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 | Foto: Antônio More/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima
| Foto: Foto: Antônio More/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

“P*, como eu era um cara bonito”, suspira o radialista Ali Chaim, 76 anos, diante de um retrato antigo pinçado de sua infinda coleção de fotos. O lamento do Narciso arranca risadas de quem está por perto. Não que alguém duvide da beleza juvenil desse Lawrence da Arábia criado no Capanema, dono de inacreditáveis olhos “azul-Barreirinha”. É que seu passaporte para a fama não foram os faróis que carrega no rosto, mas a voz rouca grau 9, emoldurada por um sotaque tão castiço que deveria ser ensinado nos cursos de português para estrangeiros. O Paraná finalmente conquistaria o mundo.

Chaim começou a talhar seu gogó para o rádio aos 10 anos, idade com a qual acendeu seu primeiro cigarro. Uma década depois, suas cordas vocais estavam curtidas o bastante para iniciar uma das mais longevas carreiras das ondas médias e curtas da redondeza. Não podia pedir chineques na padaria sem ser identificado. Chegaram a tentar carregá-lo para São Paulo – onde seria uma ameaça ao performático Gil Gomes. Alerta – a comparação lhe dá nos nervos e o faz presentear o interlocutor com um rosário de palavrões cabeludos, uma de suas especialidades.

Sim, cavalheiros, Chaim desconversou os convites para partir, pelo simples motivo de que não sai do ninho nem a pau. Além do mais, à época se divertia pacas ao circular pelas madrugadas – batendo ponto nos inferninhos – a bordo de seu Fusca-bala, como se dizia, usado para fazer reportagens. Ao passar, era apontado como a encarnação de um super-herói dos quadrinhos. “É ele, o Califa 33”, dizia-se, antes mesmo que estacionasse no meio de uma batida da PM. Vinha sempre a rigor – camisa de botões entreabertos, gravador a tiracolo, vocativos espertos: “E aí, simpatia, o que tá rolando”. Quem não faz ideia da cena, assista ao documentário Califa 33, do cineasta Yanko Del Pino. É um barato.

Poucos veteranos da imprensa paranaense são capazes de escrever a rotina dos bas-fond de antanho com tamanha criatividade

Ali Chaim nunca passava em branco – nem poderia, depois de perguntar para o bandido algemado se “a mãe sabia que ele estava ali”. Claro, antes de puxar conversa lhe oferecia um Carlton e lhe arrumava um pão fresquinho. Tinha delegado que chorava ao ouvir as confissões que conseguia. E quem se partisse de rir. Certa feita, “deu polícia” o ambulante que fazia número na praça à custa de chutar uma galinha. Ali Chaim reportou a carraspana e pediu para levar a pobre ave consigo. “Botava ovo e morreu de velha”, lembra o homem-natureza, que adora falar de grapefruit, kiwis e estufas de banana.

O nome de guerra – Califa – surgiu no início da década de 1970, quando Chaim comentava crimes, à contraluz, no programa Show da Notícia, do Canal 4. O contrato expirou, mas o apelido grudou qual chiclete, mesmo não sendo ele um novato no ramo. Sua estreia nos meios de comunicação data de 1963, como colunista de bares e afins em jornais, ofício que praticava com apetite. Aprendeu muito. Assimilou um dicionário by Chaim – “chibeiro”, “fuleiro”, “grupo”, “corriola”. Os amigos recomendam que ele escreva sobre o Stardust e a La Vie en Rose. E também sobre a Otília, a quem uma biografia faria justiça.

Poucos veteranos da imprensa paranaense são capazes de esmiuçar a rotina dos bas-fond de antanho com tamanha criatividade. Sua narrativa sobre a noite de 1966 em que o galã Jardel Filho foi escorraçado da boate Marrocos, na Praça Zacarias, é digna de Scorsese. E é um stand-up de primeira suas memórias sobre a “Revolta das Marafas” – como chama a manifestação das “meninas” argentinas de araque, free lancers da mesma Marrocos, ao saberem que o governador Paulo Pimentel fechou o estabelecimento, também naquele ano. Foram em bando ao Palácio Iguaçu, “onde conheciam todo mundo”.

A bela Ediluz, o estourado Amarelinho, Paulo Wendt – o Rei da Noite –, a generosa Blanquita... cada personagem dessas sagas vira ouro na verve do sujeito que jamais diria algo como “O ladrão foi preso pela Delegacia de Homicídios”. Na linguagem de Chaim se fala assim: “O malaco caiu em cana e patinou na chanfraria da Sete de Setembro”. O gênero é reprovado nos manuais do jornalismo. Bem que tentou mudar, é verdade. Ainda na década de 1960, com a morte do astrólogo da Rádio Colombo, escreveu ele mesmo o horóscopo e respondeu no ar a carta de uma leitora. “Você vai ser feliz”, profetizou. No dia seguinte, recebeu mais 25 missivas com pedidos de conselho. Ao fim da semana havia uma pilha de envelopes. Assustado, voltou para as delegacias, cadeias e salas de espera das autoridades, inclusive as eclesiásticas. Chaim insistia em chamar dom Pedro Fedalto de dom Manoel D’Elboux, uma de suas gafes mais deliciosas.

No saldo, foram mais de 40 anos de lida profissional – tudo devidamente documentado, à exaustão. A casa onde vive com a “doutora”, como se refere à mulher, a advogada Esmeralda, mãe de seus três filhos, é um pequeno museu não catalogado da imprensa policial. Não há porta de armário, vãos e quartos fora de uso de onde não saltem centenas de fitas K7, rolos e rolos de filme, laudas e mais laudas de programas de rádio como As últimas do tabuleiro policial, “que superava em audiência A hora do Ângelus”. Tempos atrás, tentou doar tudo para o Museu da Imagem e do Som – mas se estranhou com a burocracia. Uma pena. Como ele mesmo diz, o tesouro que guarda nas gavetas “é do carilho”.

  • Dono de um dos maiores acervos de jornalismo policial do país, o repórter Ali Chaim, 76 anos, também se dedica a outros colecionismos - guarda carteiras de cigarro, por exemplo. E xícaras de cafezinho com logomarca. “Tenho uma do IML”, conta. Sugestivo.
  • À custa de muita insistência, Ali Chaim garimpava cópias dos programas de televisão e de rádio onde atuou desde 1963, ano em que - estudante de Contabilidade - despontou para a radiodifusão. Com dificuldade de tempo e energia para administrar o material, lamenta vê-lo se estragando.
  • Detalhe de gravação e de uma lauda de programa policial . Esses documentos da rotina das rádios são hoje uma raridade. Mostram linguagem, técnica e ponto de vista sobre a segurança nos tempos do jornalismo “a lenha”.
  • Chaim é uma pequena parte de sua imensa coleção de fotografias. Obcecado em fotografar, registrou os bastidores de sua profissão. Ainda que desordenada, sua passagem pela imprensa está toda documentada. Hoje, Chaim atua na Rádio Educativa, para a qual faz programas de entrevistas que nada têm a ver com o mundo cão ou com o “espreme que sai sangue”.
  • Durante entrevista para a Gazeta do Povo, na casa do bairro Hauer onde funciona um museu informal do jornalismo policial paranaense.
  • Divertido, irreverente e dono de memória privilegiada, Chaim é um comentarista dos descaminhos da sociedade da violência. Em entrevista anterior à Gazeta do Povo, falou do impacto de ver, já nos anos 90, tantos adolescentes apreendidos e usando drogas. O tempo dos ladrões de galinha era quase romântico perto da nova ordem.
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