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 | Felipe Lima
| Foto: Felipe Lima

Parece coisa de doido – coleciono histórias sobre Carmen Miranda, cujo centenário de nascimento se comemora esta semana. Não sei dizer quando fui vitimado por essa "febre da selva", mas suponho que tenha sido no dia – ainda piá – em que descobri ser Carmen, ou Maria do Carmo, sim sinhoire, uma portuguesa com certeza. Dei de ficar imaginando se por trás daquela brejeirice toda ela se parecia um pouco às severas Filomenas, Bibianas, Matildes e Adelaides da minha família lusitana. Essa curiosidade alimenta meu desejo de decifrá-la. É o enigma da bacalhoada.

Para alcançar meu intento, dou sempre um jeito de traficar Carmen por onde passo. Falo dela em sala de aula, seja o assunto estética, cibernética ou agricultura orgânica. Por sorte, fui redimido do meu crime pelo menos uma vez. Certa feita, um aluno deixou por escrito que dos anos de faculdade jamais esqueceria a aula em que nos vimos falando – assim, de alegres – da Brazilian Bombshell, um dos muitos títulos dados a miss Miranda.

Pode ter sido ironia do garoto, mas por um momento deu gosto imaginar os balangandãs ameaçando a popularidade das máquinas incríveis que tanto seduzem os estudantes de Comunicação. Algumas parafernálias eletrônicas até falam, mas lhes falta, digamos, chica-chica-boom. Além do mais – mal não faz falar de Carmen no território de Marshall McLuhan já que até Wittgenstein, atolado em seus problemas de filosofia da linguagem, era fissurado por uma certa mulher de turbante e plataforma.

Numa dessas estripulias para vingá-la junto aos jovens, projetei o excelente documentário Bananas is my business, de Helena Solberg. Recomendo – há quem saia da aula cantando "mamãe, eu quero...." e "ai, ai, ai, ai... in south american way". Na ocasião, uma das participantes pediu licença para se retirar, mas implorou que não lhe contasse "se a mocinha morria no final." Ai, ai, ai, Para ela, Carmen nunca tinha existido. Era um personagem da ficção, como Mary Poppins ou Malvada Cruela. Hoje, não a recrimino: no balançar das pulseiras, até que tinha razão.

Caetano Veloso – autor do bordão "Carmen Miranda, dadá", na canção-manifesto "Tropicália" – trata disso num artigo publicado nos anos 90. O compositor argumenta que Carmen era surreal, como é surreal o Brasil de onde veio. Ela parece de mentirinha. Para os ianques, idem, mas acharam a graça da moça e o resto que se dane.

É tocante, por exemplo, o pequeno ensaio do escritor norte-americano John Updike – morto mês passado – em que fala de suas primeiras impressões sobre o nosso país: "No começo, o Brasil foi cinema para mim: Carmen Miranda, em Entre a Loura e a Morena (1943), silvando e matraqueando, como um aquecedor prestes a explodir..." Carmen, para Updike, era o símbolo de um país grande, formado por imigrantes como os EUA, mas sem puritanismo e contas de calefação no final do mês. Precisa dizer mais?

Há pouco mais de dois anos, a biografia Carmen, de Ruy Castro, confirmou as impressões de Updike: nossa sambista conquistou a América porque tinha de sobra o que faltava por lá. Ela sai da obra mais brasileira do que nunca. Mas os detalhes do livro são tantos que finalmente encontrei semelhanças entre a Pequena Notável e as mulheres de além-mar. Por exemplo: não andava de preto, mas era trabalhadeira feito um estivador, tal e qual suas conterrâneas desembarcadas no Porto de Santos. Só que em vez de aviar bordados, pastéis de Santa Clara ou tapetes de arraiolos, cantava. Quanto à melancolia ibérica, bem, disfarçou se enchendo de badulaques.

A propósito, há um episódio digno de derramar lágrimas nos mares de Portugal. Ruy conta que na noite em que morreu, em 1955, Carmen cantou para sua mãe não um samba, mas um fado – o "Fado da Severa", um dos mais bonitos da terrinha: "Se meu amor vier cedinho, eu beijo as pedras do chão, que ele pisar no caminho..."

Fico pensando que tal e qual as Matildes, ela deva um dia ter pedido a Santo Antônio um bom marido. Não ganhou. E que também gostava de dinheiro e de comida – "camarão ensopadinho com chuchu". Era por certo como os demais patrícios, criados nos rigores do bolso, mas na fartura da mesa. Saiu aos seus, a Carminha. É seu segredo.

jcfernandes@gazetadopovo.com.br

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