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Fiz como o cachorro da anedota: entrei na catedral porque encontrei a porta aberta. Era Sexta-Feira Santa, a casa cheia, e eu procurava um bom lugar onde descansar as ideias ruins, um banco com espaço suficiente para meus personagens e eu. Somos muitos, é verdade, mas, por favor, não nos chamem Legião. Se possível, nos vejam como um grupo de peregrinos discretos. Nossa Jerusalém, tão mínima, é só uma cidadezinha ficcional, e estas ruas legíveis, no feitio de narrativas.

Sem querer, nos sentamos ao lado do confessionário. Ali, o arcebispo em pessoa recebia os pecadores enfileirados. Alguns carregavam sacolas do Mercadorama, quem sabe se com o peixe para o almoço de logo mais, as batatas e azeitonas, o refri em promoção? Outros passeavam pesadamente pelos corredores do templo, arrastando o fardo de seus ovos de Páscoa — ah, o tempo que passamos sob o parreiral das Lojas Americanas. Os santos, debaixo de seus panos roxos, escondidos, nada viam; apenas ouviam o farfalhar dos papéis laminados.

E pensar que, nos anos 60, o famigerado Nelsinho caçava por ali, queixando-se do feriado da Paixão. Por culpa de Cristo, todos os bordéis do Centro fechavam. Hoje, o vampiro de Curitiba não teria por que praguejar. Está tudo aberto, sempre, as arapucas armadas. Os comércios, os mercadinhos, as lanchonetes chinesas, o cheiro de sangue e carne frita. Até as moças já amanhecem florescidas, nem sequer dormem, dormir é bom para quem tem bons sonhos. Abordam turistas solitários, velhinhos desviados, calmos haitianos em dia de folga — e, claro, meus personagens e eu.

Hoje, o vampiro de Curitiba não teria por que praguejar. Está tudo aberto, sempre, as arapucas armadas

Bem cedo, uma delas já havia nos parado na Alfredo Bufren. Numa só frase, econômica, a mulher me fez um elogio, um convite, um preço e, caso me incomodasse a ferida feia em seu tornozelo, um desconto. Recusei a oferta e ela se queimou: “Se você não quer um amorzinho, o que veio fazer aqui?” Bem, quando eu souber respondê-la, prometo voltar com uma contraproposta.

Saí da catedral me sentindo como o cão da crônica de Paulo Mendes Campos: enxotado para o inferno de uma praça inundada de luz. Diante do templo, um quarteto de vagabundos jogava baralho sobre um cobertor de flanela. Nenhuma jogatina me atrai, sou ignorante também em relação às cartas, e imune às apostas, mas aprecio essa modalidade maliciosa de disputa e comunicação entre os seres humanos. Por isso, parei para vê-los jogar, e meus personagens se sentaram entre eles, na esperança de aprenderem algum truque.

Não demorou e passou por nós um desses vigilantes das santas efemérides: tem cabimento, carteado em frente à igreja, em dia de penitência? O líder dos vadios se ofendeu, quis saber do outro se ele nunca ouvira falar da “paixão dos naipes”. E, perante a mudez do acusador, nos ensinou, exibindo seus reis: “Paus é o pau da cruz de Cristo; espadas, a espada de Pedro contra o mal; copas, o sagrado coração de Jesus; e ouros, a verdadeira coroa do nosso martírio”.

Desci a Monsenhor Celso e peguei a XV, a manhã avançando. Um artista quis pintar meu retrato. Não topei, mas o sujeito que vinha atrás de mim se interessou. Tirou os óculos escuros, nos revelando o vazio de sua órbita esquerda. Negociou e fechou o serviço por 50 reais. Só que, antes de combinar o prazo e entregar sua foto ao artista, impôs uma última condição: “Me redesenhe com os dois olhos, será um presente para minha mãe”.

Chegamos à Boca Maldita com fome. Eu, quase em casa, ainda bem. Ao lado do Bondinho, por pouco não tropecei num colchão sujo. Sobre ele, lemos um bilhete: “Saí almoçar, volto já, JC”. Meus personagens resolveram ficar esperando. Eu não respondo por eles.

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