau, da razão e da ideia de progresso, esse alvorecer foi avançando numa direção mais ou menos iconoclasta, mais ou menos desvinculada da tradição e da penetração da ortodoxia religiosa na organização do Estado. Esse protoliberalismo se traduziria, fundamentalmente, na defesa de um sistema constitucionalista e de um certo nível de liberdade religiosa e econômica. Isto é, era um fenômeno essencialmente inglês do século XVIII, sintetizado em “uma forma de governo fundada em poder monárquico limitado e num bom grau de liberdade civil e religiosa”. Aí, estava baseado nas ideias do filósofo John Locke e suas teorias contratualistas, enraizadas no direito natural, e constituiu-se no movimento doWhiggismo, o partido que se opôs aos “tories”, com uma visão mais interessada na manutenção dos privilégios de uma elite agrária, e de uma política protecionista no setor.

A partir daí, Merquior delineia a influência do romantismo e de vários elementos daquele tempo para a consolidação do liberalismo clássico, que “pode ser toscamente caracterizado como um corpo de formulações teóricas que defendem um Estado constitucional (ou seja, uma autoridade nacional central com poderes bem definidos e limitados e um bom grau de controle pelos governados) e uma ampla margem de liberdade civil”, consistindo em três elementos básicos: “a teoria dos direitos humanos; constitucionalismo; e ‘economia clássica’ (grosso modo, o ramo de conhecimento inaugurado por Adam Smith, sistematizado por David Ricardo e ilustrado, entre outros escritores, por Mill)”.

Adam Smith

Essas matrizes originais, porém, já desde aquele ciclo histórico que recebeu esse nome, eram bastante plurais, em seus posicionamentos e em suas temáticas. Merquior condensa algumas das línguas faladas pelos formadores do liberalismo clássico, como a dos “direitos naturais (Locke e Paine), do humanismo cívico (Jefferson e Mazzini), da história por estágios (Smith e Constant), do utilitarismo (Bentham e Mill) e da sociologia histórica (Tocqueville)”, discursos com os quais o liberalismo clássico passou a abraçar a democracia e a rejeição de visões orgânicas da sociedade, que enfatizassem os aspectos culturais e levassem a uma unicidade de esquemas de valores em uma comunidade. Observando o pensamento dos personagens dessa história, fica claro que isso variou em dosagem e aplicação, mas a abertura a algum nível de pluralismo dentro do corpo social e dos rituais institucionais definiu o liberalismo e seu casamento com a democracia, na formação da ideologia liberal-democrática. O liberalismo assumiu, muitas vezes, um aspecto mais ativista, do que Merquior chama de “evangelismo leigo”, o que o afastou do velho Whiggismo, mais próximo ao pensamento conservador, e que abrigava a noção de uma representação limitada.

edmund burke

Isso deu espaço para que surgisse oliberalismo conservador. Merquior, nessa parte, começa descrevendo o “conservadorismo liberal”, o que, em seus termos, seria basicamente o “conservadorismo britânico”, baseado em Edmund Burke, que, ao contrário do conservadorismo continental europeu, embora pregasse o organicismo, o tradicionalismo e o ceticismo político – fosse, portanto, alheio à estética “ativista” reformista -, adotava essas posições como “flexíveis”, já que “as tradições não impedem a mudança adaptativa, e o organicismo não exclui a modificação parcelada das instituições e procedimentos”. Burke era, na definição de Merquior, “politicamente liberal” e “economicamente moderno”, mas era um whig, e não um liberal clássico típico, abraçando importante grau de organicismo na sociedade e promovendo uma “reavaliação romântica da fé e da cavalaria medievais”. Alguns dos pensadores que absorveram as ideias liberais, desde 1830 a 1930, fossem conscientemente de “idioma burkeano”, como Macaulay, Maine, Alberdi, Renan e Acton; fossem de linguajar “darwinista/evolucionista” social, como Spencer, ou historicistas, como Ortega y Gasset, mantiveram traços básicos do liberalismo, mas não conseguiram abraçar a maré democrática, demonstrando “dissabor pela política de massa ou cultura igualitária”.

A esses, Merquior designa “liberais-conservadores”, tendo por critério, basicamente, seus pendores elitistas e aristocráticos (sem que isso seja, necessariamente, pejorativo, a depender de quem julga). A meu ver pessoal, como simpatizo com essa corrente, seria melhor falar em uma aversão caracterizada ao “democratismo”, que põe, de fato, em seus excessos, muitas vezes em risco os padrões e as instituições ao apelar, na retórica rousseauniana, ao “soberano poder do povo” como um supremo valor em si – Rousseau, aliás, que embora não sem críticas, é tratado com bastante respeito por Merquior, como vimos. O autor inclui aqui alguns pensadores que descambaram para concepções tão demasiado nacionalistas e imperialistas, na era de Weber, especialmente na Alemanha, que suas composições ideológicas seriam mais adequadamente chamadas, para ele, de semiliberalismos.

