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 | Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo  / Arte: Felipe Lima
| Foto: Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

O empresário Marcos Schier bem que tentou. Nos últimos dez anos, manteve em pé o barracão de madeira desativado onde, por oito décadas, funcionou a fábrica da Selaria, Tamancaria e Sapataria Schier, na “Pracinha do Novo Mundo”. Agora, “quem” desistiu foi o próprio barracão, que jogou a toalha, arriou, pedindo os préstimos urgentes dos serviços de demolição. Ou isso ou atirará telhas e tábuas às cabeças de alguém.

Uma pena. O local poderia ser convertido num desses museus sobre o mundo do trabalho em geral e da cultura tropeira em particular. Produziu arreios e montarias do cotidiano dos paranaenses de outrora. Mais: o local seria um centro de pesquisa dos calçados, essa peça injustiçada do vestuário. “Calçar” faz parte do processo civilizador. Exagero? Repare na quantidade de gente descalça em fotos de proletários da primeira metade do século 20. Inclua-se na lista os pobrezinhos dos pequenos jornaleiros. Se não ficou convencido, considere por que, até hoje, comprar sapatos é um ritual burguês.

Salvar acervos peculiares é iniciativa louvável, merece medalhas de honra ao mérito, mas não é bolinho

Em seu auge, a oficina abrigou 70 funcionários de uma vez só, produziu 130 sapatos por jornada e forneceu artefatos para abastecer a capital e o interior. Os sacos de estopa com pares até a boca eram despachados na estação de trem, ali perto, espalhando a marca Schier por todo esse Paraná lindo que só.

Os vagões levavam as botinhas de meninos ricos, tamancas bordadas para as colônias polonesas e badulaques que os tempos de hoje não permitem mais. É o caso dos estojos para facões. Os cinturões para colocar as balas de revólver – sim, andava-se armado. As inacreditáveis passarinheiras, espécie de chaveiro com tiras de couro e argolas, nas quais os caçadores de passarinho penduravam suas presas. Pois é. De tudo isso um pouco Marcos guardou exemplares, negando-se destiná-los à fogueira.

A antiga oficina é invisível para quem passa pela Avenida República Argentina. Além de modesta – tem 150 metros quadrados –, fica atrás da Loja de Calçados Schier, fundada em 1930 e instalada num prédio de 1902, com folga a mais tradicional da cidade ainda na ativa. É um fenômeno. Embora vizinha de uma novíssima referência urbana – o Shopping Palladium –, muitos ainda informam seu endereço dizendo morar “antes ou depois do Schier”. Chupem essa, novidadeiros.

A loja está singrando o século, com clientela fiel, mas nem todos os fregueses tiveram a sorte de apreciar a graça da selaria. Quem bisbilhotou registrou a emoção com uma foto. Tão discreto quanto é o museu instalado no sótão do comércio, aberto com visitas agendadas. Do contrário, os saudosistas crônicos e os cidadãos interessados não sairiam mais de lá, hipnotizados pela máquina de datilografia Woodstock, 1939; por um jurássico rádio de madeira da Telefunken; pelo caprichado registro do guarda-livros na década de 30; ou por vetustos anúncios da Alpargatas. Sem falar nas fotografias dos blocos de carnaval de 1936, no Clube Literário, frequentado pelos irmãos Levino, Manoel e Tito Schier e os seus.

Salvar acervos peculiares é iniciativa louvável, merece medalhas de honra ao mérito, mas não é bolinho. Não à toa muitos se desfazem das heranças, temendo serem escravizados por elas. Num levantamento rasteiro, consigo listar pelo menos 25 famílias que mantêm – com sangue, suor e lágrimas – objetos históricos que interessam a você, à sua tia e sua comadre. Não chamo esses colecionadores de santos e mártires. Há quem mereça chutes na canela, por terem feito pouco caso dos presentes que receberam. Mas há de se considerar que em muitos casos esses herdeiros não encontram ânimo nem para repassar as peças graciosamente.

Ou não acham instituições interessadas ou esconjuram ao saber das desventuras sofridas por quem doou e viu o patrimônio virar poeira nas mãos de gente sem coração. É caso de polícia. Enquanto isso, cresce na internet o câmbio de relíquias, usadas para decoração, alimentando o bougisme, uma espécie de culto fetichista que mais tem a ver com vaidade do que com memória.

Marcos Schier mesmo perdeu a conta de quantos pediram para comprar “apenas” o emblema de ferro de uma magnífica costuradeira, uma das 20 máquinas importadas compradas por seu pai, o visionário comerciante Levino Schier. Homem elegante, informa que nenhum item está à venda, obrigado. Em segredo, acalanta lá seus fantasmas. Teme o dia em que o maquinário vai virar ferro fundido – o que pode acontecer.

