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Depois de três anos de depressão, Kharla Livingston, que foi doada para franceses quando era bebê, decidiu voltar ao Brasil para tentar reencontrar os pais | Marcelo Elias/ Gazeta do Povo
Depois de três anos de depressão, Kharla Livingston, que foi doada para franceses quando era bebê, decidiu voltar ao Brasil para tentar reencontrar os pais| Foto: Marcelo Elias/ Gazeta do Povo

Depoimento

Kharla Livingston, que procura os pais biológicos em Curitiba.

"Não sei se fui roubada"

Nasci em Curitiba, por volta de 1.º de julho de 1981. Estou procurando meus pais biológicos. É difícil, pois não tenho muitas informações, já que foi uma adoção ilegal.

Disseram-me que minha mãe biológica era muito jovem (nascida entre 1962 e 1969), e, certamente, morava em uma fazenda no Paraná. Meu pai biológico era um homem notável, casado e com três filhos. Tiveram um relacionamento na década de 80 e minha mãe biológica engravidou. Ela teve que esconder sua gravidez e procurar por uma solução.

Aparentemente, minha mãe biológica teve a ajuda de um padre, que disse que ela poderia deixar o bebê para adoção. Ela pode ter se hospedado em uma casa para mães jovens solteiras.

O parto ocorreu entre o fim de junho e o começo de julho, por cesariana. Fui deixada com uma enfermeira e levada em um Fusca azul de Curitiba para Itu (SP) no começo de julho, na casa de uma senhora chamada Beni. Depois, fui levada para a França. Não sei se fui roubada de minha mãe biológica.

Tenho a sensação de que este episódio na vida dela foi muito difícil, então gostaria de encontrá-la para dizer "você foi muito corajosa, não se sinta culpada. Por favor, vamos nos encontrar, eu adoraria lhe contar minha história." Também gostaria de conhecer meu pai biológico, para ver as semelhanças que temos, já que nunca consegui ver meus traços em outras pessoas. Acredito que eles tenham uma nova família, então, serei discreta se eles não quiserem que eu interfira, é claro.

Curitiba já abrigou grupo de traficantes de crianças

Na década de 1980, Curitiba ficou famosa por abrigar um das maiores grupos de tráfico de crianças do país. Arlete Hilu era considerada a principal responsável pela quadrilha e chegou a ser presa na década de 80.

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"Eu quero encontrar meus pais biológicos para encerrar meus sentimentos de culpa e tristeza." É com esse desejo que a curitibana Kharla Livingston tenta rever a família biológica 30 anos depois de seu nascimento. Em 2003 ela descobriu que foi vítima de uma adoção ilegal em Curitiba na década de 80 e desde então procura os pais brasileiros, sem nem ao menos saber se foi abandonada pela mãe ou sequestrada. A história de Kharla é um exemplo do drama de famílias que são separadas, ou pela adoção ilegal ou pelo desaparecimento e sequestro de crianças. Para especialistas, o problema seria amenizado se o Brasil criasse um banco de DNA, onde interessados fariam cadastro voluntariamente.

A adoção ilegal de Kharla começou quando os pais franceses vieram ao Brasil em 1981 em busca de um filho, sabendo que o processo seria realizado de forma ilícita. O grande problema é que a família adotiva da jovem se nega a contar detalhes sobre a ação. Tudo o que ela conseguiu descobrir é que foi levada até São Paulo, de onde seguiu para a França. Depois de passar por uma depressão durante três anos, ela decidiu vir ao Brasil em busca de pistas sobre a mãe. Agora, planeja escrever um livro e realizar uma exposição fotográfica sobre adoção. Ela não quer mostrar o rosto porque está investigando as pessoas que intermediaram o processo para seus pais e tem medo de sofrer alguma represália.

Durante boa parte da história brasileira a adoção ilegal foi um problema. No século passado a prática era comum entre famílias ricas, que tinham os "filhos de criação". Na própria legislação o tema era tratado de maneira omissa. Somente após a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), há 21 anos, essa situação começou a mudar. Em 2009 o ECA sofreu uma alteração, o que deixou a lei mais rigorosa e incentivou a convivência com a família biológica extensa. A adoção internacional passou a ser a última alternativa.

Não há estimativas sobre quantas crianças brasileiras foram adotadas ilegalmente. Também não se sabe quantos meninos e meninas foram levados para fora do país, mas somente uma quadrilha que atuava na Região Sul do Brasil chegou a levar para o exterior mais de 3 mil bebês (leia ao lado).

Alternativa

O banco de DNA é visto como uma alternativa porque ajudaria na identificação em diversas situações. A ferramenta poderia ser útil em casos de adoções ilegais e crianças desaparecidas. As pessoas que desejam encontrar familiares se cadastrariam voluntariamente no banco de dados. A idéia já foi implantada na Argentina, onde pais e filhos buscam se reencontrar após os seqüestros promovidos por militares durante a ditadura que atingiu o país no final da década de 60.

As Mães de Maio, argentinas que se reúnem semanalmente para protestar contra o sumiço dos filhos durante a ditadura no país, inspiraram um movimento semelhante no Brasil. Ivanise Esperidião da Silva foi uma das fundadoras da organização chamada Mães da Sé, depois que sua filha desapareceu, em 1995. Ela conta que em 2004 a Uni­ver­si­dade de São Paulo implantou um banco de dados no estado com resultados positivos. O projeto é pioneiro no país e funciona em parceria com o governo do estado. Ao notificar um desaparecimento, a família já pode fazer o cadastramento.

Promotor do Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente (Caopca) do Ministério Público do Paraná, Murillo Digiácomo afirma que o banco de DNA seria uma forma de operacionalizar o direito garantido na legislação de crianças adotadas conhecerem seu passado biológico após completarem 18 anos. Hoje, por exemplo, o Judiciário deve manter o processo para consultas futuras. "As autoridades não podem negligenciar a paternidade e maternidade biológica. É preciso investir em políticas de apoio à família."

O médico geneticista e professor da Universidade Federal do Paraná Rui Pilotto afirma que o banco de DNA teria um custo viável e poderia ser implantado da mesma forma como o banco que reúne doadores de medula óssea. Mas ele alerta que seria necessário suporte psicológico, já que em alguns casos o reencontro pode ser doloroso.

Interatividade

O que pode ser feito para evitar o tráfico de crianças brasileiras para outros países?

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