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Às vezes acontece, e não é o chato da praça fazendo graça com os passantes: você está tranquilo andando na calçada meio vazia e percebe que, súbito, tem alguém ao seu lado andando exatamente no mesmo ritmo, com as mesmas passadas e na mesma direção. Você disfarça o olhar, confere se é homem ou mulher, se é conhecido (nunca é) e então, discretamente, muda o passo, a pernada mais curta e um tantinho mais lenta (para não dar na vista) e deixa o breve fantasma ir adiante. Por quê? Porque é esquisito você andar lado a lado, no mesmo impulso, com um completo desconhecido que o acaso jogou ao seu lado e ao deus-dará das calçadas. Não pelo medo do assalto ou do assédio (embora esse ataque eventual também seja um temor verdadeiro, sempre mais ou menos presente) – é o medo do duplo, da sombra, de alguém igual, de um outro que respira o mesmo ar e imita cada gesto seu. Há um desespero de liberdade que repudia aquele intruso mental que desembarcou do nada para fazer sombra aos passos que você dá. É preciso livrar-se dele.

Às vezes você muda a tática. Como ambos estão lentos e absortos – o mesmo movimento de braços, direita, esquerda, direita, esquerda – você percebe e resolve acelerar, dando um discreto arranque com um jeitão de quem procura urgente um número na rua, não, não é aqui, deve ser ali adiante, e dispara, olhando para o outro lado até chegar bufando à esquina, de modo que a sombra fique para trás. Você confere a figura de vento com o rabo do olho e descobre que ele não está mais nem aí – está vendo vitrine, parando de repente como quem esqueceu o guarda-chuva na casa da tia ou atravessando a rua distraído. Respiro de alívio.

Outras vezes há um processo terrível ao contrário: você sente que é você o perseguidor, que por uma sucessão absurda de esquinas dobradas, interrupções involuntárias, velhinhas de que você desviou, sinais fechados e sinais abertos, um novo modelo de ventilador a pilha na lojinha de importados que mereceu sua atenção às três da tarde, e assim, como quem não quer nada, de repente você se vê perseguindo alguém, andando no mesmo ritmo da pessoa, imitando os gestos dela, avançando a perna esquerda no exato instante em que ela avança a perna esquerda, e em seguida a outra, com a precisão de um metrônomo: o que esta moça vai pensar?! Você diminui o passo instintivamente, e ela, também instintivamente, diminui o passo para livrar-se de você, e a angústia prossegue maior, agora é você a sombra que ameaça; você acelera, e ela, inadvertida, faz o mesmo, já claramente em pânico, certa de que você não vai largá-la, não como se você fosse um simples palhaço de feira a se divertir na rua, mas sim um psicopata imprevisível com um punhal oculto.

Sem solução, você para, volta-se rápido e atravessa perigosamente a rua em diagonal no meio dos carros, tentando livrar-se da própria sombra.

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