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 | Foto: Daniel Castellano / Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima
| Foto: Foto: Daniel Castellano / Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

Preste atenção. Ao seguir pela Rua Mateus Leme, na altura do Portal Polonês, dá para ver – nos altos do Bom Retiro – uma igrejinha azul e branca. É dos gregos. É linda. Está plantada ali desde a era disco. Podia jurar que para pisar naquele território de outros seria preciso saber o significado de kataxíosson, Kírie, em ti iméra táfti anamartitus filahthíne imás. Só que não. O templo ortodoxo São Savas tem as portas abertas a quem queira visitá-lo, sem a chatice de barreiras alfandegárias – das linguísticas às confessionais. Zona franca. Acreditem.

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O vigário se chama Panaghiótis Meintánis, mas podem chamá-lo de Panaiotes Mentanes – ele responde. Boa praça, vira amigo antes do quebrar dos pratos. Tem três filhos, seis netos, quatro bisnetos. Além do jeito de patriarca, contam a seu favor os olhos que são dois faróis. Brilham a cada vez que se empolga – e se empolga a cada dois minutos: “Nasci na Grécia e tenho 58 anos, só que ao contrário”. Exato – o homem que parece ligado na tomada soma 85 anos, o que sempre rende um “ah, conta outra”, seguido de um “me passe o segredo”. Bebeu a água das ilhas do Mar Egeu.

Foi Panaiotes quem ergueu a São Savas, no início da década de 1970, logo que pisou no Brasil. Copiou a planta de uma outra igreja que construiu no seu país, repetindo o que fazem os imigrantes. No ímpeto de trazer a pátria de mudança para a terra estrangeira, traficam arquiteturas. Sorte nossa, que viajamos mundos pelas calçadas.

A nave tem 120 metros quadrados e é muito iluminada – diferente das soturnas igrejas ortodoxas. Ao cruzar o pórtico, os fiéis acendem velas de cera pura e as colocam em dois candelabros. É de regra. Seguido, beijam um ícone da Virgem Maria. Míseros dez passos separam os participantes da iconóstase – nome dado ao biombo de madeira onde estão o Pantocrator (Jesus), Nossa Senhora, o Batista e demais. Um soberbo castiçal de teto assiste a tudo. No ar, o cheiro bom do manjericão.

Sem música não tem rito. Sem padre, também não. Já sem gregos, sim, é possível

Não há esculturas, apenas pinturas – marca da Igreja do Oriente. Por causa do cisma do século 11, a Igreja dos Primórdios e a Idade Média ficam um pouco mais perto da gente, ali na Rua Comendador Lustosa. É quase tudo como dantes. A porta do altar, ao centro, permanece reservada ao sacerdote e seus ministros, nos conformes da tradição. Durante a missa – sempre solene, toda cantada e sem economia de incenso – impressiona o entra e sai e sobe e desce do padre entre cortinas vermelhas que balançam: não entendemos o que ele diz [pelo menos nos 70% rezados em grego], mas sabemos o que ele faz. O culto é cult.

Algo como 20 famílias participam da pequenina comunidade grega de Curitiba – 30% desses são brasileiros destituídos de “poulos”, “tzias” ou “mianos” no sobrenome. Não é problema desde que o mexicano Anthony Quinn interpretou Zorba, o grego, do romance de Nikos Kazantzakis. Alguns se encaixam na categoria “simpatizantes”, outros na “convertidos”, a exemplo do professor de inglês Fábio Lins Leite. Ele tem 38 anos, um elegante sotaque carioca e, breve, deve se mudar para os Estados Unidos, onde vai cursar Teologia. Já recebeu o ministério da Leitura. Os gregos castiços o veem como o substituto de Panaiotes. Pudessem, lhe dariam um passaporte grego, já.

Filho de pai português e mãe alagoana, católico de pia, Fábio chegou à Igreja Ortodoxa por meio da mais apimentada das virtudes – a curiosidade. Gostou do que viu e armou ali sua tenda. Ao vê-lo na missa, a bordo de uma transada batina preta, a gente entende. Fábio não nasceu em Atenas, não tem parentes em Salônica, mas está em casa. Basta vê-lo de posse da palavra, ao fim da liturgia.

“A sabedoria dele me impressiona”, elogia o comerciante Vassilios Georgios Vlachakis, cantor nas cerimônias da minúscula comunidade. Natural de Creta, tem voz de profeta. É um baixo, tom desejável para o ofício divino. Conta que é difícil dividir o coro com Panaiotes, que é tenor – e vai longe ao descrever firulas do mundo bizantino. Calcula que Fábio terá de estudar muito canto antes de se ordenar. A conversa tanta, logo se deduz que sem música não tem rito. Sem padre, também não – mesmo que seja um tenor. Já sem gregos, sim, é possível...

“A igreja não é do nosso povo, é dos cristãos”, eleva-se Panaiotes ao saber que alguém possa se espantar com a hospitalidade helênica – como se nada mais soubesse sobre os gregos do que a lista de radicais da gramática do Cegalla. Presumo que o engenheiro mecânico Felipe Hecke Mendes, 24 anos, também pense como o padre. Morou na França, conheceu outras religiões, escolheu a Ortodoxa Grega para chamar de sua. Encontrou abraços.

Há 15 dias, foi crismado. Levou um petit comitê de parentes e os amigos à missa e ao ágape – um café da manhã no salão da paróquia. Lembram do blockbuster Casamento grego? E de Claudia Raia como a Safira de Belíssima? Pois o pessoal é animado de fato, faz um barulho bom, inclusive fim de semana adentro, quando os que ainda têm canelas ensaiam o folclore. Fábio e Felipe, dóxa em ipsístis Théo, entram na roda. Tá certo: quem poderia acreditar num Deus que não dança?

  • Fábio Lins Leite e o padre Panaghiótis Meintánis, na frente da Igreja São Savas, no Bom Retiro.
  • Vista da fachada e do altar.
  • Templo tem 120 metros quadrados e abriga 30 pessoas sentadas.
  • Vista da iconóstase e do grande lustre. Ao centro, uma das versões da Cruz Grega e o manjericão.
  • Ícones vieram da Grécia. Interior pintado de branco é referência à arquitetura do Mediterrâneo.
  • O missal.
  • Padre Panaiotes - aos 85 anos, atende cidades de todo o Sul do Brasil. Gregos somos mais ou menos 5 mil pessoas no país.
  • Ícone de São Savas, santo da Igreja Ortodoxa que viveu no século 6.
  • Ícone da Virgem Maria.
  • Vista geral do templo
  • Livros usados nas liturgias.
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