Com o desmanche do barracão do Novo Mundo, a parte pesada da selaria está sepultada, num estoque. Há inclusive endereços especializados nessa tarefa, para socorro dos donos de acervos que viraram estorvos. Não deixa de ser engraçado saber que parte do nosso imaginário descansa na paz de caixas de papelão. Que o futuro se apiede de nós.

  • O empresário Marcos Schier na oficina da antiga Selaria, Tamancaria e Sapataria Schier, iniciada na década de 1930. Barracão já está em processo de demolição. Janelas foram retiradas. Local é representativo das dificuldades em se preservar a arquitetura de madeira, para a qual são poucas as políticas de patrimônio.
  • Levino Schier, filho de um imigrante austríaco, deu início à selaria nos anos 1920, mas a oficializou em 1930. Investimento em maquinário exigia compra de tecnologia do exterior. [Foto feita em junho de 2008]
  • Nos tempos áureos, selaria chegou a ter 70 artesãos de couro e três barracões, dois deles demolidos em meados do século, quando as empresas de calçados gaúchas começam a dominar o mercado. [Foto feita em junho de 2008]
  • Os moldes de madeira, com números diferentes, eram usados para a confecção de até 130 sapatos por dia. Uma das especialidades da casa eram também os “chinelões” de couro, fechados na frente. Sapatos para criança, botas para vítimas da poliomelite e tamancos com enfeites - que agradavam a comunidade eslava - estavam entre os preferidos. “Tínhamos tantos fregueses poloneses, vindos das colônias, que precisávamos recorrer à ajuda dos vendedores da Pernambucanas, ali em frente, para traduzir o que falavam”, conta Marcos Schier. [Foto feita em junho de 2008]
  • Algo em torno de 20 máquinas da oficina estão hoje preservadas e acomodadas num barracão. Marcos Schier pensa em fazer uma nova sala do Museu Schier, para deixar as peças em exposição. [Foto feita em junho de 2008]
  • Vista geral da antiga oficina, com destaque para os bancos usados pelos seleiros no momento de aplicar os arrebites. O último seleiro, Deodato, aposentou-se em 2005, ponto fim à era da tamancaria que marcou ao comércio do Portão e do Novo Mundo por quase todo o século 20. [Foto feita em junho de 2008]
  • O imigrante austríaco Gustavo Schier teve uma selaria na Avenida Lujiz Xavier e depois no Batel. Uma falência o levou, no início do século 20, ao distante bairro do Portão - vizinho do Armazém Novo Mundo, que daria origem a um novo bairro. Não bastasse as dificuldades financeiras, fica viúvo, com filhos. Três deles - Levino, Manoel e Tito farão carreira no comércio de calçados e apetrechos rurais, como arreios e selas. [Foto feita em junho de 2008]
  • O fundador Levino Schier trabalhou na Loja de Calçados Schier até 2002, quando morreu, aos 95 anos. O comércio tradicional tinha ainda outra figura histórica, o vendedor Ilói José Haus,, que trabalhou na loja por mais de 70 anos. Morreu ano passado. [Foto feita em junho de 2008]
  • Vista da selaria: paredes e portas surradas ofereciam pequenos registros da vida operária, como fotos de revista presas à parede. Ainda se podia encontrar opor ali adesivos com o número de telefone da loja: 43998. [Foto feita em junho de 2008]
  • A demolição da selaria foi anunciado pelos Schier em 2008, mas os proprietários resistiram em se desfazer do espaço. Este ano, a estrutura do barracão começou a desabar. Janelas foram retiradas e as peças acomodadas num outro barracão, até que encontrem seu destino. [Foto feita em junho de 2008]
  • Cenas de uma selaria. [Foto feita em junho de 2008]
  • Cenas de uma selaria. [Foto feita em junho de 2008]
  • Maquinário era importado. Pequena parte dele se encontra no Museu Schier, montado por Marcos Schier no sótão da Loja de Calçados Schier, uma das mais tradicionais da cidade, em funcionamento na Avenida República Argentina desde 1930. [Foto feita em junho de 2008]
  • Colecionadores de relíquias costumam pedir para comprar parte do maquinário, para ser usado em decoração. Na gaveta, detalhes da papelada deixada pelos seleiros. [Foto feita em junho de 2008]
  • Cenas da oficina da Selaria, Tamancaria e Sapataria Schier, na “Pracinha do Novo Mundo”: uma grife da cidade de Curitiba. [Foto feita em junho de 2008]
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