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Infinita é a capacidade humana de juntar velharias e atulhá-las em gavetas, fundos de armários, prateleiras, despensas, caixas inocentes e onde quer que haja um vazio dando chance – foi o que descobri mais uma vez em outro desses impulsos cíclicos que me acontecem de anos em anos: renovar a vida livrando-me de tralhas do passado – um incrível rol de objetos inúteis que vão se espremendo em camadas. Mergulhar nas tranqueiras – sempre resisto a começar, mas de repente assumo a empreitada com uma espécie de sanha purificadora – é uma viagem no tempo, uma arqueologia caseira em que pequenos sinais avulsos tentam reconstruir como foi a vida em outra era, naquele mesmo lugar que habitamos e no qual viviam pessoas curiosamente parecidas com a gente – nós mesmos.Boa parte destes traços primitivos de marcar o tempo vem ainda da própria cultura da sobrevivência de uma época mais difícil em que nada se jogava fora. Como as coisas eram feitas para durar a eternidade, um simples parafuso no lixo soava como um crime de lesa-economia. E começa o inventário: uma tomada sobressalente de telefone de quatro pinos – sempre pode ser útil! Quarenta centímetros de fio elétrico com uma tomadinha bem conservada na ponta – quem sabe eu ainda precise dela; não se chumbam mais os pinos como naquele tempo! Um tubo de cola pela metade, agora empedrado como um peixe do Plioceno grudado na rocha; a caneta de brinde do Banestado, que jamais escreveu uma linha, morta na gaveta; o chaveiro de comemoração de algum evento de 1976 – e quebro a cabeça para traduzir o sentido daquelas iniciais com uma ave de asas abertas; um disquete flexível de um velho computador; uma caixinha de clipes esfarelados de ferrugem.

O melhor vem agora: arranco das sombras a forma pesada de um aparelho de fitas VHS, maravilha tecnológica de antanho – ainda acompanha uma fita mofada em que alguém gravou uma festa do arromba, uma hora e meia de jovens difusos e fora de foco, um arrastar de fantasmas coloridos fazendo discurso e dando risada, eu entre eles, até que o aparelho engasga, a fita se engruvinha e sai do ar para sempre.

E muito papel. Numa carta de 25 anos atrás, sou informado de que meu livro foi recusado por uma editora de São Paulo. Uma nota fiscal de supermercado me diz que eu gastei 92 cruzados novos, em 9 de abril de 1989; a caixa que me atendeu chamava-se Soeli, ainda consigo ler. De um envelope cai uma carteira de Hollywood, ainda com um inacreditável cigarro de bêbado esmagado, agora com manchas amarelas – eu costumava fumar aquilo, e achava bom. Uma velha lista de chamada caprichosamente anotada com cês de comparecimento e efes de falta durante 120 aulas – cento e vinte vezes eu recitei em voz alta aqueles 37 nomes, um por um.

Largo a caixa e olho pela janela – parece que vai chover, de novo. Esse tempo de Curitiba é maluco.

Cristovão Tezza é escritor.

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