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Em O nome da rosa, Umberto Eco transplantou para a Idade Média a figura do detetive, encarnado no frade Guilherme de Baskerville, que investiga crimes misteriosos ocorridos numa abadia. Neste saboroso anacronismo cruzam-se dois aspectos culturais incompatíveis. A ideia de "suspense" é historicamente recente – sob ela repousam as concepções de que o mundo não está pronto, o indivíduo é independente e o futuro é uma incógnita, perspectivas avessas ao universo estável, hierarquizado e amplamente iluminado da Idade Média; o mistério era uma arma e um privilégio de Deus, não dos homens, de quem devemos saber tudo e de fato sabemos.

E a figura do detetive só poderia ser criada numa sociedade que preza a privacidade e que tem na solidão dos indivíduos um valor indevassável, o que era desconhecido do homem medieval. A Idade Média existiu em praça pública, em altos brados, por assim dizer, e esse traço determinante avançou pelos séculos. Não por limitação da pobreza; basta conferir os quartos dos reis nos palácios, com dezenas de portas se abrindo em toda parte. Na Corte, a amante sempre foi mais popular que a legítima.

Levou muito tempo até que a nobreza achasse um bom negócio a tal da "privacidade" – quando, e não por acaso, deixou de ser "nobreza". Surgia a célebre classe média urbana, nossa irmã e nossa companheira, habitante de apartamentos fechados, com janelas só para a rua distante, dando duro no trabalho, orgulhosa de sua vidinha autônoma, na qual ninguém deve meter o nariz.

Mas um dia, cansado da vasta eternidade do mundo analógico, com todas aquelas coisas físicas atravancando o espaço, Deus criou a internet, para chacoalhar um pouco o tédio (quem criou foram os americanos, mas vamos dar um toque bíblico à nossa fábula). No começo, ninguém entendeu direito, máquinas de escrever com telas, mas em pouco tempo as pessoas se apaixonaram pela novidade, que invadiu visceralmente a vida de todo mundo, do mendigo ao presidente. Como diria o filósofo, "mudou o paradigma".

E, depois das delícias da vida digital, chegamos ao apocalipse: retornamos à Idade Média, vivendo de novo em praça pública. Sente-se algo de vergonhoso em tudo que é privado; a boa e velha solidão parece um sinal de fracasso. O anacronismo se inverteu: agora a figura do detetive tem um toque curiosamente obsoleto, como o especialista em carburadores.

Dia desses, a Dilma bateu o pé: abriu a gaveta, encontrou aquela papelada espalhada e deu um grito rascante: "Quem leu meu e-mail?!" Em nome da soberania, já estão propondo um sistema nacional de internet, gerido pelos Correios – quem sabe o "e-mailbras"? Tudo bem – só tenho receio dos dias de greve. A ditadura criou a reserva de mercado da informática, que atrasou o país em 20 anos. Agora, de novo, o governo que não consegue se defender quer defender os cidadãos.

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