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Já tive uma vastidão de tempo na vida – para onde eu olhava, sobrava tempo, desdobrando-se verde num horizonte sem fim. Chutava as pontas do tempo com um desprezo suicida. Tempo para dar e vender. E eu dava e vendia, a quem quer que me pedisse. "Tem um tempo aí, cara?". E eu ali, tirando do bolso sextas-feiras intermináveis, madrugadas amplíssimas, fins de semana de dois meses. Dormia quatro dias e quatro noites seguidas, e acordava com folga.

Eu podia ir para onde quisesse, que tinha crédito de tempo. Era abrir uma gaveta e o tempo transbordava, e eu com ele, feliz. Aproveitava o tempo só de percebê-lo à espera, um animal invisível, discreto, silencioso, que mal respirava em dez milhões de poros. Era bom não fazer nada, só saber que estava vivo: essa é uma sensação maravilhosa, quando em estado puro. "Estou aqui", eu me dizia, como num filme.

Vivendo dentro do tempo, sendo a sua pele, jamais chegava ao limite de mim mesmo – nem precisava. Dei a volta ao mundo e cheguei antes de sair, pelas dobras do tempo. Estou sempre aqui, eu repetia: esse momento presente. Dormia hoje e acordava ontem.

Súbito, puxaram o tapete – fiquei velho.

Quer dizer, o tempo chegou. Não são tanto as marcas, que se corrigem, se disfarçam, se escondem, se adaptam. Nada disso. Nem a velha lição de moral, o dedo sacudindo, acusador, a dizer que qualquer coisa que você fizesse seria errada, porque todas as outras opções ficaram de fora. Não, por favor: esta não é uma crônica moralista, do tipo da formiga e da cigarra. O leitor sabe: a formiga trabalhou, a cigarra cantou, a formiga se salvou e a cigarra... bem, a fábula sugere que ela não se deu muito bem. A culpa teria sido a de não usar bem o tempo. Chegou o inverno, veio a neve, o frio, faltou comida, e então, mesquinhamente, a formiga se vingou da cigarra. Na verdade, deu aquela alfinetada de escárnio, que às vezes levamos pela vida afora: "Não falei?!".

Nada mais ridículo que uma cigarra se fazendo de formiga, e uma formiga se fazendo de cigarra. Como sofremos, no lugar errado!

Mas também não é isso, a sugestão de que algumas pessoas são cigarras por natureza, e vivem para cantar, e outras são formigas, e vivem para trabalhar. Porque, pensando bem, cantar é um trabalho duríssimo. E frequentemente só trabalhar é uma moleza – entre outras coisas úteis, uma técnica requintada de se esconder do tempo. O leitor olhe em volta e confira. O que corrói mesmo não é o que se faz ou se deixa de fazer – é o tempo, a ideia do tempo, esse ser suspirante e devastador, para criar um pouco de poesia com o que não se compreende. O que podemos fazer a respeito? Bem, o cardápio de ofertas é amplo, entre reservar uma cadeira no céu ou encomendar uma boa plástica. Mas perco meu tempo: tudo que eu queria dizer é que já faz um ano que sou cronista – a filosofada só pegou carona.

Cristovão Tezza é escritor.

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