John Stuart Mill

A seguir, Merquior invade o campo em que se sente mais confortável: o novo liberalismo,liberalismo social ou “liberalismo de esquerda”. Os novos liberais queriam “implementar o potencial para o desenvolvimento do indivíduo que fora caro a Mill em seguimento a Humboldt, e ao fazê-lo pensaram no direito e no Estado como instituições habilitadoras”, levando-os além do “Estado minimalista”. Livraram-se do que Merquior chamava de “estatofobia liberal”, mas fizeram isso caminhando para a esquerda, acreditando que o Estado poderia, em um nível além do que aceitariam liberais clássicos ou liberais conservadores, agir no sentido de emancipar os indivíduos para a disputa da vida. Acreditam que o Estado deveria ser um agente facilitador,  cuja ação deveria “consistir na ‘remoção de obstáculos’ ao autodesenvolvimento humano”. Suas inspirações já bebem mais da teoria de liberdade alemã que da inglesa, com pitadas da origem francesa. Na França, esse “liberalismo de esquerda” aparece sob a forma de um republicanismo militante.

Os sociais-liberais encorajariam “arranjos de segurança social” mais apurados, muitos entre eles defendiam ardorosamente o sufrágio universal e um de seus patriarcas na fase clássica, o próprio Mill, era um militante feminista. Estavam ancorados no universo “progressista” em política, mas não chegavam a ter uma concepção estatizante de economia, ou autoritária em política, própria dos socialistas e sociais-democratas de seu tempo. Sempre mantinham ao menos uma valorização temática da dimensão individual. Um dos autores que Merquior situa nesse campo, John Hobson, por exemplo, se afastou dos socialistas fabianos (os Webb e Shaw) quando estes defenderam políticas imperialistas na África do Sul. John Dewey, John Rawls, Norberto Bobbio e outros autores que caminharam na direção da esquerda são mencionados aqui.

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O nome que mais poderia chocar a maioria dos nossos leitores seria o de John Maynard Keynes, o célebre economista do intervencionismo estatal no século XX. Para Merquior, a origem de Keynes não estaria no socialismo, mas nessa tradição de um “liberalismo de esquerda”, que não seguia tampouco os socialistas fabianos em sua condenação do capitalismo, mas ostentava a “liberdade positiva” acima da negativa e acreditava que o Estado deveria agir muito mais do que liberais clássicos e conservadores apreciariam. Em uma declaração excessivamente elogiosa, Merquior considera que Keynes, querendo salvar o capitalismo, aplicou um “golpe de morte no liberismo ortodoxo”, o que é profundamente discutível. Outro autor que tem a mesma opinião sobre Keynes é o brasileiro Antônio Paim, também historiador do pensamento liberal.

Friedrich Hayek

Finalmente, passando pelo filósofo Karl Popper e sua crítica ao historicismo, à ideia de que podemos definir leis rígidas para compreender a dinâmica da História, sustentando a “sociedade aberta”, Merquior analisa o que chama de neoliberismos, que seriam correntes que retomaram com vigor a liberdade econômica baqueada pelo predomínio keynesiano, recorrendo aqui à Escola Austríaca, à Escola de Chicago de Milton Friedman e à teoria da Escolha Pública de Buchanan. É aqui que ele fala de Ludwig von Mises e Friedrich Hayek, os autores que nortearam a maioria dos fundadores do Instituto Liberal e o prefaciador do seu livro, Roberto Campos, bem como ainda inspiram o movimento liberal brasileiro na atualidade com protagonismo em relação aos demais. Roberto Campos diz que Merquior evoluiu, ao longo da vida, para uma convicção “liberista” cada vez maior; aqui, ele trata Mises com alguma deferência, como alguém que “forneceu munição essencial contra os modismos que favoreciam uma super-regulamentação da economia”, e seu professor Eugen von Bohm-Bawerk como “um formidável crítico de Marx”, mas não foi muito gentil com Hayek. Merquior reconhece em Hayek alguém com simpatias por uma concepção institucional de matiz burkeano, com o que ele seria, a despeito de Merquior reconhecer muitos méritos em sua análise do mercado, um liberal-conservador dos tempos modernos, com reservas ao espírito democratista e aos “sonhos igualitários”. Como vimos, os humores de Merquior não são tão afins a esse espírito. Entre o liberalismo clássico, o liberalismo conservador e o liberalismo social, considerados assim como três categorias estanques, parece-nos notório que ele preferiria o terceiro.

Murray Rothbard

O discípulo americano de Mises, Rothbard, é mencionado muito rapidamente como “o mais intransigente defensor do liberismo com fundamentos libertários”. Normalmente, nós usamos, os brasileiros de hoje e os americanos, a expressão libertarianismo, quer como sinônimo de liberalismo clássico, quer como referência a variantes mais radicais que surgiram no século XX, baseadas no pensamento de Mises e do próprio Rothbard. Com o pouco espaço aí reservado, que a maior parte do movimento libertário nacional pode estranhar, Merquior deixa de citar uma última categoria de pensamento, o anarco-liberalismo, ou liberalismo anarquista, que promove um casamento entre o liberalismo e o anarquismo, elevando o libertarianismo ao extremo da anulação do Estado e da conversão de todas as esferas da sociedade em manifestações do setor privado. O próprio Rothbard se faz suceder, hoje, por nomes como David Friedman neste grupo.  Também não é dado destaque ao Objetivismo, a filosofia do egoísmo concebida pela russa Ayn Rand.

Convivendo com tensões internas diversificadas, desde a ruptura com o absolutismo até a modernidade, o pensamento liberal é, para Merquior, bastante plural, embora abrigue núcleos de ideias que fazem dele alguma coisa. Para penetrar o sentido dessa “alguma coisa”, acreditamos que, entre discordâncias talvez inevitáveis e estupefações certamente justificáveis diante de um poder de organização de informações tão extraordinário, a obra magna de Merquior deve continuar oferecendo excelente panorama para o estudante do liberalismo.

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